domingo, 18 de novembro de 2012

Josué Negrão ainda corre.




Os trintobrilhos armaram uma cilada para Josué Negrão. Misteriosas espionagens pairavam sobre os ombros do homem, enquanto ele esticava seus passos brutos pelas vielas amaldiçoadas do gueto. A favela era dele, e ele era da favela. Em suas mãos chispantes, os cabelos crespos de sua última desafeta emaranhavam-se. Ela era arrastada, como um boneco, de volta ao pó do qual todos nós viemos. “Quis demais crioula, diz que não aguento duas vezes, agora vai aprender a respeitar nego de dente preto lá no inferno, safada.” , setenciava Josué Negrão, a quem ninguém questionaria. Apenas os trintobrilhos o faziam. Espertos trintobrilhos. Coriscos trintobrilhos.
Feroz,  Josué ganhava chão. E atrás dele a morte lambia o sangue da crioula. Tudo era noite e silêncio. Os casais interrompiam o coito em seus barracos adjacentes ao escutar as passadas do tirano. “Lá vem ele, mui puto, faz silêncio mulher”.  Josué distribuía ali e acolá os seus pacotes sérios em troca de ouro. Pacotes muito sérios. Ninguém brincava com eles, eram negociados na surdina, sempre com muita malícia e com os devidos ares importantes de quem trata de obscuridades. Ai de quem não pagasse. Josué arrastaria pelas tripas, com um sorriso ferino emoldurando seus dentes pretos. Há muito ele perdera o coração. Aliás. Há muito ele jogara fora o coração, em troca dos seus pacotes sérios.
Mas algo interrompeu os supetões do crioulo louco. Um ruído espalhava-se como finas rachaduras pelo silêncio liso da noite. Soluços vindos de algum lugar espicharam a orelha de Josué Negrão - Cuidado crioulo. Lamentos vindos da infância desarmavam facilmente a armadura de Josué. Dobrando o cotovelo da viela, os barulhinhos se esparramavam pelos dedos do seu pé cascudo. Os músculos do homem afrouxaram e a cabeça da mulher arrastada quicou nas pedras do chão. Ele foi, como um sonâmbulo, vencer a esquina, ter com a armadilha dos trintobrilhos.
A luz solitária do poste iluminava uma pequena criança de cócoras. A noite pesava sobre o gueto. As escuridões fechavam os olhares. Josué só podia fitar o garoto, que afundava misteriosamente a cabeça entre os joelhos. Sim, mais de perto, era um garoto.  O pequeno soluçava seu abandono. A noite solitária assombrava-o. A isca boiava no beco da maldade. A cilada se complicava. E as coisas sérias se complicavam para o crioulo.
Josué Negrão, com os olhos lacrimejantes, esqueceu a sua alma rancorosa e chegou ao consolo. Totalmente ludibriado pela pureza infantil. Chegou ao invólucro dos contatos humanos mais finos. A bolha da empatia sincera. A noite suspendeu-se, o tenso suspense do contato físico. Os dedos cruéis de Josué chegaram perto da cabeça cabisbaixa do pobre soluçante. Enquanto o espaço se encurtava,  a lua despencava e trazia as estrelas consigo, como uma rede de pesca ajuntando as sardinhas medrosas.  As árvores fecharam os seus galhos enfolhados, abraçando o gueto amaldiçoado.  As chapas de zinco zumbiram os ventos tardios. Tensos, os ratos espremeram os olhos roendo as unhas. Tarde demais.  Josué encostou.
No súbito subir da cabeça da criança, os anjos caídos acordaram e as trombetas rebentaram-se no chão, em estampidos que substituiram o badalar dos sinos do juízo final. Faíscas jorrantes cobriram Josué Negrão, ele derretia diante da cara espelhada do moleque. Um vidro de fogo, onde Josué podia enxergar o seu próprio medo latente. Seus dentes esbranquiçaram-se e o sangue recolhia-se ao esconderijo do coração paralizado. O mundo exterior sumiu, a distração de Josué abortou-se. A farsa dos trintobrilhos ferrou o gatuno, o muambeiro, o maior traficante que já existira no gueto. O maior traficante de todos, que agora desfazia-se em covardias.
A face metálica da criança brilhava como prata recém forjada. Lisa, sem arranhões de desgosto. Engoliu os soluços. Os trintobrilhos então se aproximavam, seguindo os rastros das estrelas despencantes. Desciam em fogo, cintilantes, em uma névoa febril. Sua fumaça tóxica penetrava no cérebro de Josué. E sussurrava: “Corra, vadio, corra até o fim”.
A máscara da criança trincou-se e caiu, espalhando no chão as migalhas reluzentes. Restou o rostinho de uma criança. Os traços eram de Josué. Mas os olhos, os olhos mais profundos do que o gueto, eram de Madeleine. As faíscas ardiam a pele cascuda de Josué, tal qual a saliva sedenta de amor de Madeleine fizera antigamente.  “Josué, volta... E o menino, Josué? Volta amor, volta! Pra onde você foi, onde você estava?”. Gritavam os trintobrilhos. Indomáveis, impiedosos, eternos perseguidores. Os trintobrilhos já infestavam a rua com as suas luzes e gases paranormais. Seus brilhos pontilhavam-se através da fumaça densa. Aí Josué correu.
Correu como nunca, correu como as suas antigas presas corriam dele próprio. Mas a bala de Josué era sempre mais rápida. E os trintobrilhos também não perdoariam. Vinham de longe, de intensas, porém esquecidas, rebobinações do tempo. As pequenas lembranças de Josué voltavam à tona, para nunca mais submergirem.  E como eram assombrosas tais lembranças! De tanto amor encardido e vergonhas escondidas. De tanto orgulho de rei do gueto, agora ele fugia desesperado.
Os dentes de Josué já tinham caído, e ele corria sem preocupar-se com isso. Que se danem os seus dentes e o medo que eles metiam. Josué só queria fugir dos trintobrilhos que queimavam as suas costas nuas. Os dedos de Madeleine arranhavam carne viva.

Volta e meia os trintobrilhos sossegam. Acompanham lá de cima, como falcões, a carreira desesperada de Josué Negrão. Deixam ele ofegar, recuperar as forças, cicatrizar as queimaduras, imaginar-se livre. Mas é tudo diversão para os algozes. O dia já surgiu e morreu de novo, o gueto ficou para trás, junto com os pacotes sérios. E Josué Negrão ainda corre.



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