sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Andreia, acorda!


Andreia enlourava a rua nova iorquina enquanto o azul do céu fazia os prédios amaciarem suas pontas agudas. O mendigo caolho confundia o sol com o brilho dourado do esnobado penteado daquela mulher valente. Demasiado “ado”. Brilhado, enfeitiçado, pintado, falsificado, derramado sobre as costas bem emposturadas de Andreia. Ela caminhava elegante, puxando coleiras invisíveis. Os homens vinham atrás, esquecendo a reunião e o nó da gravata dentro dos taxis amarelos que esperavam em vão o sinal se abrir. O trânsito parava para Andreia desfilar. E ela bem gostava de desfiles. Mas apenas dos seus. O sucesso de outras mulheres atraentes provocava o emergimento de pequenas fumaças de rancor dos poros corporais de Andreia. Poros cuja umidade fazia os homens delirarem esquinas atrás.
Andreia fantasiava com seus lenços coloridos sendo despencados da sua média altura, em alguns séculos passados. Seriam tais lenços o motivo de uma grande fila noturna de fidalgos pretendentes na porta de seu palácio. Cada pretendente traria um dos seus lencinhos na mão e uma vida a entregar. Mas, no século presente, ela se limitava a obliquar os olhos bem esquinados e esguios aos flancos urbanos. Vendo o julgamento masculino, ela terminava por costurar um pecado sorridente na boca, nos lábios de maçã envenenada. Os dentes frios como a neve de um contos de fadas. Esfriados por uma podridão que escondia-se dentro de Andreia. Ela ensaiava diariamente o cultivo excessivo das suas fortalezas, cujos tijolos tão belos morriam de medo das chuvas dos olhos. Andreia precisava sempre da maçã vermelha para égorcizar a sua fragilidade paranoiense. Sempre o veneno.
Provocação era o bacharel de Andreia. Esconder era o seu PhD.  Bem protegida, seu recato sumia. Nada de rabo de olho, de cirandas com os quadris despercebidamente, nada de lenços ao acaso. A beldade tinha seus caprichos mais excêntricos. Dentro do vagão do Subway Nova Iorquino, ela postava-se de frente para a janela da porta, o que possibilitava total transparência ao exterior. Enquanto as escuridões subterrâneas dos túneis  trovoavam do lado de fora em veloz carreira, Andreia aguardava o seu momento. Com o decote bem aberto, escondido entre os ombros do casaco e o sorriso picante entre as madeixas louras da franja, ela fitava o seu reflexo na janela até a hora certa. Quando um outro trem emparelhava-se com o seu no submundo, a loira começava com as provocações. Andreia chamava a atenção dos homens através dos rápidos vidros e ficava lançando olhares ferinos, mordiscadas de lábios, menções para se envolverem em lençóis e outras múltiplas vontades sexuais.  
Neste rápido lapso de tempo Andreia podia, em total isolamento e segurança, fazer as suas travessuras. Ela também fazia caretas, cenas e  enfeites com a língua. Enquanto durasse o  corredor visual entre as janelas, Andreia ficava buscando os olhos sonolentos dos passageiros do trem adjacente. Após os vagões desviarem-se e sumirem no escuro, Andreia imaginava o próprio triunfo dentro das mentes daqueles espectadores anônimos.  Na realidade, a maioria das pessoas não tinha visto porra nenhuma, pois quando um trem corre momentaneamente ao lado de outro eles, naturalmente, não trocam miúdos, ignoram-se mutuamente, é banal demais para atrair olhares. Mesmo assim, Andreia, na sua cegueira, tinha sempre certeza que fora avistada e sentida. Para ela, as cabeças baixas e a ausência de reações significavam que os espectadores tentavam esconder o interesse nela para, assim, não a bajularem descaradamente. Andreia sorria-se, sabendo que as pessoas a queriam tanto, mas tanto, que até esforçavam-se para demonstrar o contrário. Quanta esperteza, Andreia.
Enfim, numa tarde vagabunda, Andreia exacerbava-se estranhamente nas janelas de um trem. Peculiarmente, a emparelhação das janelas durou mais do que o usual, por razões desconhecidas. Esta oportunidade atiçou as mais íntimas vontades da danadíssima loira. Ela já começava a insultar as pessoas  gratuitamente com gestos excêntricos e facetas ridículas. Andreia secretamente abrira os botões da camisa e mostrava a parte mais escondida dos seios. Sua pele ardia e o júbilo acendia seus pavios. Num dos atos, ela quis provocar infantilmente mostrando a língua. Péssima ideia, Andreia. A tragédia sucedeu-se quando a rosada estrutura foi ejetar-se para fora, como uma cobra cega.
Descuidadamente, a janela permitiu que a língua fosse longe demais. A provocação embriagava tanto a cautela de Andreia, que o perigo rondou perto demais. As rodas do trem adversário engancharam a sua língua de veludo. Inevitavelmente  a embolação foi rápida. Como um carretel, a língua enrolou-se firmemente no metal e Andreia voou para os túneis.
 O trem zunia mais rápido que uma bala, o trilho rugia e Andreia gania. Como uma pipa, ela era arrastada pelas rodas vorazes do trem. A dor consumia o corpo da beldade. E ela ricocheteava nas paredes pichadas que passavam como um filme acelerado. O sangue espirrava nas paredes e Andreia parecia um balão puxado no espaço por um foguete. Ia  esfolando no teto do túnel como uma locomotiva humana de ponta-cabeça. Os ventos da velocidade desgringolada arrebataram as roupas provocantes da garota e pela primeira vez ela foi desnudada.
Andreia gritava e chorava por socorro, mas sua língua emaranhava-se cada vez mais, moendo-se nos ferros enferrujados do trem, e o sangue já alagava o túnel. O trem corria com violência e as explosões elétricas fritavam Andreia. Ela olhava com desespero para as janelas vibrantes, esperando que alguém visse a sua agonia turbilhoada.  Foi quando Andreia percebeu os sombrios olhares de dentro do trem. As silhuetas enfileiravam-se pelas janelas, todas de olhos inexpressivos a observar o espetáculo sanguinolento. As faces eram todas iguais, ternos pretos. As mulheres de véu. Parecia que o trem seguia para o funeral mais aguardado de Nova Iorque. A garota esvoaçante implorava por socorro, sua língua agonizava.  O trem rugia e o vento espichava as pálpebras do maquinista demonizado.
As vozes respondiam num  coro grave de uivos: Uuuuuuuh! E agooooora Andreia, e Agooooora?
Os metais do trem chacoalhavam a febre no corpo de Andreia. O desespero culminava na sua suplicante garganta. Mas nada adiantava. Os espectadores não pregavam os olhos, e as bocas ovalavam desemocionadas. Aqueles seres desconheciam a dó e Andreia conhecia a dor.
Com a diminuição da velocidade do trem, o corpo judiado de Andreia perdeu altitude, e veio arrastando-se lateralmente aos trilhos, boiando sobre o rio de sangue que descera de sua língua tripudiada. Ao parar na estação,  as portas do trem abriram-se e o ir e vir dos sapatos pisotearam a desgraçada. Para que a moça nua e antigamente apetitosa não fosse novamente içada pelo trem, um faxineiro devidamente cortou a língua dela, bem rente à roda, para que a perda de carne fosse a menor possível.  O mebro rosa esticado, ao ter a tensão aliviada, rebobinou-se tal qual uma fita métrica descontrolada, calando enfim a cãibra da boca de Andreia
 Em seguida, o homem varreu a infeliz e pequenina criatura para a sua pá, depositando-a numa lata de lixo. A garota murchara tanto que passara a medir pouco mais que um palmo grande. Andreia encolheu-se com frio lá dentro do lixo, tapando o que podia da sua nudez.  A multidão de luto aliviou-se das suas corriqueiras preocupações, para reunir-se em torno da donzela encardida. Todos aqueles comensais foram velar, numa reunião escura e solene, a humilhação de Andreia. A menina soluçava, enquanto a chuva escorria pelo seu corpo e levava embora o sangue da amargura.

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