As praias da infância eram as melhores, a nossa pequenez era mais intensa, diante dos areais e das ondas mágicas... Sentíamos as praias com todo nosso espírito, aspirávamos os bons cheiros, gracejávamos com as brisas tímidas e a água, sim, ela era a melhor de todas as águas do mundo. Só pela sua vida própria denunciada em ondas emotivas, pelo seu profundo enigma que balança entre tenebroso e magnífico. Uma dualidade que nos encanta ambiguamente, uma união ininteligível, impensável perigo tão atraente, belo.
Enfim, essas praias foram aquelas que aproveitamos de verdade sem preocupar com o passado nem o futuro. Éramos só presente, só amores, ingênuas despreocupações... Se os picolés eram caros ou tinham muito açúcar, se as areias iam sujar o carro ou a tarde me carregar, para longe do trabalho, sedutora irresponsável. Nossa única responsabilidade era não ter responsabilidade, era esquecer as estradas de asfaltao da viagem, e ser todo sol, verão, mar. E por isso, por ser a fome a nossa única distração, a praia nos tinha em seu seio por inteiros. Éramos felizes, éramos infatis, os castelinhos valiam mais que os apartamentos dourados das orlas. E as palmeiras eram mais atraentes que as mulheres vaidosas...
A sensação dos pés afundando, ah, era a melhor, na areia seca ou fofamente acomodada no fundo das águas, sempre macia. E se fossem duras, oras, eram as longas tábuas de um salão de carnaval ou o cimento colorido de uma quadra de futebol, ou, tão bom quanto, de frescobol. A sensação dos pés afundando eram, sim, uma sensação muito melhor do que receber montantes de grana, muito melhor do que comprar uma mulher falsa na cama. Aliás, isso nunca será melhor.
O que as praias da infância me lembram? Surgem em fotos antigas, pouco nítidas. O amarelo e o azul se confudem. Sol e céu. Areia e mar. O verde faz algumas sombras frescas e nos lembra um abrigo e o germinar da vida, a sensação de que não estamos sozinhos e sempre haverá água fresca e aconchego.
Reconforta haver palmeiras atrás de nós, afinal, elas estão vivas como nós diante de toda aquela areia e água infinitos.
Lembro-me da massagem quente que a areia fazia quando eu enterrava meus pés nela, numa brincadeira inconsciente e reflexiva. Eu moldava e amaciava a areia com meus pés e observava as formas e o comportamento daqueles grãos, sem nem estar atento àquilo. Apenas olhava para baixo enxergando, nas minhas peripécias, visões antigas e pensamentos distantes, que eram projetados naquele amarelo claro. Ficava ali, sentindo as texturas. Secas ou molhadas, duras ou macias, lisasou ásperas, fofas ou granulosas, esvoaçantes ou consistentes. Haviam infinitas sensações.
Eu gostava das ondas médias. As ondas estavam ali para lembrar-nos da brandura e grandiosidade daquelas águas, afirmando ser realmente o mar que lambiscava o litoral graciosamente, muito aquém da sua capacidade destrutiva, ele escondia a sua força humildemente. As ondas médias nos davam a certeza de que era o mar vivo que ruminava ali em frente. As lagoas não têm as vívidas e pacíficas ondas médias - muito menos as grandes e agressivas - , as lagoas são mortas e fechadas. As ondas mostravam que aquele horizonte não tinha fim, era a liberdade em si. A absoluta ausência de limites. O mar aberto trazia essa ideia de uma eterna deriva, um abismo infinito que engole nossa vista ao chegarmos na sua beiradinha.
Eu também gostava de olhar para o limite do oceano. Uma linha linda, mas dura em sua perenidade. Um fim liso e naturalmente perfeito. Eu buscava com meus olhinhos viajantes qualquer novidade distoante que surgisse nas longíncuas brumas azuis e foscas da infinitude intocável do oceano. Qualquer ilhota ou barquinho venturoso. Quando achava algo, eu assistia esse objeto incessantemente, temendo perder de vista o trêmulo pontinho. Nesses momentos eu adormecia para os vendedores de picolés com suas vozes altas. Esquecia do meu pai que lia o jornal e tomava sua cerveja envolta em isopor, para que não esquentasse no calor praiano. Eram tempos em que eu odiava aquele líquido loiro espumante, não entendia seu encanto tão amargo. Enquanto perdia-me ao longe, minha mãe tomava água de côco sob o sol forte e meu irmão pequenino brincava sereno, sentado na areia, distanciado em seu mundo 2 anos mais infantil que o meu. Geralmente minha boca ficava solta, abrindo-se, e minhas pálpebras pediam para baixo, dando um aspecto vago e sonso para meu olhar flutuante. Enquanto isso o vento soprava os flocos de areia que repousavam na minha pele jovem. O forte calor misturava-se com o frescor aquático da brisa marítima, que combinava com os ruídos das ondas preguiçosas que tombavam repetidas vezes.
Nessa época, cujas lembranças empoeiradas aparecem como fotografias antigas e de cores desbotadas, eu não distraia meus olhares nos corpos torneados que desfilavam nas prais, besuntados pelos bronzeadores. Muito menos usava bermuda, uma mania da rebeldia adolescente, e sim me desinibia com calções coloridos. Lembro-me também de uma vez que fui à praia, num calor infernal, enfurnado dos pés à cabeça numa fantasia totalmente preta do Batman.
Voltando ao meu querido horizonte, eu me deliciava com o deitar do céu no mar. Ele, sabidamente maior e mais poderoso que o nosso oceano meramente terrestre, abraçava facilmente o nosso mundinho. Embora imponente e, às vezes enfurecido, o céu mantinha-se paciente e respeitoso conosco, sempre concedendo sua magnificência azul às nossas paisagens terrenas e finitas. Este mesmo céu, indiferente à sua idade e ao seu tamanho, se aconchegava no colo do mar e deitava, sonolento, por lá mesmo, enquanto a noite caía. E, assim, o jovem e subordinado mar lhe recebia, lhe afagava com o crepitar das suas águas e imitava o azul celeste como um espelho admirado.
Essa visão me absorvia por grande parte dos meus dias passados na praia, durante a minha infância.
O azul brumoso ao longe me lembrava da distância que me separava do horizonte quando eu me banhava em águas mais profundas, o que também não significava muitos centímetros para meu corpinho encurtado. Tamanha distância me fazia questionar como podia ser aquilo tudo transponível pelos peixes e pelos pássaros, e até mesmo por nós, animais do chão seco e sem penas. Antes de me acostumar com a temperatura fresca da água, cada elevar das ondas me concedia calafrios, um respirar profundo e me fazia arquear o corpo fazendo caretas. Mesmo assim, era impossível haver hesitação, as ondas vinham por vontade própria, sem se preocupar se estávamos prontos ou não, desafiando-nos. Isso atiçava a minha imaginação fértil de um pequeno desbravador, como se encarasse o desafio da mãe-natureza corajosamente.
Eu era assim, um pequeno soldadinho que se abobava com os horizontes e seus mistérios.
Ao voltar para a sombra do guarda-sol, não havia nada melhor que empadas e refrigerantes gelados. Que me concediam sabores melhores, que iam além do sal marítimo. É claro que eu também brincava na areia e alugava o ouvido dos meus pais com minhas vontades mimadas. Mas, na hora de dormir, quando eu me recordava do dia que se passara, surgia em minha imaginação apenas o majestoso encontro, em meio às brumas azuladas, daquelas águas mais distantes com o formoso céu, o pai da terra.
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