segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sacrilégio

As tardes são macias
mas talvez me engano
e as confundo
com as manhãs
pois
há séculos esqueci
o que vem a ser
um ser vivo de dormir.

Zumbis, sigam-me
carregando a tevê
Cantando canções decoradas
Pois, sendo tarde ou manhã
será tudo macio, maciozinho
um sofá
Sim, isso,
- A vida é um grande sofá...

Ironia, xingam "nojento"
o preguiçoso que diz
- Deixa roubarem, matarem,
morrerem de fome...
Que fica só lá no sofá
Com as nossas tardes macias
E as tevês bonitas,
a mulher trazendo o bebê calado,
a cerveja num copo gelado...
Hm, que sonho...

Mas é mesmo um sonho, oras...

Sim, para que preocupar então?
Cante a Ode do zumbi:
"Sou assim serei zumbi
do jeito que ninguém quis
do jeito que eu sou feliz,
zumbi da vida,
alien da terra.
O certo que erra."


Soneto da Madrugada


É a madrugada que nunca acaba,
num braço dormente ao lado,
essa voz que se alastra calada.
O pesadelo qu'eu temo acordado.

Fujo, correndo sem nem me erguer.
O relógio é só zero-zero.
Batalho pro sangue escorrer
mas nu ao seu lado, mio, me melo.

Um vampiro no quarto entrou.
Só você não acordará.
Lá fora ele conta quem sou.

Só você não saberá nada
Do vago sumiço do amor
Da espera que nunca acaba


quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Ele caminha sempre na noite

Amigo, a tarde está azul...
E como eu adoro tardes azuis.
Me diz, qual o teu maior sonho?
Assim, aquilo que mais lhe vem à cabeça?

-Que não tenho rumo...

Como assim não tens rumo? Isso não é sonho!

- É sim.

Mesmo com essa tarde azul, você fica sem rumo?

- Mesmo com cem tardes rosas e seus gordos sóis eternos.

Mas, explique-me isso,
como se perde o rumo,
se está tudo claro
debaixo destes sóis eternos?

- Porque nada está claro...

Mas e o papo de tarde rosa, com o tal sol gordo e bonito, como fica?

- Tudo merda, besteira, xerox televisivo, desacredite.

Mas que inferno, explica essa coisa direito maluco! Porque besteira?

- Porque sim...

Porque, porra?

- Porque eu sou sol. E caminho sempre na noite.

[silêncio, faíscas, explosões, noite]

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Natal

Vida longa ao rei
Que a cascavel lhe coma o focinho
Que a coroa enferruje na chuva
Que ele aprenda a secar louça suja
Que ele aceite bem o toucinho
e coma tudo
sem reclamar
da cor do céu azul.
Só assim ele conseguirá
reclamar da rainha reclamando
de bigodes espetando
a sua virilha real.
Nada mal, prum aprendizado de carnaval.
Vida longa ao rei Momo.
Se ele não tomar
eu mesmo tomo.

Uma hora tem carnaval

Não é natal
ninguém lembrou dos teus presentes
cumpadi
Onde federam suas meias
se nem o peru passaste do ponto?

Assim você se fode mesmo
admita, mendigue
se seu cabelo é crespo
toque viola
De noite chorará só um pouco
mas faz parte
tem gente que passa natal sozinho
se a família vive debaixo da terra
ou nunca viveu em olhos de festa
Sempre fará parte
de qualquer forma acontece
Se aconteceu na vida,
fez parte da vida
natal sem marte
reveillon na china
(Lá não tem ano-novo,
se for isto um estorvo)

Mas, depois disso tudo cumpadi
sempre vai ter carnaval
aí, meu cumpadi,
Ninguém fica mal
Riu?
O carnaval pode vir
errado, a qualquer hora
vivo na hora viva,
ou no fim da hora morta.



sábado, 22 de dezembro de 2012

Como eu amo essa mulher

Cara, como eu amo aquela mulher
A gente anda, come, dorme todo dia
e ainda consegue amar...
com a pressão
do abecedário da fome
fome de amor...
E ainda escreve o que bem entende
e ninguém pode fazer nada,
é inevitável, como um peso
que afunda sem isca
sem corda, pro fundão do mar...

Cara, como eu amo aquela mulher
escrevo e meus dedos esticam
de um gelo lá do norte
dos farejamentos suspeitos
que eu suspeito nao passar
das mesmices dos brincalhões
de gnomos que cirandam em meu peito

Cara, tem que ter colhões
pra amar essa mulher,
já fico louco, já vê?
de jogar pedra com colher
em avião de papel machê

Mas Cara, como eu ainda amo essa mulher
Eu bebo bebo bebo.
E ainda amo essa mulher,
quando acordo mais cedo
do que acordaria
se não amasse essa mulher.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Guilhotina

Degolei o dia
na voraz concordância
c'as demais alminhas
humanas perdidas
que a nossa vida já se ia
junto com a raiva do dia
e o triste falecer do sol
e nada faria mais sentido
se não dançássemos todos nus
do coito aos coices
uma última valsa da meia-noite
bebendo em orgias às panças
nossos baldes de desesperanças

Degolaríamos todos o dia
E a lua derramaria
seus abraços de petróleo môço
E, úmidos de suor e vida
Gritaríamos para ela
essa manhã não dormida...
Degolaríamos o dia de novo.

domingo, 16 de dezembro de 2012

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O fogo

O mar urbano secou
Nas ruas, as coisas submarinas
Murcham na bruma outonal
E as folhas pastéis brincam
De sobrepor insólitas cores
Sobre meu sapato que arrasta
as saudades espetadas
em nossa cama que se afasta
dessa triste ausência de sol ao meio dia,
desses surdos corredores onde luz já não há
Pois faz tempo, amiga
Que enrolamos juntos os tapetes encardidos
Para dentro da lareira
onde nada se renovará
- Até algum dia querida, até!
Nada se renovará nessa queima,
apenas o fogo.




terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Meu pedido

Todo dia estampo
Em meu romance policial
Procura-se um poema
Recompensa?
Os meus outros poemas...

Entrego mesmo
Sem dó nem piedade, de perdê-los para sempre
Sem o medo de todo futuro velhinho
De ao fim morrer sozinho

Deixemo-los voarem com os galhinhos arrebitados
As narinas respirando todo os cheiros dos mares
Soprando velas e velas entre os leitos das belas adormecidas, donzelas.

Pois o poema serve para isso
Ofegante e milagroso
Acordar o amor na ida
Sonolento e vagaroso
Dormir a vida na vinda


E, mesmo com ele, o meu
Tão procurado patinho feio
Morrerei sozinho em minha hora extrema
Pois até ele há de voar,
fugir bem no meio
do meu último suspiro.

Mas eu entendo e simpatizo
Poemas não morrem com seus poetas
Voam longe às outras terras
tranquilos, vão sem metas.

Pra que raios?

A gente vive pedindo informação
Pé no saco, dedo no botão
Pra que raios ir ao cartório?
Viva sem nome nem relógio...
Pra que raios o teu escritório?
Vivamos sem rumo, oratório!
Pra que raios serve a estação?
Vague sem rumo ,sem tostão...
Pois rumo e tostão
não foram as desculpas
nem de Eva e nem de Adão.


Tarde na Lavanderia

As máquinas de lavar giram
no redemoinho desembestado
E ninguém repara direito:
Elas choram os filho bastardos...
uns cuecões altaneiros.

E assim elas suam o dia inteiro
pelas gorjetas sensuais
se sobra uma calcinha
é banquete no refeitório das roupas!
E, torcendo meus miolos neste mundo de girar
Assisto, atônito, à criança que fui,
Dormindo dentro do louco giro
Como se vida nenhuma tivesse tormenta,
E ninguém mascarasse com gosto de menta
Os sonhos que ainda mastigo.


Perdido? Onde?

Estarei sempre perdido
Na rua escura
Num prato mal comido
Pois a fome jamais bastará...
E de acordo com o relógio do barco da minha namorada
sempre será tempo de pás:
Cavar, cavar, cavar...
"São horas! Acorda marmota! Quem vai viver por você?"
-Ninguém, deixa a vida viver por mim...
Pois nesse poço sem fundo eu não pulo!
Nem fo-den-do.
Só fico vendo os zumbidos.
Bato os meus dentes.
Dúvidas que jamais passarão!
E as pás a cavar
os meus cacos de sempre
Pra sempre no chão perdidos serão.



Não é saudosismo

O fogareiro azul me espera em casa
ironias do destino se o fogo não apaga
pois até de soprar nós já esquecemos.
Ele me espera há tantas almofadas de anos
que não lembro nem do seu preto e branco
E a minha velhinha
é a mesma adolescente
que arravanha as minhas costas
como grelhas latentes
e suas unhas cantavam uma bossa
de amor, de calor, de amor sem pudor
mas ninguém podia saber...

E as maçanetas, antes de girar,
já me lembram um frio de 1944
onde o pianista se fechava no quarto
e eu ficava só ouvindo os tristes bemóis
e à noite correndo de rubros faróis

E ainda dizem que eu nunca senti frio!
Bem nessa época que se gostava de milho!
...E eles choviam antes da pipoca
sobre as ricas, loucas cartolas
a disputar bilhar c'os flocos de neve...
E eu nunca vi a neve...

Não é saudosismo
se me permitem afirmar
É apenas aquela sensação
que vem de distância longa
como o barulho do mar
de dentro de uma concha.
É aquela sensação que dizem
que só sente o transviado
que nasceu no século errado
E uns poetas cobertos de fuligem...






segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Inutilidade

Sou inútil
Só quero parar
de incomodar meus amigos
que não são tão inúteis assim

Não ligam para certa bolota
de cartolina tingida
Meias molhadas dentro da bota
Uma estrela caída
da árvore de natal
Uma velha serpentina
que perdeu o carnaval
Um barco boiando sem água
Uma escada rolante parada
Um osso da sorte sem carne
Todas essas pequenezas
pequenizando sem alarde


Por isso junto minhas tralhas
Num baú de tranca quebrada
E me escondo sozinho
no caixão da eternidade
Parado ao fim do caminho

Mas, peraí,
você sabia que fumar
dá vontade de cagar?


domingo, 9 de dezembro de 2012

Ser Humano

Quando chego em casa
finito o castigo
tudo que faço é grunhir
como fazem os cães em comício..
e os mudos cansados do hospício
Tudo que faço é grunhir
ser todo demências
Tirar o sapato "babano"
E, pro fim das decências
enfim,
enfim ser humano.

Sonho de um intervalo de aula

Aconteceu hoje
Ou eu quis que acontecesse:

No intervalo da indecisão
- Aquele de café, cigarro e broa
de nenhum livro na mesa -
Pra contar gotas na garoa,
descemos, eu e a Princesa.


Em meio às contabilidades
Já nos sumia a cidade
E contávamos, em segredo
nossos cílios com orvalho

Mas, o nosso liso lago
desse doce espelhado
Virou tormenta num pulo!
Pois nos furou o casulo
um fedorento de terno e pressa,
que quase jogou a Princesa no chão
e saiu xingando o tropeção
"esses jovens só pensam em festa..."

Sonhei:

Eu iria lá e diria
"Seu grosso petulante!
Cadáver ambulante!
Não sabes pedir licenças?
Não sabes que uma Princesa,
se trata ;é como amor de verão?"

Aí eu ficaria com aquele ar grave, de
um gentleman que acerta a trave
A princesa puxaria meus olhos
com os seus de azuis brilhosos
"Tu és meu herói, sabias?"

E eu nada responderia.
Apenas o calor subiria.

Colocariamos-nos então num balão
Jogando rosas de longe ao chão
E recitaria meus finos poemas.
Nossos filhos a comer pão
- todos teriam os mesmos olhos azuis de gema.

Mas o sonho se foi nas brumas
E eu fiquei só no "iria",
subjetivando a bela do dia.

Entortei o cigarro,
e grunhi meus ventos frios
Enfim subi c'a Princesa
pequeno cabisbaixo.
Era o fim do intervalo.






sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Como fugir do adeus sem nenhuma lição

O adeus é feito ao avesso
da avidez do que não foi vivido
De um grito naquela manhã
em que o mundo está dormindo
Onde o grito não pôde ser grito

Digamos adeuses em linhas tortas
já que nunca é tempo de menos
pras desvivências que sonharemos...

Como cabeças que rolam pra trás
para a saudade que se desfaz:
Um olho no corpo que vai
o outro n'alma que fica, atrai


E se não deu tempo de dizer o tchau
ou desarrepender de um beijo final
Tranquilize seu adeus, pois
o pó é o começo e o destino da nuca
E o beijo é dado bem lá
Já que o nunca ao sempre será.


FOCO

Foco

Afinando o lápis esperto
A revoada das pernas
batem as portas do inferno

Desenho uma bunda

As nuvens m`engordam
Recorto a língua

Foco

Foco

Babujo café no papel
A vida esfria o meu réu
Até essa calma secar
Gemidos quebram meu vidro
e o sol embrulha um par

Desenho um amor-cozido

As folhas me cobrem
Afogo os ouvidos

Foco

Foco

Foco

Medindo as borrachas de lã
Defino os calores na neve
Mas um sapo verde de luvas
acena um conhaque que ferve
Meu aceno soluça na curva

Desenho o vazio

O gelo me escolhe
Mastigo meus olhos
Lá fora já chove

Sufoco





Miudezas da minha selva

Carneiro Otávio vivia dando cabeçadas nos outros. Um mau-humor carrancudo, escondendo o sonho por folhas de bananeiras risonhas. No fundo de seu encéfalo magoado, Carneiro Otávio só queria comer peixe frito enrolado nesses vegetais. E claro,com várias carneirinhas rosadas oferecendo os rabos a girar. Mas o sonhador não falava isso para ninguém e vivia pedindo mais ódio para o seu coração. Ele sempre cobrava a conta para si mesmo um pouco mais cara. O resfolegante coração torcia-se como podia para gotejar os seus últimos rancores.
Carneiro Otávio ficava então a ruminar umas folhas-sem-ser-de-bananeira.O amargor dessas folhas era buscado lá do fundo dos sabores mais ocres do inferno. E esses sabores viviam infestando a língua para-sempre-seca de Carneiro Otávio. Nada de peixe frito.
As cabeçadas aleatórias não eram costume de nascença. Começaram em certo dia de fim de mês. O excesso de sujeira nas ruas fazia Carneiro Otávio odiar ainda mais os ódios. Tudo era odioso. Neste triste dia ele tropeçou numa lata de peixe vazia, sem dono, ficando todo desengonçado. A trocação de pernas terminou com a queda e no encabeçamento vertical dele no chão. Orgulhoso, Carneiro Otávio fez do mundo o seu chapéu, daqueles que jamais se tira. E pôs-se a dar cabeçadas arrogantes em todos os desavisados que não abrissem alas nas ruas. Do poste ao padre.
Com o malogrado costume já bem aderido aos seus vícios, Carneiro Otávio afastava-se cada vez mais dos peixes fritos. Mal notou quando as coisas ficaram estreitas no meio-dia de uma quarta-feira de cinzas, bem quando o sol quicava em linha reta sobre as cabeças. Nesta hora de agulhas solares, Macaco Maurício, o garçon do país, veio cumprimentar jovialmente a carranca de Carneiro Otávio. O sorriso do cumprimentante fez explodir a desgraça do irritadinho. Os dois eram, no mesmo metro quadrado, um paradoxo em carne viva, os humores em exatos opostos. O mundo inteiro sendo dividido por zero.
A cabeçada certeira veio quando a mão de Macaco Maurício se estendia.
É de se imaginar que o ato fosse apenas um crime de agressão física, e que ainda poderia ser atenuado pelo atestado de ridículo. Mas infelizmente Macaco Maurício levou a trovoada de tal desajeito nas beiças, que os seus dentes entraram de volta na sua exposta felicidade. Ao beijar a testa ranzinza de Carneiro Otávio Macaco Maurício beijou também os lábios ossudos da morte. Tombou, morto, como uma panqueca salgada demais.
O assassino se fez de coitado, como se fosse vítima da tristeza. Se fez de pobre-coitado, com medo dos injustos soldados do tempo. Mas mesmo assim eles arrastaram Carneiro Otávio como um boneco de pano. E deu no que deu. Deu que ele recebeu a pena máxima, carimbada em sua testa dura: Pena de morte, com requintes de crueldade. E essa foi a sentença, proferida a todo-beiço pelos cem juízes em coro. Isso porque todos adoravam Macaco Maurício. E do todos agora abominavam o maldito Carneiro Otávio. Mesmo assim o preso teve o direito de escolher a sua última refeição. Na língua: Peixe Frito porra. Assim combinou e assim aguardou, sem nada para comer até o último dia.
Dizem as más línguas que os roncos abdominais do condenado eram tão medonhos que até o Urso Jó perdia o sono. Isso porque o esfomeado aguardou tempo demais no xilindró. Os juízes demoraram para decidir qual seria o requinte de crueldade.
Após muitas partidas de dominó decidiram que Carneiro Otávio seria fadado a morrer de tanto rir. Os juizes argumentaram, de terno e lábios sujos de maionese, que para gente de cara fechada, a pior tortura é rir. Suas barrigas filosofavam bem. Os cem homens da lei também gostavam muito de Macado Maurício e deram o melhor de si nesse caso.
No dia em que a confusão consumaria-se, Carneio Otávio resplandecia no cadafalso, com uns grampos abrindo-lhe os olhos forçosamente, para que ele visse tudo. Ele aguardava pelo peixe frito diante de uma multidão fofocante. Algumas pessoas despirocavam de ódio. O resto odiava em silêncio. As crianças choravam.
Subitamente veio a dessurpresa que mudou tudo: Sem o bom garçon Macaco Maurício para servir o Peixe Frito, como a comida chegaria até Carneiro Otávio? Pois bem, não chegou. O peixe foi jogado de volta no rio e Carneiro Otávio morreu com fome, mas não de fome. E nem de tanto rir. O condenado não moveu uma lágrima durante a performance humorística da Arara Joana. Nem com gás do riso. Metade da platéia ofegava de tanto rir, o que é um fenômeno rude, ou ao menos macabro, tratando-se de uma execução. Haviam risos em todo canto. Menos no canto da boca de Carneiro Otávio. A outra metade da platéia que não ria da renomada humorista Arara Joana, clamava por torturas sanguinolentas.
Sem saber o que fazer, o excelentíssimo Sapo Augusto - Juiz-mor - achou a derradeira dessolução. Sacou a sua pistola premiada e encerrou logo com aquela polêmica. Carneiro Otávio enfim fechou os olhos arregalados. Só não fechou o terceiro olho, que acabara de abrir. Este último chorava solitário uma lágrima vermelha.
Enquanto os demais juízes dispersavam a multidão questionante, Sapo Augusto e Arara Joana foram discretamente jogar o corpo de Carneiro Otávio no Lago Municipal.
O que me assusta é que, de tempos em tempos, pescadores duvidosos dizem por aí que pescaram esqueletos intactos de alguns peixes no mesmo Lago Municipal. Esqueletos sem carne nenhuma, mas quase vivos. Ainda sofrendo os últimos espamos do terror da morte recente.

Prólogo

Sapo Augusto só foi reeleito após mudar o nome de Carneiro Otávio para Carneiro Otário, em todos os documentos, citações póstumas e registros púbícos do assassino. Nem a certidão de óbito se safou. A reeleição foi comemorada com foguetório, muito peixe frito e muita bebedeira. Sem garçon pra servir, a comida foi só enfeite. Todos se divertiram. Se divertiram tanto que deixaram para trás as histórias dos pescadores, de Macaco Maurício e de Carneiro Otávio.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Coragem Moderna

Tomei leite com Toddy a vida inteira
Hoje eu tomo cerveja
Nunca tive coragem de colocar toddy na cerveja

Eu comi com colher a vida inteira
Hoje é garfo e faca
Nunca tive coragem de encolheirar coisa séria

Eu sentei no chão a vida inteira
Hoje eu uso a cadeira
Nunca tive coragem de cair da cadeira

Eu tive medo de pivete a vida inteira
Hoje comprei canivete
Nunca tive coragem de matar um pivete

Eu chorei por amor a vida inteira
Hoje eu faço chorar
Nunca tive coragem de me declarar

Eu tive coragem a vida inteira
Hoje eu não tenho nada
Nunca tive coragem de me encorajar


terça-feira, 27 de novembro de 2012

Virulências inevitáveis

Algumas virulências
assombraram os meus sonhos
Os "para sempre", demências
sempre ditas em fé cega
mostraram-se só roncos
não os ouço adormecido
e me acordam adoecido
sempre para a triste constatação
que sonho é só ruminação
de vidas imastigáveis
livros incompletáveis
pretensões imensuráveis
promessas vazias como um olho de um cego
promessas inúteis como um homem com ego

Estranhas virulências
bateram minha cabeça
no travesseiro umidecido
pelas nuvens que eu quis soltar
mas que o sopro do despertar
congelaram em meu olho de vidro
Há tantas afogado em leite materno

fui cuspido
pelo asco da morte e sua foice.

fui despido
pelo grito da mórbida noite

Que jamais me esperará pra puxar o dia
jamais me esperará.

E eu ainda escalo o monte
para ver o sol nascer
Mesmo vendo tantos esqueletos chisparem imundos
em inútil queda
Mesmo vendo meus cabelos caindo junto
sem nenhuma festa
Mesmo escrevendo com fraco punho
este monte de merda.








O Caco

A água melada
Escorre
Chuveiro abaixo
E o vapor-fumaça
'scapole
Chuveiro acima
Os lábios d'água pincelando
o seu amor no banho

Mas é só invenção
O selo, na fatídica noite
de uma declaração.
Da vida vem o coice
Anos antes das águas
Das peles enrugarem molhadas
Das descobertas engraçarem o jovem
Dele descobrir que as paixonadolescenenites
morrem, botadas a pique
bem mais rápido que amores à primeira vista.

Que não há pedra que resista
às infinitas gotas
dos diamantes de moças.

Que há carros mais rápidos
do que as pernas inúteis
humanas.

Que só os reis são mágicos
e, as conversas, fúteis,
bananas.

E, desde então
olhar nos olhos
é crime sem perdão
o amor vira o juiz
e o banho, ilusão.






sábado, 24 de novembro de 2012

Rômulo, o Rato inquieto.


Rômulo, o rato contador de moedas
Percebeu que os queijos solares
Só voariam de volta aos céus
Se ele comprasse o equipamento necessário.
Tentou da gasolina ao cigarro
Mas afinal, a resposta fatal
Era muito mais simples do que um manual
De engenharia nuclear.
O rato foi ao cartório municipal
E foi-se chamar esquilo
Afundou o rabo em cola
e depois numa sacola
Recheada de pêlos fofos
Assim os queijos voltaram a decolar
Deixando para trás os mofos
Levando o ratinho ao paraíso secreto
Das núpcias nova iorquinas
E lá nessas esquinas
Rômulo enfim avistou o sagrado sofá de veludo vermelho
E as putas de cabaré.
Mas lá nada tinha de engraçado
Nem uísque com café
Lhe deixava embriagado.
Então ele pegou o queijo lunar e desceu de volta para a noite que sempre fora a sua casa normal.
E deixou os queijos solares para quem gostasse de ser especial.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Me complexo demais


Poetizações complexas demais
Surgem no meu poente descrente
Vindas das inverdades profetizadas
Por um gnomo pretensioso
Que vive em meu coração
Doido
Doído
Perdido
Afoito
Assaz descritivo
Sim descriativo
Men-ti-ro-so

Eu jamais escrevo o que sinto
Pois jamais sei o que sinto
Pois minto
Pra mim mesmo
Sem saber que estou mentindo
À ermo
Para a minha própria poesia
E só me lembro da minha primeira garota
Ela ria
Sigo então borrando a poesia toda
Dando tiro para tudo quanto é lado
Inventando a sétima face do dado
Pra minha vontade de rima
Numa luta de esgrima
Com espada de papel
Num inferno congelado
Emoldurado no céu

Andreia, acorda!


Andreia enlourava a rua nova iorquina enquanto o azul do céu fazia os prédios amaciarem suas pontas agudas. O mendigo caolho confundia o sol com o brilho dourado do esnobado penteado daquela mulher valente. Demasiado “ado”. Brilhado, enfeitiçado, pintado, falsificado, derramado sobre as costas bem emposturadas de Andreia. Ela caminhava elegante, puxando coleiras invisíveis. Os homens vinham atrás, esquecendo a reunião e o nó da gravata dentro dos taxis amarelos que esperavam em vão o sinal se abrir. O trânsito parava para Andreia desfilar. E ela bem gostava de desfiles. Mas apenas dos seus. O sucesso de outras mulheres atraentes provocava o emergimento de pequenas fumaças de rancor dos poros corporais de Andreia. Poros cuja umidade fazia os homens delirarem esquinas atrás.
Andreia fantasiava com seus lenços coloridos sendo despencados da sua média altura, em alguns séculos passados. Seriam tais lenços o motivo de uma grande fila noturna de fidalgos pretendentes na porta de seu palácio. Cada pretendente traria um dos seus lencinhos na mão e uma vida a entregar. Mas, no século presente, ela se limitava a obliquar os olhos bem esquinados e esguios aos flancos urbanos. Vendo o julgamento masculino, ela terminava por costurar um pecado sorridente na boca, nos lábios de maçã envenenada. Os dentes frios como a neve de um contos de fadas. Esfriados por uma podridão que escondia-se dentro de Andreia. Ela ensaiava diariamente o cultivo excessivo das suas fortalezas, cujos tijolos tão belos morriam de medo das chuvas dos olhos. Andreia precisava sempre da maçã vermelha para égorcizar a sua fragilidade paranoiense. Sempre o veneno.
Provocação era o bacharel de Andreia. Esconder era o seu PhD.  Bem protegida, seu recato sumia. Nada de rabo de olho, de cirandas com os quadris despercebidamente, nada de lenços ao acaso. A beldade tinha seus caprichos mais excêntricos. Dentro do vagão do Subway Nova Iorquino, ela postava-se de frente para a janela da porta, o que possibilitava total transparência ao exterior. Enquanto as escuridões subterrâneas dos túneis  trovoavam do lado de fora em veloz carreira, Andreia aguardava o seu momento. Com o decote bem aberto, escondido entre os ombros do casaco e o sorriso picante entre as madeixas louras da franja, ela fitava o seu reflexo na janela até a hora certa. Quando um outro trem emparelhava-se com o seu no submundo, a loira começava com as provocações. Andreia chamava a atenção dos homens através dos rápidos vidros e ficava lançando olhares ferinos, mordiscadas de lábios, menções para se envolverem em lençóis e outras múltiplas vontades sexuais.  
Neste rápido lapso de tempo Andreia podia, em total isolamento e segurança, fazer as suas travessuras. Ela também fazia caretas, cenas e  enfeites com a língua. Enquanto durasse o  corredor visual entre as janelas, Andreia ficava buscando os olhos sonolentos dos passageiros do trem adjacente. Após os vagões desviarem-se e sumirem no escuro, Andreia imaginava o próprio triunfo dentro das mentes daqueles espectadores anônimos.  Na realidade, a maioria das pessoas não tinha visto porra nenhuma, pois quando um trem corre momentaneamente ao lado de outro eles, naturalmente, não trocam miúdos, ignoram-se mutuamente, é banal demais para atrair olhares. Mesmo assim, Andreia, na sua cegueira, tinha sempre certeza que fora avistada e sentida. Para ela, as cabeças baixas e a ausência de reações significavam que os espectadores tentavam esconder o interesse nela para, assim, não a bajularem descaradamente. Andreia sorria-se, sabendo que as pessoas a queriam tanto, mas tanto, que até esforçavam-se para demonstrar o contrário. Quanta esperteza, Andreia.
Enfim, numa tarde vagabunda, Andreia exacerbava-se estranhamente nas janelas de um trem. Peculiarmente, a emparelhação das janelas durou mais do que o usual, por razões desconhecidas. Esta oportunidade atiçou as mais íntimas vontades da danadíssima loira. Ela já começava a insultar as pessoas  gratuitamente com gestos excêntricos e facetas ridículas. Andreia secretamente abrira os botões da camisa e mostrava a parte mais escondida dos seios. Sua pele ardia e o júbilo acendia seus pavios. Num dos atos, ela quis provocar infantilmente mostrando a língua. Péssima ideia, Andreia. A tragédia sucedeu-se quando a rosada estrutura foi ejetar-se para fora, como uma cobra cega.
Descuidadamente, a janela permitiu que a língua fosse longe demais. A provocação embriagava tanto a cautela de Andreia, que o perigo rondou perto demais. As rodas do trem adversário engancharam a sua língua de veludo. Inevitavelmente  a embolação foi rápida. Como um carretel, a língua enrolou-se firmemente no metal e Andreia voou para os túneis.
 O trem zunia mais rápido que uma bala, o trilho rugia e Andreia gania. Como uma pipa, ela era arrastada pelas rodas vorazes do trem. A dor consumia o corpo da beldade. E ela ricocheteava nas paredes pichadas que passavam como um filme acelerado. O sangue espirrava nas paredes e Andreia parecia um balão puxado no espaço por um foguete. Ia  esfolando no teto do túnel como uma locomotiva humana de ponta-cabeça. Os ventos da velocidade desgringolada arrebataram as roupas provocantes da garota e pela primeira vez ela foi desnudada.
Andreia gritava e chorava por socorro, mas sua língua emaranhava-se cada vez mais, moendo-se nos ferros enferrujados do trem, e o sangue já alagava o túnel. O trem corria com violência e as explosões elétricas fritavam Andreia. Ela olhava com desespero para as janelas vibrantes, esperando que alguém visse a sua agonia turbilhoada.  Foi quando Andreia percebeu os sombrios olhares de dentro do trem. As silhuetas enfileiravam-se pelas janelas, todas de olhos inexpressivos a observar o espetáculo sanguinolento. As faces eram todas iguais, ternos pretos. As mulheres de véu. Parecia que o trem seguia para o funeral mais aguardado de Nova Iorque. A garota esvoaçante implorava por socorro, sua língua agonizava.  O trem rugia e o vento espichava as pálpebras do maquinista demonizado.
As vozes respondiam num  coro grave de uivos: Uuuuuuuh! E agooooora Andreia, e Agooooora?
Os metais do trem chacoalhavam a febre no corpo de Andreia. O desespero culminava na sua suplicante garganta. Mas nada adiantava. Os espectadores não pregavam os olhos, e as bocas ovalavam desemocionadas. Aqueles seres desconheciam a dó e Andreia conhecia a dor.
Com a diminuição da velocidade do trem, o corpo judiado de Andreia perdeu altitude, e veio arrastando-se lateralmente aos trilhos, boiando sobre o rio de sangue que descera de sua língua tripudiada. Ao parar na estação,  as portas do trem abriram-se e o ir e vir dos sapatos pisotearam a desgraçada. Para que a moça nua e antigamente apetitosa não fosse novamente içada pelo trem, um faxineiro devidamente cortou a língua dela, bem rente à roda, para que a perda de carne fosse a menor possível.  O mebro rosa esticado, ao ter a tensão aliviada, rebobinou-se tal qual uma fita métrica descontrolada, calando enfim a cãibra da boca de Andreia
 Em seguida, o homem varreu a infeliz e pequenina criatura para a sua pá, depositando-a numa lata de lixo. A garota murchara tanto que passara a medir pouco mais que um palmo grande. Andreia encolheu-se com frio lá dentro do lixo, tapando o que podia da sua nudez.  A multidão de luto aliviou-se das suas corriqueiras preocupações, para reunir-se em torno da donzela encardida. Todos aqueles comensais foram velar, numa reunião escura e solene, a humilhação de Andreia. A menina soluçava, enquanto a chuva escorria pelo seu corpo e levava embora o sangue da amargura.

domingo, 18 de novembro de 2012

Josué Negrão ainda corre.




Os trintobrilhos armaram uma cilada para Josué Negrão. Misteriosas espionagens pairavam sobre os ombros do homem, enquanto ele esticava seus passos brutos pelas vielas amaldiçoadas do gueto. A favela era dele, e ele era da favela. Em suas mãos chispantes, os cabelos crespos de sua última desafeta emaranhavam-se. Ela era arrastada, como um boneco, de volta ao pó do qual todos nós viemos. “Quis demais crioula, diz que não aguento duas vezes, agora vai aprender a respeitar nego de dente preto lá no inferno, safada.” , setenciava Josué Negrão, a quem ninguém questionaria. Apenas os trintobrilhos o faziam. Espertos trintobrilhos. Coriscos trintobrilhos.
Feroz,  Josué ganhava chão. E atrás dele a morte lambia o sangue da crioula. Tudo era noite e silêncio. Os casais interrompiam o coito em seus barracos adjacentes ao escutar as passadas do tirano. “Lá vem ele, mui puto, faz silêncio mulher”.  Josué distribuía ali e acolá os seus pacotes sérios em troca de ouro. Pacotes muito sérios. Ninguém brincava com eles, eram negociados na surdina, sempre com muita malícia e com os devidos ares importantes de quem trata de obscuridades. Ai de quem não pagasse. Josué arrastaria pelas tripas, com um sorriso ferino emoldurando seus dentes pretos. Há muito ele perdera o coração. Aliás. Há muito ele jogara fora o coração, em troca dos seus pacotes sérios.
Mas algo interrompeu os supetões do crioulo louco. Um ruído espalhava-se como finas rachaduras pelo silêncio liso da noite. Soluços vindos de algum lugar espicharam a orelha de Josué Negrão - Cuidado crioulo. Lamentos vindos da infância desarmavam facilmente a armadura de Josué. Dobrando o cotovelo da viela, os barulhinhos se esparramavam pelos dedos do seu pé cascudo. Os músculos do homem afrouxaram e a cabeça da mulher arrastada quicou nas pedras do chão. Ele foi, como um sonâmbulo, vencer a esquina, ter com a armadilha dos trintobrilhos.
A luz solitária do poste iluminava uma pequena criança de cócoras. A noite pesava sobre o gueto. As escuridões fechavam os olhares. Josué só podia fitar o garoto, que afundava misteriosamente a cabeça entre os joelhos. Sim, mais de perto, era um garoto.  O pequeno soluçava seu abandono. A noite solitária assombrava-o. A isca boiava no beco da maldade. A cilada se complicava. E as coisas sérias se complicavam para o crioulo.
Josué Negrão, com os olhos lacrimejantes, esqueceu a sua alma rancorosa e chegou ao consolo. Totalmente ludibriado pela pureza infantil. Chegou ao invólucro dos contatos humanos mais finos. A bolha da empatia sincera. A noite suspendeu-se, o tenso suspense do contato físico. Os dedos cruéis de Josué chegaram perto da cabeça cabisbaixa do pobre soluçante. Enquanto o espaço se encurtava,  a lua despencava e trazia as estrelas consigo, como uma rede de pesca ajuntando as sardinhas medrosas.  As árvores fecharam os seus galhos enfolhados, abraçando o gueto amaldiçoado.  As chapas de zinco zumbiram os ventos tardios. Tensos, os ratos espremeram os olhos roendo as unhas. Tarde demais.  Josué encostou.
No súbito subir da cabeça da criança, os anjos caídos acordaram e as trombetas rebentaram-se no chão, em estampidos que substituiram o badalar dos sinos do juízo final. Faíscas jorrantes cobriram Josué Negrão, ele derretia diante da cara espelhada do moleque. Um vidro de fogo, onde Josué podia enxergar o seu próprio medo latente. Seus dentes esbranquiçaram-se e o sangue recolhia-se ao esconderijo do coração paralizado. O mundo exterior sumiu, a distração de Josué abortou-se. A farsa dos trintobrilhos ferrou o gatuno, o muambeiro, o maior traficante que já existira no gueto. O maior traficante de todos, que agora desfazia-se em covardias.
A face metálica da criança brilhava como prata recém forjada. Lisa, sem arranhões de desgosto. Engoliu os soluços. Os trintobrilhos então se aproximavam, seguindo os rastros das estrelas despencantes. Desciam em fogo, cintilantes, em uma névoa febril. Sua fumaça tóxica penetrava no cérebro de Josué. E sussurrava: “Corra, vadio, corra até o fim”.
A máscara da criança trincou-se e caiu, espalhando no chão as migalhas reluzentes. Restou o rostinho de uma criança. Os traços eram de Josué. Mas os olhos, os olhos mais profundos do que o gueto, eram de Madeleine. As faíscas ardiam a pele cascuda de Josué, tal qual a saliva sedenta de amor de Madeleine fizera antigamente.  “Josué, volta... E o menino, Josué? Volta amor, volta! Pra onde você foi, onde você estava?”. Gritavam os trintobrilhos. Indomáveis, impiedosos, eternos perseguidores. Os trintobrilhos já infestavam a rua com as suas luzes e gases paranormais. Seus brilhos pontilhavam-se através da fumaça densa. Aí Josué correu.
Correu como nunca, correu como as suas antigas presas corriam dele próprio. Mas a bala de Josué era sempre mais rápida. E os trintobrilhos também não perdoariam. Vinham de longe, de intensas, porém esquecidas, rebobinações do tempo. As pequenas lembranças de Josué voltavam à tona, para nunca mais submergirem.  E como eram assombrosas tais lembranças! De tanto amor encardido e vergonhas escondidas. De tanto orgulho de rei do gueto, agora ele fugia desesperado.
Os dentes de Josué já tinham caído, e ele corria sem preocupar-se com isso. Que se danem os seus dentes e o medo que eles metiam. Josué só queria fugir dos trintobrilhos que queimavam as suas costas nuas. Os dedos de Madeleine arranhavam carne viva.

Volta e meia os trintobrilhos sossegam. Acompanham lá de cima, como falcões, a carreira desesperada de Josué Negrão. Deixam ele ofegar, recuperar as forças, cicatrizar as queimaduras, imaginar-se livre. Mas é tudo diversão para os algozes. O dia já surgiu e morreu de novo, o gueto ficou para trás, junto com os pacotes sérios. E Josué Negrão ainda corre.



Sobre pessoas e poemas

Poemas voam ao céu
Pessoas caem no chão
Poemas vivem de mel
Pessoas vivem de pão

Tão sem solução
resolvo o problema
Receito ao patrão
comer um poema


Para a nova geração da graciosidade entre poetas, saudade dos antigos graciosos. Fere aos próximos minhas rudes palavras de poeta grossioso.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O tempo é um moinho

E as coisas antigas
tomam seu rumo de sempre:
As mesmas fofocas das tias,
as eternas fotos, a mente
do doutor de toga
que eriça o mesmo bigode
dos filmes velhos, a roda
de um semi-novo pagode,
substituto do samba.
Mas continua sendo moda,
e só me resta a corda bamba,
corda nem boa nem má,
moda aqui moda acolá,
fico suspenso no ar,
sem cair pra nenhum lado.
Nem espanha com touro.
Nem lisboa com fado.

Travestido de mouro,
sou o neutro embaçado,
o lixeiro calado.
Pra ver se não escolho nada,
ver se esquecem minha fala.


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A queda do louco

Admiro é o louco
que mastiga os contratos
e fuma os jornais.
Embriaga os fatos
que falam demais.

E sem orgulho
perde a coroa
engole o presente,
o futuro arpoa.

Pula de cima
no porvir do escuro.
Não coça a cabeça
pensando se é fundo

E vai abrir os braços branquelos,
o seu peito nu.

Na queda aos pregos
não tranca o cu.

De olhos fechados,
silêncio de quem,
beijou os carrascos.






segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Noite de um halloween azul

Pois a noite invade a cama
tudo é azulado
menos o teu lábio.

É a maçã que morde
meu peito explodido
no enlace forte
de teu pé, ardido.

Os uivos à rua,
os membros nossos
misturando azuis
nos lençóis dengosos
mais brancos
do que o que resta
da mordida
do furtivo abrir dos teus olhos.


E nem as duas vozes explicaram
madruga à fora
qual nova amora
brotava ali,
fugindo à norma
Azul, a noite a ti.


domingo, 4 de novembro de 2012

Afogo em ti

Esquecida
no fundo do aquário
minha vela queima
e o futuro previsto se finda
em remastigações da teima

Fecho os bronzes espelhados
do meu protetor solar
pros teus olhos derramados
que vem de um céu que eu nunca vi.

E a lâmina de ti
vai subindo
temerosamente,
a chama espicha
fazendo o discurso independente
e a Lava dos teus olhos
o faz também,
queimando, e sente.
O quê? Diz!
Desvia os olhos também?

Meu bronze, meu pranto
já é estanho
e derrete...
Que a noite se feche!

Sobe, me escala, me engana
proibido demais
pra nossa vida cigana
quente demais
pra nossa pele humana.

Dois filhos da vida
jogados na esquina
das inesperações
do baque!
Talvez ilusões,
um papel?
desamasse...

E sobes...
Me ergo, temo
submerso
você tremeu mas veio
tentemos, querida
em inglês
fugido?
Ou português?
Libido.

Os anos talvez
corram demais
pra ver
lágrimas retidas
poesias não escritas.

Perderemos de graça
a nossa bandeirada?

Não vai acontecer?
Esconderemos e diremos que ninguém viu?

Mas...Aconteceu.
Subiu.
Se for perder,
perdi.
A vela morreu
em ti.
Meu fogo
é teu.


sábado, 3 de novembro de 2012

Homenagem a meu irmão Bruno

Serelepe e esperta
a vovó a tem meta
falar para o bruno
achar o seu rumo

anda tao desorientado
o bochecha mimado

Sirene na casa
se afasta a asa
da mãe tão xingada

reclama da louça
quem lava é trouxa

da preguiça
da inercia fedida
e a bunda xadrez
escolhe o ouvido da vez

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Lúcio Estanho e os Ventos do Sul

A Morbidez

Lúcio Estanho havia se cansado de passar as manhãs amargas atrás do vidro da janela. O vidro estava rachado e distorcia o mundo que seguia as suas automações do lado de fora da casa sombria. Todos os carros que passavam eram trespassados pela veia que sempre existira naquele vidro. Temeroso, Lúcio observava a rua selvagem e os seus postes amarelados pelo sol. Um ambiente independente, externo, descontrolado, onde a nudez é exposta ao natural desenrolar do mundo. Onde os perigos e as belezas se trombam ao acaso. Onde os homens vagam soltos e o vento uiva desimpedido.
Através dos olhos que coçavam com a luz solar, a mirada de Lúcio era furtiva e aflita. Ele postava-se como um espião à espreita dos tolos. Dessa maneira, durante as longas manhãs, o raquítico rapaz ficava cuspindo morbidamente no vidro. No ritmo da respiração ranhosa, as suas costelas espichavam a pele, sulcando-a, e em seguida ela alisava. Este revelar-se e encobrir-se da magreza de Lúcio ocorriam sob uma triste camisa preta engomada.
Volta e meia Lúcio praguejava contra alguns moços de bigode que passeavam ao lado de cachorros babões, mas nenhum deles percebia os resmungos instrospectos. Diante de tal enfado, não era raro Lúcio soltar berros revoltosos que lhe arranhavam ainda mais a garganta. Esses horríveis gritos sempre faziam o vidro da janela inteiro trincar-se, quase à ponto de explodir. A superfície da janela virava água espumosa, ficando opaca pelas infindáveis rachaduras que então lhe cobriam. Somente após cessarem-se os ecos é que os vidrinhos recuperavam-se, restanto novamente apenas a única e eterna rachadura central. Isso revoltava ainda mais Lúcio Estanho que, desolado, afastava-se correndo.
Da mesma maneira que o vidro sempre cicatrizava-se das rachaduras, findo o grito, as três flores voltavam às suas cores originais, uma vez que tais tempestades sonoras sempre enegreciam-lhes as pétalas. A Senhora Urânia - mãe de Lúcio - era fanática pelas suas três flores, as quais ela regava todos os dias com arguta diligência: um Girassol, uma Margarida e uma Rosa.Três belas flores que enegreciam-se diariamente antes do almoço. Durante a recuperação das suas cores, o trio sempre as confundiam entre si, devido ao atordoamento sonoro. O Girassol se recobrava do medo com as pétalas vermelhas ou brancas, enquanto a Rosa ou a Margaria se viam amarelas. Inevitavelmente e sem razão esclarecida até então, no final de todas as noites as três flores secavam. De manhã, ao raiar do sol, a floricultura trazia um novo trio e recolhia as podres para serem hospitalizadas, o que a Sra. Urânia estabelecera num contrato vitalício.
Como de costume, após a vigília matutina, Lúcio Estanho sentava-se carrancudo na ponta da gigantesca e estreita mesa de jantar. Mesa cujo grande comprimento estendia-se por toda a sala, mas cuja minguada largura era suficiente apenas para um prato repousar. Lúcio aguardava assim a sua mãe trazer a cotidiana sopa fria de ervilhas, muito verde e viscosa. A prática do canto esganiçado, o trio de flores e a fétida sopa de ervilhas formavam as três inabaláveis paixões da Sra. Urânia. A sopa fria era servida pontualmente todos os dias, também para as três flores novatas. Para Lúcio, a maldita refeição só era servida após os exatos 11 minutos que a Sra. Urânia demorava para pentear o seu cabelo - o de Lúcio - , que desgrenhava-se à qualquer irritação.
Durante esses 11 minutos, Lúcio batia incessantemente os talheres na mesa. Por mais que ele nunca houvesse comido nada de diferente em sua vida e não possuisse nenhum motivo para esperar alguma mudança no cardápio, Lúcio sempre se entristecia ao ver a sopa fria, verde e viscosa. E ela ainda era servida estupidamente num prato raso, o que tornava o desalento do moço ainda mais melancólico.
Após as suas expectativas vãs serem despedaçadas pela visão verde, Lúcio exclamava com os dentes amarelos e cerrados:
- Que ódio desta sopa horrível e asquerosa, Mamãe! Como você suporta o seu cheiro, o seu gosto, essa textura viscosa? Não vê que é ela que adoenta suas florzinhas? Um dia morreremos nós, cairemos duros e verdes no chão, de tanto asco! Não vou comê-la de novo, farei a minha própria comida de agora em diante!
Enquanto ele falava, os seus olhos arregalavam-se e o seu maxilar tensionava-se para trás, fazendo ressaltar alguns tendões esticados no pescoço. Sua voz saía fraca e com as sílabas tossidas. A Sra. Urânia escutava os reclames do filho com os olhos lacrimejantes, que piscavam e giravam compulsivamente, sem aquietarem-se em nenhuma miragem tranquila.
Desorientada, ela lamuriava-se em voz esganiçada:
-Oh, meu pobre filhinho, não fale assim comigo, meu coração dói tanto! A Mamãe faria tudo por você, mas as suas mãos são incapazes de cozinhar qualquer outra coisa além das suas queridas ervilhinhas. Não fale assim delas, olhe como elas são boazinhas com você...  Por favor perdoe-me e deixe as coisas como estão, não suportaria vê-lo cozinhando sozinho, meu pequenino! Ai de mim, mataria-me! Tente entender sua pobre mãe...
Após engolir em seco as últimas palavras esquecidas, ela tensionava um sorriso estúpido, que esticava o seu rosto cansado.
Insatisfeito, para não variar, Lúcio acabava por ter dó da mãe e cedia às palavras rogadas por ela. Ele não queria comer a sopa de ervilhas, mas muito menos queria cozinhar. Entre os dois desconfortos, escolhia aquele que era confortável à sua mãe esbaforida. Então almoçavam os dois em silêncio, cada um em uma ponta da comprida mesa, sob o olhar das três flores tristonhas.
O dia de Lúcio se estendia tediosamente até a hora de dormir. Ele teclava notas dissonantes no velho e bolorento piano, estourava plástico bolha e, nos seus momentos de medo, escondia-se embaixo das camas. Lúcio tinha muito medo dos barulhos que vinham da rua habitada e, principalmente, dos ventos que silvavam pelas frestas das raras janelas da casa.
Os Ventos do Sul traziam ar fresco e pássaros cantarolantes, levando de volta consigo as folhas mortas e a fumaça dos automóveis. Embora comuns, muitas pessoas tratavam-nos como simples ir e vir dos ares, ignorando as velhas lendas sobre as distantes terras meridionais de gases misteriosos. Lúcio era o único cidadão que urgia de medo ao escutá-los: Desde que nascera ele soubera que o seu pai havia sumido em uma viagem ao Sul, deixando sozinha uma esposa grávida e cacarejante. Tinham o pai então como morto. Era um navegante que enfrentava os medos nos mares azuis e misteriosos do Sul  e que subitamente sumira com sua coragem e seus olhos frescos. Por isso, ao sentir os Ventos do Sul batucarem na sua janela rachada, Lúcio ficava a gemer seus 34 anos embaixo da cama, suando pétalas negras e cospindo orações engasgadas.
Os ruídos vindos da rua e dos ventos alternavam-se com os cantos insuportáveis da Sra. Urânia. Ela perdera a voz da sua juventude de banhos quentes ao envelhecer amargamente nos banhos frios. Sua voz ficou estridente, esganiçada, como um metal enferrujado arranhando um vidro fosco. Sua desafinação era tamanha que, enquanto soasse, as janelas trincavam e as três flores enegreciam. O pobre Lúcio também era corroído pelos cantos maternos, que o faziam ficar batendo a cabeça nas paredes. Mas batia com pouca força, pois tinha medo de machucar-se.
Quando dormia, sob o retrato sorridente e distraído do pai, Lúcio Estanho padecia de pesadelos. Os temas destes maus sonhos limitavam-se aos ventos do sul e à rua atrás da janela. Nos primeiros ele era molestado por mares bravios, e na segunda ele derretia sob o sol escaldante, aos olhos ameaçadores de transeuntes. Lúcio acordava várias vezes ao longo das noites. A cama coberta de pétalas negras e as costelas ofegantes a esticar os velhos pijamas infantis.

O Estouro

Veio o estouro quando a agonia acumulada em Lúcio Estanho chegou ao seu limite. Pela primeira vez uma bela garota passou pela janela de Lúcio, radiante, bem diante dos olhos do pobre diabo. Ele tentou fazer-se notar, mas não pôde, estava preso em outro mundo, incomunicável. Transbordou pétalas negras infindáveis.
 Eis que a primeira vontade de Lúcio de trespassar o vidro faiscou. Surgiu uma pequena chama em seu pensamento. Ele então começou a sentir uma grande repulsa pela vida na casa. Odiava o olhar estúpido da mãe ao servir-lhe as odiosas sopas frias e sentia o julgar bigodudo do retrato do pai reprovando a sua inércia covarde.
Os dias começaram a ser mastigados mais lentamente por Lúcio Estanho, engoli-los igualmente doloroso. Os pesadelos tornavam-se mais raros e muitas vezes o sono não vinha. Cada vez mais impaciente, Lúcio destratava a mãe e andava de um lado para o outro sob o chão bolorento, pensando como sairia de casa. Após mendigar coragem nos lençóis, certa noite Lúcio deixou preparada uma mochila com algumas roupas e com todo o dinheiro que tinha.
A única renda da família provinha de uma pensão paga pelo governo mensalmente, devido à morte do pai. A Sra. Urânia podia então fornecer uma pequena mesada ao filho, pois não gastavam muito. Lúcio, por sua vez, não gastava nada, pois não haviam vendedores nos corredores da sua casa. Tal fato lhe rendeu algum dinheiro após 34 anos de ajuntamento.
Fugiu como um rato na noite, tentando não fazer barulho. Ao abrir a porta, os ventos noturnos resvalaram em sua pele pálida. Seu corpo inteiro gelou, pétalas negras pingavam na soleira da porta. Lúcio sentiu suas pernas bambearem frente à escuridão da rua, que em algumas horas seria fustigada pelo medonho sol. As árvores chacoalhavam ao longo da calçada e suas folhas secas eram carregadas para longe.
De súbito, Lúcio foi arrancado da sua tontura por um grito esganiçado. Com uma expressão esticada e aterrorizada, a Sra. Urânia flagrava o filho diante da porta aberta. Ao encarar os olhos ensandecidos da decrépita, Lúcio deu um passo à frente, em direção à rua. Aos berros, a mãe pôs-se a correr loucamente em direção ao fugitivo. A reação de Lúcio foi bater a porta e sumir na noite.
Caminhou depressa e ainda olhou para trás, vendo a casa fechada, imóvel, silêncio. O susto fê-lo esquecer-se momentaneamente dos medos anteriores: ventos sulistas, ruas, sóis. Caminhou com seus passos fracos e inconscientes por tempo indeterminado, até o dia começar a clarear. Com 34 anos de energias acumuladas em seu esqueleto, Lúcio não sentiu sono.
Seus olhos fugidios observaram as primeiras empregadas domésticas saírem a passos gordos para comprar pão. Olhou temeroso os primeiros motoristas sonolentos e as crianças vibrantes que iam às escola. Distraído com as colocações internas acerca das novas visões que ele só vira antes por imagens ou pela janela, Lúcio planejava as suas futuras conquistas. Estaria sem medo, interagindo com todos os transeuntes, teria colóquios sorridentes e atraentes com todos.
Mas ao olhar para fora de si, Lúcio mal conseguia olhar as pessoas, com medo de ser percebido. Cada vez que os olhares ameaçassem cruzar-se, Lúcio abaixava os olhos, dentes batendo de apreensão. Por mais remota que fosse a possibilidade de lhe encararem a visão, graças à sua desagradável aparência, Lúcio temia.
Espalhafatoso era Lúcio em seu andar, dava grandes giros para desviar-se dos demais pedestres, temendo o esbarro. Também ensaiava mesuras exageradas, arqueava seu corpo ao menor farfalhar das roupas alheias, num pedido de perdão servil. Finos ganidos saíam do fundo da sua alma à cada surpresa que, invariavelmente, trazia um sobressalto. Um latido, uma buzina, uma porta aberta de repente, um apressado, uma palavra dirigida a alguém perto de Lúcio – e ele achando que era consigo. Todas as manifestações vitais da sociedade que germinava por ali assustavam-no. Lúcio esforçava-se para manter a calma. Não conseguia. Seu peito gelava-se constantemente e sua pele formigava ao menor rumor. Vez ou outra brotavam pétalas negras na sua testa ou nas suas tossidas roucas. Grossas bagas de suor frio deixavam rastros na face branca de Lúcio, enquanto seus olhos irrequietos insistiam um movimento atento e fugaz.
O Sol ainda não ganhara as ruas, a única iluminação provinha do céu, que esbranquiçava-se lentamente, esfumaçado. Lúcio sentia muita fome e já fraquejava, seu fôlego ia se esgotando diante das ruas cada vez mais movimentadas. Bambeante, ele atravessou a porta de uma padaria atraente que surgiu. Sentou-se vacilante no balcão com a face entre as mãos, aguardando a sua condição física retornar. Uma intensa vergonha tomou conta do seu peito magro, a sua apresentação lhe preocupava mais do que o seu iminente desmaio. Entrara pela primeira vez em um estabelecimento comercial e nem mesmo postura majestosa tivera. Fora, pelo contrário, medíocre em sua primeira exibição ao mundo. Nada de olhares admirados e acolhedores vindos dos demais clientes. Nada de sorrisos tranquilos e apresentativos por parte de Lúcio. Também não houveram colóquios com recém-conhecidos ou informes sobre as novidades a serem descobertas pelo garoto novato. Lúcio nem sequer erguera a fronte para tentar saciar suas expectativas.
Após alguns minutos ele sentiu seu físico melhorar. Ergueu-se e observou como funcionava o atendimento para o café-da-manhã: as pessoas serviam-se em um buffet e levavam o prato para ser pesado. A bebida era no balcão, face a face e com vozes. Lúcio seguiu esta ordem, contente por não comer ervilhas pela primeira vez na vida. Suas mãos trêmulas contribuíram para que derrubasse uma colher de açúcar e derramasse o café. O líquido queimou-lhe os dedos, e ele derramou uma lágrima em forma de pétala negra, acompanhada por um soluço choroso.
Equilibrando a bandeja com dificuldade, o rapaz aguardava a sua vez na fila do caixa. Curioso, olhou ao redor e para os companheiros de fila. Impassíveis, esses companheiros olhavam apenas em frente. No caixa, uma moça de olhos verdes e rosto encantador atendia os clientes, que eram chamados pela sua voz doce:
-Próximo...Bom dia, como vai ? São 5 cinco moedas senhor, obrigada, tenha um ótimo dia! Próximo... - Lúcio escutava pasmado os adocicamentos daquela voz. Distraiu-se.
 Quando chegou a sua vez, ele assutou-se ao ouvir o "Próximo" tão doce vindo de tão perto, do pé do seu ouvido. Adiantou-se num pulo, postando-se com a bandeja no balcão, num súbito lapso de vividez. Olhando pela primeira vez nos olhos de uma companheira de espécie, Lúcio sentia seu interior aquecer-se e vibrar. Ainda mais em olhos como aqueles, verdes , belos, donos da mais embriagadora beleza. Lúcio enfim estreiou um sorriso em seus lábios virgens, o temor rebaixara-se. Disse:
- Aqui está... - E aguardou atento a reação dos olhos verdes. Nada ocorreu. Ela parecia olhar ao longe. Lúcio então percebeu que ela jamais encarara seus olhos. Os olhos verdes miravam algo que trespassava a pele pálida de Lúcio, quase transparente. Receoso por ter sido ignorado, ele arredou timidamente a bandeja alguns centímetros para frente, como um cão que pede comida. Lúcio já encolhia novamente o corpo e  já sentia os tremores anunciarem o seu retorno.
Disse enfim num gaguejo falho:
-M-m-moça? - Olhos distantes:
-Próximo?! - Disse ela, com a voz doce e os olhos verdes a mirarem paisagens para além da silhueta de Lúcio Estanho.
Sem reação e com o coração paralisado, o nosso frágil homem foi empurrado por trás. O movimento não foi nem brusco e nem educado, apenas seguiu um fluxo natural, deslocando Lúcio para o lado. Um homem de bigode e suíças tomara a frenteira e já pesava o seu prato, sendo agraciado pelo olhar esmeralda da moça.
 Lúcio teve vontade de chorar. Seu sangue desceu. Apoiando a bandeija no balcão ao lado, sentou-se boquiaberto. Fora totalmente ignorado, como se houvesse um grande pacto entre todos ali: “Lúcio Estanho não existe”. Uma raiva foi surgindo nas suas entranhas, os resmungos mordiscavam seus lábios.
Com os olhos faiscantes, Lúcio começou a mastigar os seus pãezinhos brutalmente. Bebia o café fumegante em largos goles, que volta e meia escorriam pelo seu queixo franzino, misturando-se com algumas pétalas negras. Ríspido, ordenou à garçonete do outro lado do balcão que lhe desse um guardanapo. Enquanto a raiva crescia nos olhos injetados de Lúcio, a mulher gorda permanecia muda, inerte e distante. Lúcio apertou a língua áspera entre os dentes gastos pelo ranger. E, contraindo todos os músculos, disse, numa calma forçada:
-Senhora? - Em resposta obteve o silêncio e a sensação do ridículo.
Enquanto Lúcio ajeitava a sua perplexidade, o mesmo homem que roubara o seu lugar na fila também pediu um guardanapo à funcionária. Ela sorriu com palavras graciosas e entregou para o homem alguns papéis brancos.
Antes que o homem pudesse agradecer, Lúcio vociferou, ignorando todos os seus temores:
-Vaca! Está maluca? Quem você acha que é, vadia? Olha o que faz com um cliente! Me ignora completamente, atende este outro crápula que se acha importante! Você está fodida!
Ao vomitar essas palavras, Lúcio Estanho esganiçou a voz e levantou um dedo magro e revoltoso. Seus cabelos arrepiaram-se e as pétalas negras escorreram... Mas a insolência durou pouco.
Lúcio calou-se e arregalou os olhos amendrontados quando o homem de bigode virou-se bruscamente na sua direção, como se estivesse em plena resposta furiosa. Lúcio fechou os olhos e ergueu as fracas mãos para proteger a face. Mãos que nunca foram e nem serão capazes de protejer olho algum do arroxeamento.
Não houve improprério nem soco. Sentindo-se no vácuo do tempo, Lúcio abriu os olhos com dificuldade, peito gelado, tremedeira. Viu que o homem risonho apenas pegava o pote de açúcar ao seu lado. O homem estendia o braço musculoso em frente ao nariz de Lúcio, sombreando os pãezinhos como se não incomodasse ninguém.
Após invadir tranquilamente o espaço ocupado pelo outro e servir-se do pó doce, o bigodudo continuou feliz na sua refeição. A servente agora lixava as unhas distraidamente e cantarolava a paz. Por mais que Lúcio tremesse de medo do homem forte, o seu desorientamento quanto ao andamento dos fatos o fez ignorar alguns receios. Ele perguntava-se se estava louco ou se era um fantasma perdido no limbo. Haveria algum acordo entre as pessoas dali para fingirem que não o enxergavam, só para sacaneá-lo?
Lúcio percebia a sua existência, mas não era correspondido. Sentia-se vazio, doído. Olhou para as suas mãos feias, abrindo-as e fechando-as rapidamente. Mordiscou os lábios e piscou repetidamente os olhos impacientes. Após balançar a cabeça, observou o que ocorria ao redor. O mundo seguia em seu ritmo normal, comiam, pagavam, notavam-se, conversavam, iam-se. Nada na padaria sugeria o sussurrar subterrâneo de um complô contra o insignificante Lúcio Estanho. Aliás, ele era demasiado ignorável para ser o venerado e principal alvo de tão bem bolada armadilha. Lúcio era demasiado nulo, desconhecido, um zero à esquerda.
Lúcio resolveu arriscar uma nova tentativa. Mais com curiosidade do que com o constante medo. Perguntou as horas para o senhor que lia um jornal ao lado com uma grande e circular barriga. O homem virou a página amassada e continuou sua leitura, impassível. Lúcio agora decidira ir até o fim. Começou a falar nervosamente no ouvido do velho, condenando a conduta  insolente dele. A reação do velho foi passar outra página, mirando a seção colorida dos esportes. Com as mãos suadas e crispadas, Lúcio agarrou o casaco do senhor e começou a sacudi-lo com violência, urrando sílabas descontroladas. Sua voz saiu arranhada e sufocada, como se sumisse por falta de ar. As feições de Lúcio tensionaram-se, sua pele ganhou um efêmero rubor. Enquanto o corpo do velho agitava-se molemente, o jornal farfalhava. Ofegando, Lúcio largou o casaco marrom e curvou-se esgotado. Nada surtia efeito. Com as roupas amassadas, o velho prosseguiu sorrindo e lendo o seu jornal.
 Lúcio Estanho agora corria em direção à porta de entrada - e saída -, fazendo grande alvoroço, embora ninguém reparasse. Tropeçou em várias moças e por fim jogou seu corpo frágil  contra a porta, que escancarou-se ao sol. A luz solar fez os olhos de Lúcio sentirem câimbra. Tapou-os com o braço, ganindo, e seguiu cambaleante, deixando um rastro de pétalas negras. Caminhou por muito tempo sentindo-se ardido, perdia o fôlego, lamuriava-se como um cão sem dono.

Esta foi a manhã de Lúcio Estanho, um invisível alérgico a sóis, que caminhou, temeu e tremeu antes mesmo do seu primeiro almoço fora de casa.

Penetrou em uma praça. Sob a sombra de uma árvore, o estômago do nosso miserável fugitivo roncava solitário. Pelo menos o sol não mais fustigava a alvíssima pele de Lúcio, que já arroseava. Alguns mosquitos rondavam a sua testa suada. Grossas madeixas de cabelos negros juntavam-se com a umidade, pregando na pele em desenhos escorridos. Lúcio recordava-se do grito materno ao perceber a perda do filho. Sentia calor por fora e frio por dentro.
Após o descanso, Lúcio pôs-se de pé com dificuldade. Estava fatigado, caminhara como nunca. Do quiosque da praça vinha um cheiro apetitoso de comida requentada. Desviando-se das poças de sol no chão, o cabisbaixo Lúcio traçou uma rota ensombreada. Haviam alguns poucos adultos de mãos dadas com os filhos a comer cheirosos quitutes. Ao ver as famílias unidas Lúcio deixou os seus olhos pesarem e ficou imaginando-se ali, agarrado aos seus próprios pais, seguro em mãos fortes. Ele então balaceou a cabeça para afastar tais especulações amargas.
Constatou que teria que enfrentar o terror das filas caso fossse comer as comidas cheirosas. Caiu em total desalento. Seu coração sufocava-se naquela impotência, onde haveria alguma solução menos dolorosa para a sua fome?
Na sua inquietez, Lúcio conseguiu ver uma criança abrindo um barulhento pacote de salgadinhos industriais, que retirara de uma máquina. Lúcio chegou perto do trambolho. Aquela comida, que saía como mágica, não cheirava. Mesmo assim a criança deliciava-se. Isso bastou para que ele iniciasse a sua empreitada para conseguir um salgadinho inodoro.
Diante da máquina, Lúcio contemplava a superfície envidraçada de moldura negra. Ele tentava entender o estranho mecanismo daquele monolito perdido, proveniente de uma civilização até então desconhecida.
Da mofada biblioteca do seu pai, Lúcio só lia os livros de figuras luzentes e coloridas. As poesias empoeiradas eram tacitamente ignoradas. Ele observava aquela multidão de letras e palavras sem salivar. As imagens que eram montadas nos novelos imaginativos de Lúcio não faziam sentido para ele: Homens fazendo amor com dríades - O amor se faz? Aliás, o que era o amor para Lúcio? - mulheres aladas costurando rios de lágrimas que caíam dançando as canções das velhas violas, tocadas por mágicos deprimidos que viviam no fundo do mar, mágicos que nas horas vagas dobravam papéis de seda fazendo pequenos corações, que subiam, dourados, junto com as bolhas deixadas pelos cardumes em festa. Cardumes que vinham de Pasárgada com as boas novas acerca do rei, velho amigo do mágico, e que a ele traziam os alcalóides, e ao rei levavam as notas de uma valsa, como presente de gratidão. Valsas embaladas por sereias e outros seres mitológicos sorridentes, que nada tinham de monstruosos, e que viviam lançando confetes de açúcar pelas colinas da Eurásia. Seres que contavam as horas através do correr das nuvens algodoadas, nuvens que viravam carneirinhos fugidios, salteando de estrela em estrela rumo ao sol...
Lúcio nada via nessas desconexões desvairadas e tinha-nas por loucuras para entreter crianças tolas ou outros loucos. Para ele as novidades não tinham o sabor inspirador das verdadeiras novidades, elas mais o embaraçavam do que o entretiam.
Assim, Lúcio ficou a metrificar a réplica de geladeira, matutando como faria para obter o seu lanche. Alguns botões retangulares com desenhos e escritos coloridos, orifícios e luzes cintilantes, além de um visor que nada dizia. Entendendo mais ou menos onde que enfiaria o dinheiro, Lúcio observou impacientemente todas as suas notas serem repetidamente engolidas e regorjitadas. Após tentar a grande maioria delas, ele já acumulava fome e impaciência. Um emaranhado que pesava tanto sobre seus ombros que fazia os rebuliços virem acompanhados de pétalas mais negras do que nunca. Lúcio já cospia no vidro da máquina. Largou as notas velhas no chão, que se esparramaram como folhas secas, e começou a dar pequenos socos surdos no vidro, mas a máquina o ignorava. Gesticulava de modo aflito para todos as crianças e adultos em volta, a se divertirem com os quitutes de mãos dadas. Ninguém respondia, ninguém percebia as súplicas.
Com os olhos jorrando lágrimas e pétalas negras, Lúcio Estanho enfim sucumbiu à loucura daquela situação. Numa explosão de desespero e angústia, nosso herói maltratado foi-se em disparada. Tropeçava, fraquejava, ofegava, mas desta vez suas pernas não cediam.

A Rebobinação

Lúcio correu impetuosamente de volta para casa, com a mente em convulsão. Escassez de lógica e excesso de humilhação. Precisava da sua costumeira casa, que sempre estava nos conformes da razão. Precisava também da sua mãe para lhe pentear o cabelo e alimentar a sua tripa faminta. Precisava demais de tudo.
Em sua desgraça, Lúcio aproximava-se de casa. Ou melhor, do lugar onde outrora fora a sua casa. Ao invés de cair morto ou de entrar em pânico, ele sentiu apenas a sua mente esvaziando-se, fruto da mais intensa perplexidade já sentida por homem algum. Vivia uma fantasia, algo de estupendo, um passe de mágica ocorrera, sombras paranormais cerceavam a vida de Lúcio. O mundo real lhe enganava, pois não havia outra explicação para o sumisso da antiga casa de Lúcio.
Restava um lote vago com um gramado mal cuidado, muito escuro. Árvores retorcidas e feias ocultavam mais ainda o seu interior, já ofuscado por uma cerca de madeira. Lúcio seguiu o instinto, abrindo um portão enferrujado e rangente. Não raciocinava mais, aceitou a  condição onírica de suas presentes vivências, apenas contemplava o que lhe ocorria com atenção.
Pisou sobre a grama feia e avançou pelo misterioso lote, contornando as árvores negras e os seus galhos pontudos. Em poucos instantes os barulhos urbanos já eram inaudíveis bosque adentro. Eis que uma clareira atraiu o caminhar de Lúcio. Em meio àquele lugar misterioso e escuro, um feixe solar destacava um lugar que parecia-lhe familiar, embora desconhecido. Sentiu um 'déjà-vu' intenso. As árvores e seus braços abriam como cortinas uma cena silenciosa e sepulcral. Duas pedras faziam o temido papel de duas lápides, já judiadas pelo tempo, velhas.
 Sombras envolviam o coração de Lúcio, estranhas sensações denunciavam o quão macabro fora o caminho percorrido pelo rapaz. Um suspense indagava o que mais viria à partir daí, nesta inexplicável sequência de fatos. Um homem normal não suportaria tamanha icógnita, tamanho maltrato ao nosso medo e aconchego cotidiano, e Lúcio Estanho era demasiado normal em suas fraquezas humanas, demasiado medíocre em sua insignificância. Temia o mundo antes mesmo destas aberrações tirarem-lhe a sanidade. antes mesmo de ter nascido. Sempre acovardava-se e chorava em busca de ajuda e atenção.
O que será então que permitia as suas perninhas, que mais pareciam palitos quebradiços, manterem, no extremo dessa situação, o seu estúpido corpo de pé?
Afugentamo-nos então para as outras explicações que sumiam-se dentro de Lúcio. É certo que ele não pensava nada mais, mas é de absoluta certeza, para o nosso reles conhecimento de observador, que Lúcio certamente estava sentindo algo. Havia ele descoberto algo esclarecedor? O que estava escrito naquelas lápides, que tanto o adormecia em sonambulismos mudos? Mas de nada estas especulações adiantarão se não prosseguirmos com a descrição do que Lúcio Estanho então vivia e observava em seu transe.
Em uma das lápides, sob datas antigas de nascimento e morte, estava escrito: Dolores Urânia. E, abaixo, um epitáfio com os seguintes dizeres: "Aqui jaz a mais atenciosa Jardineira e Mãe já conhecida, cujos cuidados nunca foram demais. Fechava as janelas, mas nunca as trancava. Esquecia do sol, mas sempre lembrava-se de regar."
Diante desta lápide estendia-se uma sepultura de terra acomodada, com uma grama crescida, verde e vistosa, distoante do jardim entristecido. Brotadas sobre a grama estavam as três flores, mais vivas do que nunca, o Girassol dourado e enorme, a Rosa, vermelha como um rubi e com as pétalas semi-abertas, como se dessem um beijo e, por fim, a Margarida, a mais humilde por natureza, com incontáveis e finas pétalas de uma brancura ofuscante.
O trio estava encantador, dando grande beleza àquela melancolia. Ao lado, fazendo dupla, uma outra sepultura tinha o seu lugar. Havia uma outra lápide semelhante e uma cova vazia. Não estava claro se a cova já fora preenchida e depois violada ou se nunca dera lugar a nenhum corpo. Atrás deste misterioso buraco, a lápide informava o nome: Lúcio Estanho de Urânia Ventura. A data de nascença era obviamente mais recente do que a da lápide da Sra. Urânia, mas a data do óbito era a mesma - o que torna os fatos ainda mais obscurecidos.
 Descendo um pouco mais os olhos, lia-se a seguinte frase, deixada à memória póstuma do ausente ocupante daquela cova: "Aqui jaz a Flor que não descobriu que 'nem só de Sol e nem só de Chuva' vive uma flor, aqui jaz a Flor que nunca tentou abrir a janela que nunca esteve trancada."
Lúcio permaneceu em pé em pose reflexiva durande os mais longos minutos da sua vidinha. Não podendo representar em palavras tal demora no correr dos ponteiros, me limito apenas a dizer que tal delonga ocorreu, e tal sensação de atemporalidade será privilégio apenas de Lúcio Estanho de Urânia Ventura, o único momento desta espécie que lhe foi reservado até então, durante as suas tortuosas andanças.

O Nascimento

Distanciamo-nos agora do nebuloso interior do rapaz e dos seus pensamentos mais intímos. Atemo-nos apenas à imparcial visão de suas próximas vivências.
Diante do seu próprio túmulo oco, Lúcio tombou de joelhos, sem mais tremer, sem mais chorar pétalas negras. Com as duas mãos nas bordas da fenda, ele projetou a cabeça sobre o buraco terroso. Havia apenas um fundo escuro, onde a vista sumia. Um buraco negro que se esticava infindavelmente para baixo, bem no lugar onde deveria estar o cadáver de Lúcio apodrecido. Ele permanceu nessa mesma posição, prostrado, até o susto.
Um ataque violento de tosse surgiu em nosso anti-herói. Barulhos estrondosos vinham de dentro de seu peito. Os sons pesados pareciam arrancar pedaços de seus brônquios. Seu corpo arqueava-se em loucos espasmos, seu pescoço contraía-se em ânsias de vômito que surgiam sem parar. O engasgo foi crescendo e das tosses sairam borrifos sanguíneos.
Eis então que algo estranho foi regorjitado e preencheu a boca do agonizante, amordaçando-no. Lentamente, os movimentos peristálticos empurraram uma monstruosa rosa negra para fora da boca de Lúcio Estanho. Surgiram primeiro as grandes pétalas pretas, pingando sangue e baba. A superfície da planta, de brilho metálico, mortificava qualquer olhar inocente.
Com a ponta dos dedos segurando a corola da planta, Lúcio puxou a flor que paria. Grandes espinhos reluziam, causando a dor e o sangue daquele estranho nascimento. Um fedor forte tomou conta do ambiente, deixando todos nós com uma leve dor de cabeça. Enojado, Lúcio contemplava a sua filha com estranheza. Após largá-la, ele observou calmamente  a rosa negra despencando na sua cova.
Enquanto isso, a sua face foi limpando-se da expressão de asco e dor. Após esse alívio envolto em tenebrosas significações, Lúcio ateu-se em seus quatro apoios, tal qual Napoleão perdera uma antiga guerra. Recalcitante, ele contemplava o túnel vertical que subtraiu-lhe a enigmática Rosa negra. Era noite, túnel abaixo, e desconhecidas criaturas escondiam-se do sol e bebiam fumegantes petróleos para energizarem-se, todas cegas e roucas, na constante vigília pela divindade-mor, a lampejante Rosa Negra.
Mas Lúcio não temia criatura alguma, por mais dentuça que fosse. Também não preocupava-se mais com quais belezas femininas poderia topar ao volver a cabeça para o mundo ensolarado. Entediado com aquela medonhice abismal, Lúcio Estanho pôs-se de pé. Não sentiu as dores do seu corpo cansado, muito menos ganiu sobre seu incerto destino. Com os dois finos dedos da mão direita, brincava com seu lábio inferior, investigando a sua maciez molhada inconscientemente, tal qual um bebê.
Nesta divagação observava a margem engramada do sepúlcro que afundava-se logo à frente. Viu algumas formigas carregando folhas muito superiores a elas em tamanho. Viu as gotas de orvalho fresco portarem-se como bolhas de sabão persistentes em viver, lutando pela ligadura das moléculas de sua frágil membrana ensaboada.
Em tal abstração infantil, Lúcio absorvia pequenas sutilezas com seus olhos já não mais injetados como antes. Distraiu-se enfim dos perigos sombrios que maquinavam no abismo. Lúcio apenas seguiu o seu caminho de volta. Com um comportamento singelo que nunca experimentara antes. Não se deu conta desta repentina despreocupação, embora a sentisse dos pés à cabeça. Atrás de si ficava uma Rosa fétida, à sua frente abria-se a cidade.

A Redenção

Ao emergir das sombras das árvores, Lúcio sentia o suor juvenil umidecendo-lhe as roupas engomadas. A face magra e pálida continuava feia, mas mesmo assim ergueu-a em direção ao Sol, cuja luz chapava a pele branca. Nessa posição, Lúcio abriu os botões das mangas e subiu-as até a altura do antebraço, revelando os pêlos negros e ralos sobre a carne branca e franzina.
Sentindo-se mais à vontade para mover-se, as mãos subiram e agitaram os cabelos pretos, para arejar a cabeça e despregar os fios suados. O estabelecido penteado dispersou-se pela primeira vez, extirpando essa crônica imposição e desgrenhando-se livremente, assumindo o arranjo que mais lhe convinha. Alguns fios escorriam preguiçosos, uns uniam-se aos outros com carência, alguns erguiam-se corajosos, os curiosos investigavam brilhos oculares ou grutas auditivas e, ainda, uns sumiam, com medo, no escondedouro de grupos capilares mais fortes.
Uma aura serena irradiava do corpo desengonçado de Lúcio, um fenômeno inédito, trantando-se desta estranha criatura. Tranquilo, em seus passos invisíveis aos outros, Lúcio distraía-se com o mundo exterior. Não preocupava-se com o olhar dos homens de bigodes com seus cães encoleirados, e muito menos ligava para o julgamento das impetuosas fêmeas de corpos violonizados. Pelo contrário, Lúcio acomodava-se bem à sua condição oculta.
Divertia-se, sozinho, com as mil possibilidades que um homem invisível desfruta. Comportamentos indiscretos e ao mesmo tempo isentos de atenção lhes eram permitidos. Decotes atraentes podiam ser contemplados, fazia caminhadas equilibristas sobre o meio-fio, piruetas, interações bobas com o ambiente e outras cantigas, caretas e brincadeiras. Atrevimentos típicos dos espelhos dos banheiros.

Feliz andava Lúcio, e não menos feliz ele ficou quando um caminhão encerrou as suas lúdicas experimentações. Caminhando na já descrita espiritualidade, Lúcio não percebeu e nem quis perceber o sinal vermelho para os pedestres. O caminhão também não percebeu Lúcio Estanho à frente. Não freiou em sua carreira cega. O atropelado também não teve tempo de sentir susto ou dor. Assobiava até.
Morreu enquanto abria os botões frontais da sua camisa, desejoso em sentir o calor solar em seu peito nu. Chegou a sentir um pouco.
O impacto fez o vidro do caminhão rachar-se no meio, abrindo uma cicatriz que jamais se fecharia. Nuvens rapidamente tamparam o sol. O estampido fez-se ouvir em toda a rua, como uma trovoada. Todos homens e mulheres cinzas viram, enfim, o pequeno corpo de Lúcio, bem no momento em que a sua vida se foi.
O caminhoneiro freiou após o susto. O som foi muito mais alto do que imaginaria-se para tão insignificante corpo humano. Na lataria também cinza do veículo escorria um borrifo de sangue, vermelho-vivo, radiante. O corpo jazia estatelado no chão. Um aglomerado cinzento e cretino formou-se em torno do morto. Olhos amendoados ainda abertos, cujo brilho ninguém teve coragem de cerrar. Fofocas e murmúrios assombravam a típica situação urbana em seu cinzento.
Mas, antes das primeiras sirenes começarem a soar, a multidão assistiu atônita ao místico desenrolar da tragédia.
Raios solares atravessaram a pesada névoa. Silêncio. As peles quentes dos curiosos renovaram as suas sensações esquecidas. O corpo inerte e o filete de sangue ganharam cores fortes. Atenção, apreensão. A multidão começou a perceber coisas estranhas.
Enfim, como se segurasse o ar há tempos, os céus deixaram cair uma forte ventania. Eram os valentes Ventos do Sul. Remotas correntes aportavam na cidade cinza, trazendo os odores brandos e livres do Sul. Pássaros, há muito ausentes, refulgiam nos céus azuis. As nuvens foram repelidas para longe. As roupas esvoançavam, transmutando variadas sombras moldadas pelo sol brilhante. A multídão perdia o seu cinza e sentia, impressionada, os calafrios e os calores que misturavam-se em sua pele.
Ninguém reparava o impressionante fato que sucedia no centro da roda. O motivo daquela congregação humana, um morto, ficou ligeiramente esquecido diante das preciosas variações que o ambiente sofria. As roupas de Lúcio também farfalhavam ao vento e, resvalada por elas, a sua alvíssima pele iniciava uma assombrosa metamorfose. As primeiras testemunhas do inaudito acontecimento perderam a voz. Olhos vidrados, o sangue dos mais fracos desceu. Aos primeiros alertas agitados, as cabeças, uma por uma, voltavam-se para o fenômeno que encaminhava-se.

A Liberdade

Como se estivesse rachando-se, a pele de Lúcio infestou-se de frestas. Estas, por sua vez, ludribriaram os espectadores, ao ganharem alto-relevo, assimilando-se então a exóticas escamas moles. O vento agitava com força estes pequenos pedaços de pele soltos. Tremulavam como pequenas bandeirinhas.
Boquiabertos, os espectadores desacreditavam em seus olhos cinzas. Cores surgiram: Amarelo, Vermelho e Branco. O vento uivou, insistiu. As mágicas peças tornaram-se acreditáveis até aos olhos mais preconceituosos. Uma atmosfera mágica vultuou-se, sonhos tornaram-se realidade. Mundos loucos e duvidosos faziam sentido. O espetáculo ganhou as suas devidas cores e fez verterem as lágrimas dos céticos. Para os cegos cidadãos, aquele morto como se houvesse despencado do céu. Este mesmo morto, nosso conhecido Lúcio Estanho, foi então imortalizado nas memórias dos cidadãos cinzas. Um anônimo, mas também um semi-deus, um mito.
 Foi o primeiro cadáver humano a desfazer-se em centenas de pétalas. Pétalas Vermelhas das Rosas, Amarelas dos Girassóis e Brancas das Margaridas. Elas despregavam-se tal qual adesivinhos multi-cores, do que antes era o corpo de Lúcio Estanho. Os Ventos do Sul começaram vagarosamente, arrancando, com muito esforço, algumas poucas pétalas. Uma por uma, o despregar delas acentuou-se. Um belo redemoinho tricolor subia aos céus, ventos ascendentes carregavam aquele sonho para longe. Algumas pétalas escapuliam e caiam sobre os embasbacados bservadores, mas logo eram novamente puxadas pela corrente de ar. E o turbilhão subia.
Este fantástico fato jamais pôde ser comprovado. Ninguém soube o nome do homem que ao morrer dissolveu-se em pétalas vermelhas, amarelas e brancas. Muitos duvidaram dos seus próprios olhos e seguiram com os seus passos cinzentos. Alguns outros endoideceram. Outros passaram a expelir pétalas negras pelas ventas. Houve também, por alegria, os bons exempos, que coloriram-se e partiram, serenos, para resolverem assuntos mais interessantes do que os de sempre.
Nós jamais saberemos se foi o próprio Lúcio que escolheu a morte, abrindo mão do seu antes tão precioso e protegido corpo, ou se foi o novo cheiro da liberdade que lhe estonteceu a constante preocupação e, consequentemente, tirou-lhe a atenção das ruas.
Há ainda a delirante hipótese de que ardilosos feitiços lançados pelos Ventos do Sul tivessem armado toda a cena. Mas nada disso é certo, tudo é possível.
Só tenhamos, enfim, uma única certeza. A de que o nosso herói foi buscar a sua liberdade em um novo lugar. O rumo de Lúcio Estanho nós já bem sabemos: O Sul.

Fim


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Tenha bons sonhos Alice.

Estava eu sozinho roendo os últimos nacos crocantes do pedaço de pizza. Boa maneira de se gastar pouco ao comer nas ruas de Nova Iorque. Guardanapos na mesa cobrindo os farelos. Levanto e volto ao Pub. Já sei com quem conversar. Venha cá sua loura, para eu te mostrar um poema que acabei de lhe fazer. Disse em inglês. Mostrei os versos em português mesmo, bom que a Americana não entende as asneiras que eu escrevi. Traduzi um significado adulterado, qualquer coisa bonita que se diz a uma mulher de olhos brilhantes. Mas o poema verdadeiro era bem assim:

"Rosados mamilos
Encosquinhados
Pelo escorrer dourado
de teus belos fios
que desnovelam-se
choviscando lourisses
embebedando meu sexo.
Já não me fecho!
Acabou-se o mutismo
lhe lambisco as vultuosas coxas
enquanto adivinho o sabor
da tua vulva que afrouxa"


Para não levar o interesse do meu caro interlocutor às veredas sexuais, voltaremos à cerveja que ofereci à mulher. Guardei o textinho em meu bolso para futuros arquivamentos e, abrindo um sorriso de brasilidade, afiei meu inglês em sussurros audíveis apenas aos amantes arrepiados. Um pequeno beijo na borda embrincada da orelha e a mão está dada. Taxi amarelo, o sinal vermelho me impacienta os beiços. A loura se encosta como uma anjinha em meu paletó macio. O motor ronca, movimento. Sumimos na escuridão cintilante da noite nova iorquina. E a noite pulsa atrás de nós, berrando suas vontades.
Entrando no apartamento, a sala permitia bem a nossa acomodação. A garota, chamada Alice, olhava encantada as paredes recheadas de quadros 'vintage' e algumas decorações que peneiro nas esquinas diurnas. Bem diferente das esquinas noturnas de Nova Iorque, onde peneiram-se insistentes pós brancos.
 Sentei-me com ela no sofá e abri um vinho Argentino, de Mendoza, eu acho. Servi de qualquer jeito, sem nenhuma exibição gourmet, embora eu seja enólogo. Ela nunca saberá disso. E também não há motivos para que qualquer outro alguém saiba disso, além de mim mesmo e dos meus paladares mutantes. Uma pequena música ambiente festejava sutilmente nossos beijos bem dados. Convidei-a para tomar um banho comigo. A moça fez que sim, hesitou, mas foi comigo ao banheiro para se entregar.
Eu divido o apartamento com o Samuel, com um banheiro para nós dois. Mas cada qual devidamente acolhido no seu quarto. Se é que pode-se chamar o habitát de Samuel de quarto. Covil soa melhor. Uma bagunça excêntrica e louca. Contrastante com a conduta gentil do Samuel. Talvez o quarto dele seja a sua válvula de escape. Sempre elegante e com as palavras bem medidas, ele é um grande cavalheiro. Por fora. Vez ou outra é preferível não topar com o Samuel de dentro, pode ser perigoso.

O vapor embaçava o vidro do boxe. Algumas carícias deixavam a minha face vermelha. A água quente também trazia seu rubor. Todos os sentimentos e corpos se esquentavam juntos. Água, corpos, libido, dedos, vidro, azulejos, cabelos. A água fazia as mexas louras de Alice parecerem castanhas, nada mal.
 Por infeliz acaso, meu torpor foi interrompido por gentis batidas na porta. Era o Samuel, numa de suas noites vorazes. Ele empurrou porta apó s escutar apenas o barulho do chuveiro como resposta, devagar e gracioso como sempre. Ele chegou perto, abriu o vidro do boxe e ficou a nos observar. Sorriu, enquanto enrolava o fino bigode negro com os dedos limpos e as unhas bem cortadas. Seus olhos negros eram doces. Eu sorri de volta. A garota nua perdeu as palavras, esperando que eu reagisse ao intruso. Mas eu não faria nada e jamais faria. Como também jamais saberia quais seriam as consequências se negasse, algum dia, a vontade do Samuel. Ele disse apenas 'olá' e, após uma mesura cordial, começou a despir-se. Tirou a gravata borboleta, o paletó, o cinto preto, a calça, a camisa fina e a cueca. Ficou totalmente nu sobre o azulejo leitoso do banheiro.
A reação daquela garota foi a mais tranquila que eu já vi. Nenhum movimento brusco se esboçou, apenas seus olhos arregalaram-se de desespero. Nada quebrava a sua aura angelical. Tive vontade de beijá-la, envolvê-la. Mesmo assim deixei as coisas seguirem o seu caminhar ardiloso.
Samuel disse, enquanto adentrava delicadamente à nossa molhada companhia:
- Por favor, me passem o sabão?
Ela foi a primeira das mulheres que se dispôs a escutá-lo, ao invés de correr para lugar nenhum. Com as mãos tremendo, Alice deu o sabonete para o homem magro e bem desenhado, que resplandecia à sua frente.
 Ops, disse Samuel ao deixar cair o sabonete. Quando as pupilas da moça abaixaram-se para ver o objeto caindo, o soco de Samuel subiu. Certeiro, entre os olhos. Ela tombou inconsciente no chão feio.
Sorrimos um para o outro sem dizer palavra alguma. Em acordo mútuo saí do banheiro, sem me secar. Me senti mal. Esta moça era diferente das outras. Foi uma pena o monstro do Samuel ter acordado. Agora ele podia fazer as suas doentices livremente com o corpo da menina, coisas que me dão desgosto só de imaginar.
Coloquei uma música clássica bem alto para não escutar os fornicosos ruídos. Ainda molhado, sentei-me no sofá. Não senti frio, a calefação fazia-nos buscar novas maneiras de refrescações, mesmo no inverno. Aguardei a minha vez tranquilo. O Samuel sempre fazia as suas investigações antes de mim. Digamos que ele seja um homem impaciente. Reli meu poema. Este eu guardarei com muito esmero. Gostei da Alice.
Enfim ele abriu a porta do banheiro, a toalha amarrada na cintura. O vapor nebuloso que o seguia, reforçava seu ar cavalheiresco e misterioso. Ele elogiou a garota e a música que eu escutava. Propôs que comprássemos um novo aparelho de som para o apartamento e disse um sóbrio "boa noite". Trancou-se no seu covil. Foi dormir ou tocar violino. Nunca saberei, pois seu quarto tem vedação acústica.
Caminhei calmo até o banheiro, mas confesso que quis apressar-me. A moça jazia incosciente na banheira, o resto de água escorrendo pelo seu corpo rosado. Ela ainda estava desmaiada e tinha outras marcas de pancada na cabeça, por isso dormia tanto. Jamais saberei, novamente, se ela sonhava. Mas confesso novamente que nunca quis tanto saber algo. Aliás, destes saberes impossíveis que se vão vida afora, este é o único que eu realmente desejei saber. E do fundo da minha terrível alma.
Olhei curioso para o corpo de Alice. Pernas nem tão finas e nem tão grossas. Barriga lisa, como uma planície dourada. Seios lindos, opulentos. Mesmo assim broxei. Algo de diferente me perturbava naquela moça. Não conseguiria tocá-la naquele estado. Muito menos tentaria expelir nela as minhas próprias doentices.
Desci com Alice deitada em meu ombro pelas escadas de incêndio internas. Enfiei-lhe goela abaixo um comprimido de Rivotril, para não haver incômodos durante o trajeto até o Rio Hudson. Dessa vez, nada de Taxi Amarelo com carinhos aconchegantes. Os faróis selvagens do meu carro ensolararam a garagem. Novamente motor. Fui-me embora feliz com os sinais vermelhos. Davam-me mais tempo para contemplar Alice e seus olhos fechados nos sonhares infantis
Cheguei ao píer do Chelsea. O mesmo em que o velho Titanic deveria ter chegado. Mas jamais chegou. Tal qual meus pensamentos nunca chegarão aos sonhos infantis de Alice. Tal qual Alice jamais chegará à sua casa.
Contemplei em paz o corpo sonolento da minha menina naufragando nas águas negras do Rio Hudson. Lá se ia ela, como um submarino sonhador, a navegar para as águas distantes da morte.

PRÓLOGO

O céu estrelado me deu o poema que eu escreveria para uma negra de coxas largas. Ao sair com Alice do bar em que estivemos há pouco, avistei a negra me avistando. Sei que a Negra ainda está lá, me aguardando. Ela espera o retorno do bom amigo que foi fazer a gentileza de deixar a outra amiga em casa. A indefesa amiga Alice. Criei uma boa desculpa. A minha imaginação está fértil e flui junto com o Hudson que carrega Alice. Junto com os caldos que escorrem das estrelinhas. E as luzes de Nova Iorque fundem-se com os brilhos estelares. Dentro desta galáxia una eu decido: o poema para a negra de coxas largas terá "chocolate" no meio.

Quem são os torminholos?

Os torminholos torminholalavam a coisa séria
um homem rouco apapelou encomendas
debaixo das suas rabiscadas tendas
feitas por um juiz com gonorréia
matem os homens coloridos !
as cortinas dos palácios flanaram pelos ouvidos
dos torminholos, que já iam brincar no areial
então eles volveram em estacações marcias
envenenando as flechas especiais

mas os espirros metálicos cobriram
toda a alvorada torminholense
antes dos olhos brilharem às nuvens dengosas
imaginando o enegrecer das terríveis covas
posteriores, e ainda é líder o fluminense
diz o jornal do português e bigode
e esquece a nação torminholense
que derrete sob o ferroso lingote
do poder cifroso dos altos escalões
bancários
burocrários
temerários.
democráctos.
a esconderem o sangue azul
sob longos bicos amarelos
sangue combustível de rodas antigas
rodas mais vivas que os mortos torminholinhos
e seus sumidos sorrisos vinhos

sobraram apenas os colares que ruíram
lá dos pescoções
dos pais dos torminholos
os antigos anfitriões
dos chapas de sangue azul
que verteram o vermelho
no cálice brasileiro
tingindo as árvores do sul.
que caíram
soterraram
e viraram petróleo
a queimar as ignições
dos tratores caminhões
que matam
os torminholos
lhes estouram os miolos
levam embora as mandiocas
infernizam velhas ocas

escrevo afinal
o primeiro livro de história
dos extintos torminholos
de recente memória

Aspirando a letal
fumaça  da histeria
dos cocares fumegantes
o Brasil não beberia
do seu próprio sangue.






quarta-feira, 24 de outubro de 2012

De qualquer forma...

O maior segredo
do universo
que o profeta imerso
nos esquecimentos
do velho tempo
Aquele que
alinharia os planetas
valia mais que
dez mil tetas
O maior de todos
derramado nos forros
do leito de morte
do fiel sarcedote
Último portador
do sumo ardor
do gongo
do juízo final
a volante nau
do céu choroso
o ouro de eldorado
o reviver do finado.



E o moribundo soltou
no suspiro do fim

Ao Poeta chinfrim
enfim segredou



Mas, oras bolas
o poeta esqueceu
o tesouro do céu
que então era seu.
No dobro da rua
venceu uma puta
um tostão sem labuta
e escafedeu.
Seu trunfo sabido
pra sempre perdeu.

Enterrou o eterno
na cova do tempo
matou
a imortalidade.
Sem usar terno
e nem piedade


E vê, o poeta
nem espremeu
o caldo da testa
Foi-se em festa
ao pé da ribeira
banhar-se em paz
na cachoeira dos pobres
com satanás.






como abraçar um mundo tão meu ?



A Malícia e o Malicieiro


Escarros fedidos
espreitam escondidos
o contra-ataque
miram de praxe

Decoram o mapa
donde na alma
guardas a arma

Bigode falso
frente à chama
lota o cadafalso
sobre a trama

lacrimeja a faísca
engolida
Queima de arquivo
 do desfeitio

Muralha branca
tapa
Atrás
língua branda

Malícia
O sorriso fingia
Artimanha
Convence à cama
Matreiro
O falso dinheiro

Atrás,
se vai Alcatraz
Na mira
A Torre de Pisa
Ibiza!

Mil cavalos de aço
ensaia o madraço
Horror do comum
fura a fila,
solta um pum
e culpa a filha!
Surda.
Muda.



segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Ri, Zé, Ri

Nota em nota
goteja o sangue verde
Vesga rota
Falso flerte

A lágrima cairá
incessantemente
Se o banguela não sorriu
o dentuço chorará.

Do osso ao filé
Do ouro ao zé