Apertei o botão vermelho distoante no portão e entrei no ar calmo da noite. Acendi o cigarro e tensionei ir andando à esquerda, para a avenida viva. Mas olhei pra trás, com saudade do silêncio, e vi a ruazinha escura. As silhuetas das árvores rente aos jardins, os quais me lembravam o início do século XX, me convidavam a um outro passeio. Andei calmamente até o lugarejo envolto no breu, abrindo os pulmões e o coração. Ao parar, girei meu olhar para o céu, em câmera lenta. Lá estava a lua cheia, magnífica, chefiando a noite. Deixei-a dominar o ambiente à vontade. Aos meus lados as árvores largavam as suas cores para o dia seguinte, roubando o escuro para si, estavam todas negras. Mas mesmo assim faziam sombras ainda mais escuras no chão cimentado.
Tranquilamente esqueci os carros estacionados e fiquei absorto. Admirava a lua com a mandíbula solta. Elevei o cigarro fumegante e cobri a lua com a sua ponta, que carregava uma mistura de laranja quente e de cinzas negras. Indomável, a bolota alva apareceu em meio à brasa, num truque esperto, involuntário. Um olho meu a via, o outro não, então as duas imagens entrelaçaram-se, cada qual com a sua luz. Uma quente, abrasada, e a outra fria, pálida. Uma enraivada e a outra pacífica. Amaram-se ali mesmo, sem decoro, em frente aos meus olhos.
Meu pescoço começou a doer pela inclinação do meu observar. Aproveitei para passear embaixo dos braços quietos de uma árvore cheia de folhas negras ao meu lado. Ela subia do solo e se abria acolhedora, mas indiferente aos homens. Me senti em paz ao seu lado, sob sua sombra. Atrás de mim, as casinhas espremidas do Brooklyn cumpriam seu papel noturno, com suas janelas apagadas. Um faroeste enriquecido e urbano. Seus jardins agora estavam mais próximos. Uma figueira de um jardim abraçava a árvore da rua que me guarnecia.Uma árvore órfã, embora independente. Novante reergui meu olhar lento para o abajur branco da noite, mas apenas alguns raios fracos apareciam, em pontinhos alvos em meio aos dedos negros da árvore. Arredei para o lado, para uma clareira, onde um poste divida o espaço com uma lixeira, no interlúdio dos troncos. Fiz questão de encarar a lua escondido, vendo-a por uma fresta justa, num escapar estreito dos galhos que findavam. Uma coroa de luzes espetadas cercava a lua, como geralmente desenham o sol do meio-dia. Mas os raios eram bem compridos e podiam ser olhados sem queimarem a retina. O astro mostrava sua importância sem me dizer nada, uma mímica combinada. Faltou-nos o aperto de mão. Quebrando meu isolamento, um taxi passou carregando uma propaganda da Broadway, eu sorri. No fundo da rua um homem também vinha andando, mas escorreu para o seu prédio. Eu sorri de novo.
Meu cigarro já havia morrido entre meus dedos, e senti o gosto de algodão torrado. Não era ruim, mas tambem não pedia para ser tragado. Olhei para o poste como a lhe pedir desculpas, e beijei a brasa em seu metal pintado. Ela caiu inteira no chão, ainda queimando. O filtro ficou nu em meus dedos, e foi colocado para dormir na lata de lixo. Olhei para a fumacinha derradeira que erguia-se obliquamente do ponto laranja no chão. Deixei-a aproveitar seus últimos calores sozinha, e voltei para casa. Abri o portão com a chave dourada e entrei no corredor iluminado. No fundo, as duas portas verdes dos apartamentos do primeiro andar me encaravam. Cada qual com seu olho de vidro, congelado. Pareciam dois olhos humanos a me vigiar. Bem podia haver uma pessoa por detrás de cada ponto observador. Sonhei que por detrás do olho destro, haveria uma velha republicana e resmunguenta, a se amedontrar com quem sai para a rua de madrugada. No olho canhoto, haveria uma garota maravilhosa, de lingerie e pele lisa, a me olhar zombeteira e sorridente, protegida pelo seu esconderijo impenetrável aos homens caçadores.
Subi as escadas imaginando essas duas figuras imaginárias, a desejada e a que servia de contra-peso negativo. O desafio imposto pela fechadura americana fez esses pensamentos esmorecerem. A chave deveria ser enfiada de cabeça para baixo e a rotação era invertida. Não entendo o porque dessa petulância, nem quero entender. Mas sempre travo neste procedimento, principalmente na hora de tirar a chave, que sempre agarra. Entrei no meu aconchego e fechei a porta. Girei o trinco e meu devaneio acabou.
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