Carneiro Otávio vivia dando cabeçadas nos outros. Um mau-humor carrancudo, escondendo o sonho por folhas de bananeiras risonhas. No fundo de seu encéfalo magoado, Carneiro Otávio só queria comer peixe frito enrolado nesses vegetais. E claro,com várias carneirinhas rosadas oferecendo os rabos a girar. Mas o sonhador não falava isso para ninguém e vivia pedindo mais ódio para o seu coração. Ele sempre cobrava a conta para si mesmo um pouco mais cara. O resfolegante coração torcia-se como podia para gotejar os seus últimos rancores.
Carneiro Otávio ficava então a ruminar umas folhas-sem-ser-de-bananeira.O amargor dessas folhas era buscado lá do fundo dos sabores mais ocres do inferno. E esses sabores viviam infestando a língua para-sempre-seca de Carneiro Otávio. Nada de peixe frito.
As cabeçadas aleatórias não eram costume de nascença. Começaram em certo dia de fim de mês. O excesso de sujeira nas ruas fazia Carneiro Otávio odiar ainda mais os ódios. Tudo era odioso. Neste triste dia ele tropeçou numa lata de peixe vazia, sem dono, ficando todo desengonçado. A trocação de pernas terminou com a queda e no encabeçamento vertical dele no chão. Orgulhoso, Carneiro Otávio fez do mundo o seu chapéu, daqueles que jamais se tira. E pôs-se a dar cabeçadas arrogantes em todos os desavisados que não abrissem alas nas ruas. Do poste ao padre.
Com o malogrado costume já bem aderido aos seus vícios, Carneiro Otávio afastava-se cada vez mais dos peixes fritos. Mal notou quando as coisas ficaram estreitas no meio-dia de uma quarta-feira de cinzas, bem quando o sol quicava em linha reta sobre as cabeças. Nesta hora de agulhas solares, Macaco Maurício, o garçon do país, veio cumprimentar jovialmente a carranca de Carneiro Otávio. O sorriso do cumprimentante fez explodir a desgraça do irritadinho. Os dois eram, no mesmo metro quadrado, um paradoxo em carne viva, os humores em exatos opostos. O mundo inteiro sendo dividido por zero.
A cabeçada certeira veio quando a mão de Macaco Maurício se estendia.
É de se imaginar que o ato fosse apenas um crime de agressão física, e que ainda poderia ser atenuado pelo atestado de ridículo. Mas infelizmente Macaco Maurício levou a trovoada de tal desajeito nas beiças, que os seus dentes entraram de volta na sua exposta felicidade. Ao beijar a testa ranzinza de Carneiro Otávio Macaco Maurício beijou também os lábios ossudos da morte. Tombou, morto, como uma panqueca salgada demais.
O assassino se fez de coitado, como se fosse vítima da tristeza. Se fez de pobre-coitado, com medo dos injustos soldados do tempo. Mas mesmo assim eles arrastaram Carneiro Otávio como um boneco de pano. E deu no que deu. Deu que ele recebeu a pena máxima, carimbada em sua testa dura: Pena de morte, com requintes de crueldade. E essa foi a sentença, proferida a todo-beiço pelos cem juízes em coro. Isso porque todos adoravam Macaco Maurício. E do todos agora abominavam o maldito Carneiro Otávio. Mesmo assim o preso teve o direito de escolher a sua última refeição. Na língua: Peixe Frito porra. Assim combinou e assim aguardou, sem nada para comer até o último dia.
Dizem as más línguas que os roncos abdominais do condenado eram tão medonhos que até o Urso Jó perdia o sono. Isso porque o esfomeado aguardou tempo demais no xilindró. Os juízes demoraram para decidir qual seria o requinte de crueldade.
Após muitas partidas de dominó decidiram que Carneiro Otávio seria fadado a morrer de tanto rir. Os juizes argumentaram, de terno e lábios sujos de maionese, que para gente de cara fechada, a pior tortura é rir. Suas barrigas filosofavam bem. Os cem homens da lei também gostavam muito de Macado Maurício e deram o melhor de si nesse caso.
No dia em que a confusão consumaria-se, Carneio Otávio resplandecia no cadafalso, com uns grampos abrindo-lhe os olhos forçosamente, para que ele visse tudo. Ele aguardava pelo peixe frito diante de uma multidão fofocante. Algumas pessoas despirocavam de ódio. O resto odiava em silêncio. As crianças choravam.
Subitamente veio a dessurpresa que mudou tudo: Sem o bom garçon Macaco Maurício para servir o Peixe Frito, como a comida chegaria até Carneiro Otávio? Pois bem, não chegou. O peixe foi jogado de volta no rio e Carneiro Otávio morreu com fome, mas não de fome. E nem de tanto rir. O condenado não moveu uma lágrima durante a performance humorística da Arara Joana. Nem com gás do riso. Metade da platéia ofegava de tanto rir, o que é um fenômeno rude, ou ao menos macabro, tratando-se de uma execução. Haviam risos em todo canto. Menos no canto da boca de Carneiro Otávio. A outra metade da platéia que não ria da renomada humorista Arara Joana, clamava por torturas sanguinolentas.
Sem saber o que fazer, o excelentíssimo Sapo Augusto - Juiz-mor - achou a derradeira dessolução. Sacou a sua pistola premiada e encerrou logo com aquela polêmica. Carneiro Otávio enfim fechou os olhos arregalados. Só não fechou o terceiro olho, que acabara de abrir. Este último chorava solitário uma lágrima vermelha.
Enquanto os demais juízes dispersavam a multidão questionante, Sapo Augusto e Arara Joana foram discretamente jogar o corpo de Carneiro Otávio no Lago Municipal.
O que me assusta é que, de tempos em tempos, pescadores duvidosos dizem por aí que pescaram esqueletos intactos de alguns peixes no mesmo Lago Municipal. Esqueletos sem carne nenhuma, mas quase vivos. Ainda sofrendo os últimos espamos do terror da morte recente.
Prólogo
Sapo Augusto só foi reeleito após mudar o nome de Carneiro Otávio para Carneiro Otário, em todos os documentos, citações póstumas e registros púbícos do assassino. Nem a certidão de óbito se safou. A reeleição foi comemorada com foguetório, muito peixe frito e muita bebedeira. Sem garçon pra servir, a comida foi só enfeite. Todos se divertiram. Se divertiram tanto que deixaram para trás as histórias dos pescadores, de Macaco Maurício e de Carneiro Otávio.
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