Estava eu sozinho roendo os últimos nacos crocantes do pedaço de pizza. Boa maneira de se gastar pouco ao comer nas ruas de Nova Iorque. Guardanapos na mesa cobrindo os farelos. Levanto e volto ao Pub. Já sei com quem conversar. Venha cá sua loura, para eu te mostrar um poema que acabei de lhe fazer. Disse em inglês. Mostrei os versos em português mesmo, bom que a Americana não entende as asneiras que eu escrevi. Traduzi um significado adulterado, qualquer coisa bonita que se diz a uma mulher de olhos brilhantes. Mas o poema verdadeiro era bem assim:
"Rosados mamilos
Encosquinhados
Pelo escorrer dourado
de teus belos fios
que desnovelam-se
choviscando lourisses
embebedando meu sexo.
Já não me fecho!
Acabou-se o mutismo
lhe lambisco as vultuosas coxas
enquanto adivinho o sabor
da tua vulva que afrouxa"
Para não levar o interesse do meu caro interlocutor às veredas sexuais, voltaremos à cerveja que ofereci à mulher. Guardei o textinho em meu bolso para futuros arquivamentos e, abrindo um sorriso de brasilidade, afiei meu inglês em sussurros audíveis apenas aos amantes arrepiados. Um pequeno beijo na borda embrincada da orelha e a mão está dada. Taxi amarelo, o sinal vermelho me impacienta os beiços. A loura se encosta como uma anjinha em meu paletó macio. O motor ronca, movimento. Sumimos na escuridão cintilante da noite nova iorquina. E a noite pulsa atrás de nós, berrando suas vontades.
Entrando no apartamento, a sala permitia bem a nossa acomodação. A garota, chamada Alice, olhava encantada as paredes recheadas de quadros 'vintage' e algumas decorações que peneiro nas esquinas diurnas. Bem diferente das esquinas noturnas de Nova Iorque, onde peneiram-se insistentes pós brancos.
Sentei-me com ela no sofá e abri um vinho Argentino, de Mendoza, eu acho. Servi de qualquer jeito, sem nenhuma exibição gourmet, embora eu seja enólogo. Ela nunca saberá disso. E também não há motivos para que qualquer outro alguém saiba disso, além de mim mesmo e dos meus paladares mutantes. Uma pequena música ambiente festejava sutilmente nossos beijos bem dados. Convidei-a para tomar um banho comigo. A moça fez que sim, hesitou, mas foi comigo ao banheiro para se entregar.
Eu divido o apartamento com o Samuel, com um banheiro para nós dois. Mas cada qual devidamente acolhido no seu quarto. Se é que pode-se chamar o habitát de Samuel de quarto. Covil soa melhor. Uma bagunça excêntrica e louca. Contrastante com a conduta gentil do Samuel. Talvez o quarto dele seja a sua válvula de escape. Sempre elegante e com as palavras bem medidas, ele é um grande cavalheiro. Por fora. Vez ou outra é preferível não topar com o Samuel de dentro, pode ser perigoso.
O vapor embaçava o vidro do boxe. Algumas carícias deixavam a minha face vermelha. A água quente também trazia seu rubor. Todos os sentimentos e corpos se esquentavam juntos. Água, corpos, libido, dedos, vidro, azulejos, cabelos. A água fazia as mexas louras de Alice parecerem castanhas, nada mal.
Por infeliz acaso, meu torpor foi interrompido por gentis batidas na porta. Era o Samuel, numa de suas noites vorazes. Ele empurrou porta apó s escutar apenas o barulho do chuveiro como resposta, devagar e gracioso como sempre. Ele chegou perto, abriu o vidro do boxe e ficou a nos observar. Sorriu, enquanto enrolava o fino bigode negro com os dedos limpos e as unhas bem cortadas. Seus olhos negros eram doces. Eu sorri de volta. A garota nua perdeu as palavras, esperando que eu reagisse ao intruso. Mas eu não faria nada e jamais faria. Como também jamais saberia quais seriam as consequências se negasse, algum dia, a vontade do Samuel. Ele disse apenas 'olá' e, após uma mesura cordial, começou a despir-se. Tirou a gravata borboleta, o paletó, o cinto preto, a calça, a camisa fina e a cueca. Ficou totalmente nu sobre o azulejo leitoso do banheiro.
A reação daquela garota foi a mais tranquila que eu já vi. Nenhum movimento brusco se esboçou, apenas seus olhos arregalaram-se de desespero. Nada quebrava a sua aura angelical. Tive vontade de beijá-la, envolvê-la. Mesmo assim deixei as coisas seguirem o seu caminhar ardiloso.
Samuel disse, enquanto adentrava delicadamente à nossa molhada companhia:
- Por favor, me passem o sabão?
Ela foi a primeira das mulheres que se dispôs a escutá-lo, ao invés de correr para lugar nenhum. Com as mãos tremendo, Alice deu o sabonete para o homem magro e bem desenhado, que resplandecia à sua frente.
Ops, disse Samuel ao deixar cair o sabonete. Quando as pupilas da moça abaixaram-se para ver o objeto caindo, o soco de Samuel subiu. Certeiro, entre os olhos. Ela tombou inconsciente no chão feio.
Sorrimos um para o outro sem dizer palavra alguma. Em acordo mútuo saí do banheiro, sem me secar. Me senti mal. Esta moça era diferente das outras. Foi uma pena o monstro do Samuel ter acordado. Agora ele podia fazer as suas doentices livremente com o corpo da menina, coisas que me dão desgosto só de imaginar.
Coloquei uma música clássica bem alto para não escutar os fornicosos ruídos. Ainda molhado, sentei-me no sofá. Não senti frio, a calefação fazia-nos buscar novas maneiras de refrescações, mesmo no inverno. Aguardei a minha vez tranquilo. O Samuel sempre fazia as suas investigações antes de mim. Digamos que ele seja um homem impaciente. Reli meu poema. Este eu guardarei com muito esmero. Gostei da Alice.
Enfim ele abriu a porta do banheiro, a toalha amarrada na cintura. O vapor nebuloso que o seguia, reforçava seu ar cavalheiresco e misterioso. Ele elogiou a garota e a música que eu escutava. Propôs que comprássemos um novo aparelho de som para o apartamento e disse um sóbrio "boa noite". Trancou-se no seu covil. Foi dormir ou tocar violino. Nunca saberei, pois seu quarto tem vedação acústica.
Caminhei calmo até o banheiro, mas confesso que quis apressar-me. A moça jazia incosciente na banheira, o resto de água escorrendo pelo seu corpo rosado. Ela ainda estava desmaiada e tinha outras marcas de pancada na cabeça, por isso dormia tanto. Jamais saberei, novamente, se ela sonhava. Mas confesso novamente que nunca quis tanto saber algo. Aliás, destes saberes impossíveis que se vão vida afora, este é o único que eu realmente desejei saber. E do fundo da minha terrível alma.
Olhei curioso para o corpo de Alice. Pernas nem tão finas e nem tão grossas. Barriga lisa, como uma planície dourada. Seios lindos, opulentos. Mesmo assim broxei. Algo de diferente me perturbava naquela moça. Não conseguiria tocá-la naquele estado. Muito menos tentaria expelir nela as minhas próprias doentices.
Desci com Alice deitada em meu ombro pelas escadas de incêndio internas. Enfiei-lhe goela abaixo um comprimido de Rivotril, para não haver incômodos durante o trajeto até o Rio Hudson. Dessa vez, nada de Taxi Amarelo com carinhos aconchegantes. Os faróis selvagens do meu carro ensolararam a garagem. Novamente motor. Fui-me embora feliz com os sinais vermelhos. Davam-me mais tempo para contemplar Alice e seus olhos fechados nos sonhares infantis
Cheguei ao píer do Chelsea. O mesmo em que o velho Titanic deveria ter chegado. Mas jamais chegou. Tal qual meus pensamentos nunca chegarão aos sonhos infantis de Alice. Tal qual Alice jamais chegará à sua casa.
Contemplei em paz o corpo sonolento da minha menina naufragando nas águas negras do Rio Hudson. Lá se ia ela, como um submarino sonhador, a navegar para as águas distantes da morte.
PRÓLOGO
O céu estrelado me deu o poema que eu escreveria para uma negra de coxas largas. Ao sair com Alice do bar em que estivemos há pouco, avistei a negra me avistando. Sei que a Negra ainda está lá, me aguardando. Ela espera o retorno do bom amigo que foi fazer a gentileza de deixar a outra amiga em casa. A indefesa amiga Alice. Criei uma boa desculpa. A minha imaginação está fértil e flui junto com o Hudson que carrega Alice. Junto com os caldos que escorrem das estrelinhas. E as luzes de Nova Iorque fundem-se com os brilhos estelares. Dentro desta galáxia una eu decido: o poema para a negra de coxas largas terá "chocolate" no meio.
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