domingo, 15 de janeiro de 2012

Um outro pequeno conto


Até que eu gosto deste Beto

Mal havia chegado à cidade e a Carminha ficou sabendo do tal do Beto, como qualquer novata em Ouro Preto. O Beto era famoso, todas sabiam dele e todas o desejavam. A Carminha era esperta, ou pelo menos achava que era. Depois de ouvir tantas sirigaitas falando do sujeito, a recém-chegada cravou no seu inconsciente que ia laçar ele, que ia arrebatá-lo de jeito. Seria uma vitória se ela conseguisse ser a primeira mulher a fazer alguma diferença na vida daquele homem tão vislumbrado. Ela decidiu conquistar o intrépido Don Juanito.
Por fora o Beto era o típico boa praça, sorriso de lado, um chapéu panamá branco e conhecedor de todos os garçons velhacos do centro. Só que por dentro esse Beto era um babaca, do tipo de sujeito que seduz uma garota apaixonada, lambuza o cabelo dela e filma tudo, semanalmente. Poucos conheciam este lado do Beto, só os seus verdadeiros amigos. Mas esses verdadeiros amigos nunca foram vistos por ninguém. Provavelmente porque todo mundo achava que era o melhor amigo do Beto, mesmo não sabendo nem o seu sobrenome. Era porque o bom moço sempre papeava com alguém em cada esquina, e de tanto perambular por aí, acabou colecionando inúmeras conversas com os andarilhos locais.
 As pessoas adoravam contar-lhe seus problemas, pedir conselhos e falar sobre a vida. Mesmo detestando os tagarelas, ele não demonstrava, afinal, ele era o boa praça. Assim, o Beto estava sempre interessado em tudo e em todos: nas más vendas dos comerciantes, nas desconfianças das namoradas, nas puladas de cerca dos maridos, nos aborrecimentos de um esportista aposentado, nas prisões do policial gordo e nas espertezas do golpista de dentes de ouro.O seu ponto forte eram os problemas amorosos, e ele adorava este tipo de caso. Dava conselhos decorados para os homens abobados, e, enquanto isso, já começava a caçar suas ditas mulheres. E se era a fêmea quem o procurava, ele próprio já era o consolo imediato. De um jeito ou de outro, o filho da puta continuava agradando a gregos e a troianos, e seu acervo cinematográfico continuava crescendo, se é que você me entende.
Naquela noite, a Carminha estava num bar com a Dora, sentada em uma mesa ao lado da mesa do Beto. A mesa era apenas dele, mas ele nunca era deixado sozinho. Tinha sempre alguém sentado ao seu lado conversando, cumprimentando ou despedindo-se. Os garçons também trocavam alguns palitos com ele, riam um pouco da vida e iam atender aos chamados impacientes das outras mesas.
O crápula tomava apenas cerveja, não muito, se ele ficasse chapado, perderia o controle. Ele tinha que dominar suas ações para colher os frutos que desejava. Ainda tinha o costume de pedir algumas doses de aguardente, que ele sempre jogava no chão, sem ninguém ver, claro.O Beto também tocava gaita, além de mulheres, e dizia que o instrumento possuía um poder mágico: o de despir as mulheres. Sempre funcionava, mas o tal poder não fez efeito na Carminha. A garota sabia jogar aquele jogo muito bem.
 Um músico se apresentava com seu violão num palquinho maltrapilho, típico dos botecos. O artista era figurinha repetida lá, tal qual o Beto, o que os tornou velhos conhecidos. Na hora em que o músico começaria a tocar blues e folk, o mequetrefe do Beto foi chamado para fazer uma palha. O boa praça sempre levava a gaita no bolso, como um tira que carrega o seu três-oitão no coldre todos os dias. Na primeira música ele se recusou a subir, de praxe, numa humildade falseada.  Sempre planejadíssimo. No fundo, aquele escroto queria subir lá, empurrar o bosta do violeiro e tornar-se o rei da cena. Mas não era assim que o seu espetáculo funcionava.
Terminada o primeiro blues, alguns conhecidos insistiram pro Beto subir. Ele foi, fingindo estar encabulado. Fez um solo improvisado de gaita, que foi brilhante para todos ali. Ele segurava o instrumento com uma garra singular e mostrava um grande espírito ao tocá-lo. Não precisava nem dizer, mas não foi improviso porra nenhuma. Qualquer analfabeto musical perceberia que ele repetia sempre a mesma seqüência de notas , sempre os mesmos bends e vibratos, todas aquelas noites em que subia ao palco. Por isso que ele tocava em apenas uma música. Enfim, ele conseguiu arrancar alguns aplausos, e era apenas isto que era de seu feitio.
Quanto foi se sentar, o Beto reparou que a Carminha não olhava para ele. Embora ela fizesse isso de propósito, ele não percebeu. O malandro nunca tinha visto aquela garota pelas redondezas, linda como só ela, da cor do pecado, com uns traços leves e sérios, mas com aquele fogo no olhar que desgringola qualquer cabra. Tiro e queda. Bastou o Beto dar a primeira vislumbrada na Carmen, que aquela sensualidade encarnada já se tornava o alvo da noite.
Um garçon foi o pombo correio que levou um guardanapo, em que o Beto rabiscara algumas palavras convidativas, para a moça da mesa 7. Em poucos instantes, a moça segurava aquele papel na mão. O malandro apenas bicava a reação dela com o canto dos olhos. Ele não sabia que a menininha sabia fisgar um Marlim. Aquele peixe grande e esperto, que os pescadores vão buscar no alto mar. Eles cortam as águas a uma velocidade elevadíssima, para poder acompanhar as nadadeiras do peixe. E se o pescador não colocar um cinto e travar bem os pés na mureta da popa, o Marlim leva ele para o fundo do mar.
A Carminha sorriu, arqueou as sobrancelhas e jogou o papel no chão. Aí que o cara engasgou, aquela cortada logo de início era inédita, deixou ele sem base. A Carminha acertou seu pulo, o Don Juan não desistiria depois desta, ele começou a cair na rede da pescadora. O Beto respirou fundo e tentou parecer relaxado na cadeira, era preciso reverter a situação logo. Ele pediu uma cerveja enquanto pensava na próxima estratégia. Ela não era boba, não encantava fácil, ele tinha que ser mais direto, mais sério. Essa do papelzinho, que já dera certo tantas vezes, o fez sentir-se ridículo.
Quando a amiga da Carminha levantou-se para ir ao banheiro, a oportunidade surgiu, radiante. O Beto levantou-se e foi tranquilamente à outra mesa, pedindo permissão para se sentar. A Carminha riu e fez que sim. Ele puxou um papo e riu da sua tentativa fracassada. Ela deu corda para a conversa dele, sempre mantendo uma certa frieza, para não acabar passando o carro na frente dos bois. Ela disse que viera fazer faculdade na cidade e ele disse que escrevia crônicas para um jornal de São Paulo. Mentiu, como sempre, ele não trabalhava nem estudava, apenas vadiava. E foi nessa mentira que ele entregou-se, a Carminha conhecia bem aquele jornal, e logo colocou a mentira do Beto em cima da mesa.
Ele pensou na hora: “fudeu”. Ela era de Belo Horizonte, mas havia morado em São Paulo por 2 anos. Ele não retrucou nem reafirmou, apenas ficou contemplando aqueles olhos negros que cresciam cada vez mais. Parecia que a música havia cessado, e que a resposta dele seria audível em todo o estabelecimento. Quando a Carminha abriu a boca para falar, o Beto instintivamente também tentou falar algo. Ela cerrou os lábios e ele gaguejou qualquer coisa sem nexo. Pela primeira vez ele ficara sem palavras, o seu pensamento astuto parara naquele vácuo.
Só havia um caminho, não existiam mais desvios nem desculpas, ele seria verdadeiro pela primeira vez. Contou então que não fazia nada, que apenas sonhava em escrever para um jornal, mas nunca tivera motivação para tal. Sobrevivia com uma mesada gorda que o seu pai, que morava na capital, lhe dava. Olhou nos olhos dela, sem graça, e confessou que queria apenas transmitir uma boa imagem. Ela sorriu, satisfeita. Não achara ruim, sentiu-se até bem, o alvo fora devidamente abatido.
A Dora, amiga da Carminha, que já sabia das pretensões da amiga, havia ido embora ao vê-los conversando. E isso permitiu que eles ficassem ali se conhecendo por muito tempo. O Beto continuou com a guarda abaixada, e a Carminha foi abrindo um pouco mais de espaço, sem descer do salto. Ela sabia que tinha conquistado o malandro do jeito que queria e não ia dar mole a essa altura do campeonato.
Os dois foram embora juntos. A pensão em que o Beto morava ficava no caminho da casa em que a Carminha morava com a Dora. Enquanto andavam cercados pelas montanhas de Ouro Preto, a lua, que parecia uma bola de sorvete de creme, iluminava as pedras coloniais da rua. A noite estava estrelada e fria, e o Beto andava com o braço sobre os ombros da moça, tentando diminuir o contato deles com o ar gelado. Continuaram proseando levemente, olhando o céu, como um casal de adolescentes tímidos.
Chegando à porta da pensão, ele ofereceu um agasalho para ela seguir o caminho protegida do frio. Ela aceitou e ambos caminharam em direção ao quarto do Beto, adentrando no hall da casa, iluminado tenuamente por uma lâmpada amarela, bem aconchegante. Eles percorreram o corredor de tábuas corridas e entraram no quarto, que acabara de ser iluminado. Enquanto ele remexia o armário, ela observava o aposento distraidamente. Ele virou-se para ela sem fechar o armário e entregou-lhe uma bela jaqueta de brim beje. Ela agradeceu e disse que a deixaria ali no dia seguinte, com a dona da pensão, caso ele não estivesse. O Beto disse para ela não se preocupar, qualquer tarde ele poderia buscar a jaqueta. Então, a moça concluiu a conversa dizendo que já estava tarde, com um ar meio tristonho. Ele assentiu, sorrindo, e a acompanhou até a porta.
 A garota suspirou, enquanto ele a observava docemente com um olhar de despedida.  Quando aproximaram-se, para dar um beijo de despedida no rosto, o Beto parou, sentindo a respiração da moça. O coração dela acelerou, ele encarava seus olhos silenciosamente. Então, quase que sem querer, ela virou seu rosto na direção do dele e olhou os lábios do rapaz, que arrastaram-se lentamente junto aos seus. Não houve reação contra nem a favor, ela beijou ele serenamente, como quem sai de um castigo.
O Beto sorriu, apaixonado, enquanto acariciava os cabelos castanhos da bela mulher. Há pouco tempo, ele estava duvidando que ela houvesse se interessado por ele, e agora, aquela boca consentira-lhe um beijo. Ela, percebendo a insegurança novata no Beto, fechou a porta do quarto e deu-lhe outro beijo. Tropeçaram lentamente em direção à cama dele, sentindo o calor dos corpos se abraçando.
Enquanto seus corpos caíam lentamente sobre o colchão macio, uma luz vermelha piscava fracamente, escondida dentro do armário soturno. E a luz continuou ali, observando o emaranhado de corpos humanos que se amavam, se é que você me entende.

2 comentários:

  1. Uau! Parabéns! não só por esse texto, mas pelo blog como um todo que eu particulamente já virei fã! Há muito tempo não via publicações tão ricas como essas... ricas de cultura, sentimento e paixão por tudo que você escreve. Creio que foi um achado encontrar esse blog. Obrigada por compartilhar seus devaneios conosco!

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