sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Samba pro miserável

O olhar é teu,
quem me colore são teus dedos irmão
Mas não sou de ferro, também viro pavão
Levante teus olhos frouxos
Faça seu samba desgoto
pra não guardar

Não pediram que se coroasse
Você quem outorgou o seu passe
Achas que não somos assim?
quer ter pele de marfim?
sou fraco como humano
pois sim sigo amando
e bem sei chorar

Se não se levantares
nenhuma vai lhe beijar
Pois se não amaste
ninguém vai lhe amar

A cada palma batida
tua alma ouve escondida
e quer roubar

Rouba pra ti o espelho
Rói fundo a pele do dedo
e vai discursar

Mas feche bem os ouvidos
Os homens de fios lambidos
vão te vaiar

Mas não se entristeça, ninguém aqui é alteza
rubros no palco escondido, todos queremos amigos
Mas sem implorar

Acordamos a noite a desgraça
rimos por pouco de graça
Sem nos safar

Somos figura batida,
mas fazemos a nossa fita
sem reclamar

Não precisa esconder teu medo do escuro, vai
nem repetir que sabe demais
todo mundo aqui vive, você nunca soube o qu'eu tive
Pra dizer que tem mais

Mas lhe aceitamos com gosto
o perdão é a lei desta moça
que lhe vai beijar

Pois, ria comigo a tristeza
cante a mulher e a beleza
que vai passar...

Tange a viola quebrada
uma corda só não faz falta
pra quem dançar...





quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Devaneio noturno do Brooklyn

Ao som de Pink Floyd - Summer '68 e Fat old Sun - as duas músicas que vêm incedeando minhas noites, resolvi transpirar essa aventura silenciosa. Peguei um único cigarro, solitário. Tranquilo, desci as escadas antigas do prédio pitoresco que me acolhe nesta selva urbana. É piegas e até banal chamar metrópoles cosmopolistas como New York de selva, sempre escutei isso antes de vivê-la. Mas é de todo sincero admitir que essa palavra resume o que ela realmente é, uma selva exuberante e intimidadora. Embora no Brooklyn seja diferente. Esse aconchego noturno é velho e quase bucólico, apesar dos Táxis amarelos. Percorri o corredor de teto branco e detalhado em pequenos 'rocailles' dourados. Vi nas rachaduras do chão uma moeda de One Cent perdida, e só isso já me entusiasmou. 
Apertei o botão vermelho distoante no portão e entrei no ar calmo da noite. Acendi o cigarro e tensionei ir andando à esquerda, para a avenida viva. Mas olhei pra trás, com saudade do silêncio, e vi a ruazinha escura. As silhuetas das árvores rente aos jardins, os quais me lembravam o início do século XX, me convidavam a um outro passeio. Andei calmamente até o lugarejo envolto no breu, abrindo os pulmões e o coração. Ao parar, girei meu olhar para o céu, em câmera lenta. Lá estava a lua cheia, magnífica, chefiando a noite. Deixei-a dominar o ambiente à vontade. Aos meus lados as árvores largavam as suas cores para o dia seguinte, roubando o escuro para si, estavam todas negras. Mas mesmo assim faziam sombras ainda mais escuras no chão cimentado. 
Tranquilamente esqueci os carros estacionados e fiquei absorto. Admirava a lua com a mandíbula solta. Elevei o cigarro fumegante e cobri a lua com a sua ponta, que carregava uma mistura de laranja quente e de cinzas negras. Indomável, a bolota alva apareceu em meio à brasa, num truque esperto, involuntário. Um olho meu a via, o outro não, então as duas imagens entrelaçaram-se, cada qual com a sua luz. Uma quente, abrasada, e a outra fria, pálida. Uma enraivada e a outra pacífica. Amaram-se ali mesmo, sem decoro, em frente aos meus olhos. 
Meu pescoço começou a doer pela inclinação do meu observar. Aproveitei para passear embaixo dos braços quietos de uma árvore cheia de folhas negras ao meu lado. Ela subia do solo e se abria acolhedora, mas indiferente aos homens. Me senti em paz ao seu lado, sob sua sombra. Atrás de mim, as casinhas espremidas do Brooklyn cumpriam seu papel noturno, com suas janelas apagadas. Um faroeste enriquecido e urbano. Seus jardins agora estavam mais próximos. Uma figueira de um jardim abraçava a árvore da rua que me guarnecia.Uma árvore órfã, embora independente. Novante reergui meu olhar lento para o abajur branco da noite, mas apenas alguns raios fracos apareciam, em pontinhos alvos em meio aos dedos negros da árvore. Arredei para o lado, para uma clareira, onde um poste divida o espaço com uma lixeira, no interlúdio dos troncos. Fiz questão de encarar a lua escondido, vendo-a por uma fresta justa, num escapar estreito dos galhos que findavam. Uma coroa de luzes espetadas cercava a lua, como geralmente desenham o sol do meio-dia. Mas os raios eram bem compridos e podiam ser olhados sem queimarem a retina. O astro mostrava sua importância sem me dizer nada, uma mímica combinada. Faltou-nos o aperto de mão. Quebrando meu isolamento, um taxi passou carregando uma propaganda da Broadway, eu sorri. No fundo da rua um homem também vinha andando, mas escorreu para o seu prédio. Eu sorri de novo. 
Meu cigarro já havia morrido entre meus dedos, e senti o gosto de algodão torrado. Não era ruim, mas tambem não pedia para ser tragado. Olhei para o poste como a lhe pedir desculpas, e beijei a brasa em seu metal pintado. Ela caiu inteira no chão, ainda queimando. O filtro ficou nu em meus dedos, e foi colocado para dormir na lata de lixo. Olhei para a fumacinha derradeira que erguia-se obliquamente do ponto laranja no chão. Deixei-a aproveitar seus últimos calores sozinha, e voltei para casa. Abri o portão com a chave dourada e entrei no corredor iluminado. No fundo, as duas portas verdes dos apartamentos do primeiro andar me encaravam. Cada qual com seu olho de vidro, congelado. Pareciam dois olhos humanos a me vigiar. Bem podia haver uma pessoa por detrás de cada ponto observador. Sonhei que por detrás do olho destro, haveria uma velha republicana e resmunguenta, a se amedontrar com quem sai para a rua de madrugada. No olho canhoto, haveria uma garota maravilhosa, de lingerie e pele lisa, a me olhar zombeteira e sorridente, protegida pelo seu esconderijo impenetrável aos homens caçadores. 
Subi as escadas imaginando essas duas figuras imaginárias, a desejada e a que servia de contra-peso negativo. O desafio imposto pela fechadura americana fez esses pensamentos esmorecerem. A chave deveria ser enfiada de cabeça para baixo e a rotação era invertida. Não entendo o porque dessa petulância, nem quero entender. Mas sempre travo neste procedimento, principalmente na hora de tirar a chave, que sempre agarra. Entrei no meu aconchego e fechei a porta. Girei o trinco e meu devaneio acabou.

Por amor às cornetas

É por amor às cornetas
que proclamo as vendettas
Não fuja a teu posto marujo
navegamos em mar sujo

Cortem-no a garganta
seus binóculos estão cegos
Nem nos vê
presos num longo ego

Nem o conhecemos
não deveríamos importar
Mas pro vento cessar
devemos navegar

Por isso teimemos
não larguem os remos
é tudo que ele quer
Qual o problema, se pelos sonhos morremos?

Ai que ódio
desse cabelo de lado
em casa, no espelho, se esfrega como um retardado
e guincha como um torturado

Mas no palco
fedendo a talco
Sua pele brilha a prata
e sua cabeça pensa na palavra
a ser dita
 pressa gente carcomida

Quem vai lhe flagar
se não seu próprio banheiro?


Cadê o trem?

Essa tela não me diz o número do meu trem
me mostra uns caminhos
que em segredo se cruzam

O futuro não é travesseiro
me racha o sorriso ao meio
e me rouba as cobertas

E ainda me distraio fácil,
nessas faces veraneias
que posso me perder

Mas meus olhos não podem parar
pras pernas olhar
um trem pode passar

Será que meu trem já passou?
mas ando tão tímido
Se perguntar a uma menina
sairá fosco ganido
E eu acabrunharei mais ainda
se não realizei
minha doce fantasia
De ser-lhe sincero ao todo
abrir meu paletó
pra arder o sol do dia

E ela bem podia
puxar-me a língua
Seria sensacional
mas diz a mulher
que é anticonstitucional

Medroso, olho para os lados
pra fugir pro passado
mas aflito, me viro,
o tempo que roda me solta
um longo assobio

O jeito é
puxar a mão dela
vencer a passarela
e deflorá-la nos trilhos
entregando ao nosso trem
 o nome dos meus filhos



terça-feira, 28 de agosto de 2012

Tiro pela culatra

Se o gillete velho me rasga
Vaza meu velho vinho tinto
Que espirra mas engasga
O sedento a sorver
Pois é meu
E quem quiser bancar o ateu
Um ator corajoso
Cientista desdenhoso
Vai vir quebrar a cara
e cairá calado
morto ao meu lado.

domingo, 26 de agosto de 2012

Cirrus Minor

tentem ouvir e ler...

leiam lentamente...
Passeando pela trilhinha verde
Dois passarinhos cirandam
Tentando se abraçar em minha volta
Estrelas em seus bicos reluzem e deixam rastros cintilantes
A sombra refresca o caminho frágil
Algumas pedrinhas rolam embaixo dos meus sapatos finos
Mas eu não tropeço nas raízes das árvores
Folhas secas e verdes, amarelas e laranjas, fazem o som
Ora macio, ora quebradiço
Uma cachoeirinha distante, invisível, enxágua o ambiente com seu respingar
Alguns raios de sol fazem brincadeiras com os galhos que os peneiram
Como brincassem de pega-pega
A trilha não tem fim, e isso agrada
Pois se tivesse, não se imagina o que viria
Nessa viagem onírica
De fins cegos
Fora de um bosque que dorme sobre tudo
Um senhor sentado não incomodaria
Ofereceria lições antigas, sábias palavras, pacientes
Mas não há mais ninguém, e não há solidão
Dois esquilos saem de uma toca e entram em outra
 E convidam para um chá
Por não serem cinco horas
Mesmo não tendo como saber a hora
Também escuta-se a flauta de um sátiro
Mas ninguém o procura, o deixam tocar em paz
Algumas folhas roçam as faces dos passageiros
Mas não arranham, só deixam a natureza sentir a pele nova
Quem viaja não fecha os olhos, as folhas fazem carinho em bons lugares
É hora de ser alegre, para quê acordar
Eles sabem que podem até tropeçar
Pra não cair e sim pairar
Ver o orvalho escorrendo da face
Cair no chão e fazer nascerem florzinhas coloridas e samambaias pequeninas
Será que é hora de voar?
Se a trilha some num ponto verde
Que aumenta devagarzinho
É como nadar e respirar debaixo d’água
Se os peixes são passarinhos
E os corais, flores
O que serão as abelhas e as borboletas
Se perderem as asinhas e ganharem nadadeiras?
Enfim vamos procurar uma toca
Pois sei que lá vai ser quente
E nem um pouco chato, será alegre
Escuro e calmo
Então, no silêncio da terra
Dormirás com os bichinhos te esquentando
Em paz, espreguiçando com preguiça
Com os olhos fechados
E os lábios entreabertos
                                                                 Em um sorriso relaxado



sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Devaneio da Humanidade

De fato deviam ser dois seres humanos, corpóreamente falando. Mas pelo próprio olhar tolo e instintivo das duas criaturas, víamos que não havia espírito algum lá dentro. A aclamada razão, a consciência humana não existia nessas alminhas velejantes. Afinal, estamos lidando com o príncipio de tudo, mais precisamente, alguns instantes antes do princípio. Nesta dimensão que crio metaforicamente, não há tempo correndo, muito menos há a nossa noção de espaço. Embora impossível, a própria existência não tem seu lugar aqui, ainda.
No caso, falo de uma dimensão superficiana, pois nossos serezinhos navegam sob uma jangada de madeira bem rústica, que sempre esteve boiando em águas universais, com suas madeirinhas toscas, sob o curso das marés longícuas e inexplicáveis. Esse oceano não é nada similar aos nossos conhecidos oceanos terráqueos. Ele representa a divisão entre o não-tempo na superfície, um mundo das ideias platônico, e o mundo do tempo e da existência terrena, onde percorre nossos corpos materiais. Falo de uma superfície transcedental.  Esse seres são apenas a representação da ideia de homem, e essa representação de homem ainda não possui esse pulsar espiritual que chamamos de alma, esta capacidade de elevarmos a voz em porquês e em serás.
Pois bem. Nossos dois personagens inexistentes seguiam pasmando sob aquelas águas misteriosas. Não vou colocar em voga se eles se alimentavam ou respiravam e se havia dias e noites, luas e sóis. Permanecerei observando o comportamento desses companheiros, dito já, instintivo. Ah, esqueci-me de deixar claro que eram macho e fêmea, e que, seguindo a lógica do instinto, copulavam mecanicamente. Nada de amor, nada de emoções. Talvez até existissem, mas nada disso tinha qualquer significado poético e profundo, digamos, humano. Eram apenas reações químicas cerebrais e sensações físicas. Os dois hominídeos seguiam suas vidas babando e pronunciando seus sons guturais, comunicando sobre sei lá o quê. Não importa o quê, uma vez que está claro que haviam apenas banalidades em suas vidas monótonas. Aqueles típicos grunhidos vazios que comumente são travados por desconhecidos, como "se vai chover" ou "se estamos ou não com fome". Nada de espírito nem humanismos,  nem de reflexões acerca da psique, teorias filosóficas ou sentimentos vividos. Pois bem, suas babas escorriam pela boca e os miolos seguiam torrando-se com essas tolices. A jangada não veio de lugar algum, muito menos os dois animais. Muito menos iriam, os três, para algum lugar.
 Adiantando o curso da narrativa, certa vez, enquanto copulavam, o olhar dos dois seres se encontrou pela primeira vez. Pode parecer piegas o olhar se encontrar e o amor surgir, mas não tem nada a ver com isso. Na verdade eles olharam bem fundo nas pupilas um do outro, que se dilatavam, como um túnel preto que se aproxima. Analisaram as íris e as suas raias coloridas, sejam verdes, azuis ou marrons. Eram belas, claro, como flores de pétalas finíssimas. Na umidade que cobria a superficie ocular, viram seus próprios olhos. Enxergaram-se pela primeira vez. Olharam no fundo dos próprios olhos, através dos olhos do outro. Encararam a própria existência pela primeira vez também, aliás, tomaram conhecimento dela. O que poderia ser aquilo que sentiam naquele momento? Uma pequena chama se acendia dentro deles, junto com ela, ardia já uma inquietação, uma angústia de existir, uma emoção de sentir-se vivo. Permaneceram alguns momentos, naquela posição confortável e peculiar. Contemplando a indiferença passada e a nova consciência que pousava em suas recém-descobertas almas. Tocaram as faces um do outro e as próprias também. Sentiram com as pontas dos dedos, agora muito mais sensíveis e delicados, cada cravo da pele, cada textura e cada pêlo. Uniram suas próprias bocas, no primeiro beijo de toda a anterioridade do princípio. Desajeitado e inexperiente, aquele beijo era apenas  uma experimentação de sensações. Se afastaram e, de mãos dadas, passaram a refletir, pela primeira vez também, dentro de si próprios. O que eram eles, exatamente? Aquele amontoado de tecidos em constante transformação, que seguia um padrão de ações, por pura intuição. O que fazim-nos se erguerem e sentirem as sensações que o mundo externo lhes proporcionava? A imagem daquele olho refletido, em conssonância com o do próprio companheiro, instigava mais ainda a curiosidade daqueles novatos pensadores. Aturdidos, coçaram a cabeça e se sentiram ansiosos. Agitavam as pontas dos dedos enquanto olhavam em volta. Nada havia lá, apenas um lençol de água de área indetermidada, que se estendia a todos os horizontes. Começaram a sentir-se desconfortáveis, pequeninos demais para tanta grandiosidade inexplicada.
Afinal, o que faziam ali, naquela jangada tosca, sobre aquelas águas, o que havia embaixo daquela imensidão aquática. Haveriam outros deles? Experimentaram, então, a sensação do desconhecido, o mistério em si. O desejo de conhecer e o medo de avançar pela linha de frente do escuro. Olharam pela primeira vez, para fora das toras de madeira velha que compunham o piso da jangadinha tosca. Temendo, o que é perfeitamente compreensível, nada a julgar. Pensaram umas três vezes, hesitantes. O homem ajoelhou-se, nu, com as mãos segurando a borda da embarcação medíocre. A mulher segurou seu abdome postando-se ao lado e acima dele, e fincou seu queixo na escápula musculosa do outro. Ele não tremia, mas erguia-se para frente e para traz, pensativo. Enfim projetou seu corpo o suficiente para que pudesse ver de frente a superfície azul. Lá estava ele de novo refletido. Dessa vez ele sorriu, ela também. Seus dedos que fincavam nervosamente na madeira se afrouxaram. Aproximou seu rosto devagarzinho da água, até que sua pele tocasse o reflexo. O contato fez a água agitar-se e desfigurar a imagem projetada. Ele ergueu-se e apalpou, assustado, o próprio rosto molhado. A forma ainda era a mesma. Retornou seu olhar para a água e viu ela se acalmar e novamente formar o reflexo liso de suas feições. Seus olhos brilhavam. Ao olhar para o lado, constatou que a mulher fazia o mesmo, mas ela já invadira a água com seus braços e brincava com as ondinhas frescas e com o respingar risonho e sonoro das águas, um barulhinho delicado, como gargarejos infantis. Ele imitou-a, e sentiu a temperatura agradável e a sensação refrescante da nova experiência. Bebeu daquela água e sentiu seu tubos digestivos deleitarem-se, como uma paz que entrava dentro dele. Jogou aquela água em sua face seca e, após sentir-se à vontade e íntimo, mergulhou naquele mistério atrante. Seguido o impulso ela o imitou, e os dois mergulharam bem fundo, naquela escuridão deliciosa e instigante.
   Dito isto, evindencio que os dados da história começaram a rolar. O relógio da humanidade começara a girar junto com os outros já submersos no oceano do tempo e do espaço. A dupla desapareceu de vista naquelas águas e deu início à aventura humana. Agora já posso chamá-los assim, de espíritos viventes. Iniciaram seu mergulho na existência. E a jangada permaceu ali, inerte, em sua transcendência atemporal. Aguardando nada acontecer e indo para lugar nenhum.
  Sabe-se que neste mergulho venturoso, nossos homens buscaram o tempo todo saciar aquela chama que queimava sua ansiedade. Pensou, criou, destruiu e reconstruiu. Debateram-se e mataram-se em palestras e em guerras. Traíram uns aos outros, competiram vorazmente. Se suicidaram de tanto saberem ou por não saberem de nada também. Foram crucificados e queimados em fogueiras, cortaram suas próprias cabeças e furaram os tão admirados olhos. Explodiram-se e amaram-se, intensamente. Misturaram horrores e maravilhas em toda sua jornada submarina. Jogaram aviões contra torres e invetaram crenças sobre novas jangadas. Aprenderam a cozinhar e a voar, sem nunca esquecer de guerrear. Passaram pelos dias de hoje e seguiram adiante, sob os ponteiros dos relógios obedientes.
   Nada disso eu vi ou sonhei, tal qual um profeta. São apenas imagens criadas em minha mente.E essas imagens ainda não cessaram. Elas prosseguem assim... Eu bem poderia imaginar o casal recém-mergulhado, retornando à superfície angustiado e exausto. Ofegantes, subiriam os dois na mesma velha jangada e deitariam sobre aqueles eternos troncos, duros e ásperos. Após descansarem, seguiriam de castigo naquela situação miserável e depressiva. Após desiludirem-se com todas as experiências e terem topado com muros em todas as perguntas. Assim seguiriam sua tortuosa flutuação. Só que desta vez com uma consciência esmagando seus instintos primitivos.
Mas não concluirei assim. Esse escrito seria demasiado pessimista e iria contra as próprias imagens que surgiram em flashes na minha imaginação. O que vejo, no final de tudo. Aliás, no momento logo após o final de tudo é o seguinte... Vejo borbolhas no oceano do tempo, quebrando a calmaria daquele limiar frágil que separa nossos dois planos imaginários. Sob um som retumbante de uma orquestra gigantesca, toneladas de litros de água seriam deslocados para os lados em ondas e espumas enevoadas. E, do epicentro deste turbilhão, despontaria um gigantesco navio de marfim, impecavelmente branco. Uma branco puríssimo que rebentaria a estúpida jangada em mil pedacinhos igualmente estúpidos. Este navio subiria à superfície imponentemente, como um Gigante grandioso e pomposo que domina os mares só com a sua presença onipotente. Demoraria alguns minutos para que a colossal estrutura saísse totalmente das águas e deitasse, reluzente em sua alvura, sobre a superfície. Enquanto isso águas escorreriam pelas suas laterais como cachoeiras preguiçosas. Milhões de cornetas saudariam a eternidade alcançada. Enfim o ápice da humanidade chegara. As centenas de bandeiras das nações tremulariam sobre enormes hastes, como arranha-céus, que enfeitariam todo o quilométrico convés límpido e vistoso, igualmente de marfim, recheado de tapeçarias refinadas.
Todos os belos homens existentes, habitantes da belonave escultural, se amariam e se abraçariam, relembrando os rechaços sofridos pelos antigos durante toda aquela bábarie vivida nas profundezas do oceano histórico. Derramariam lágrimas pelos corajosos antepassados que contribuiram com seu suor e sangue para que, enfim, os homens pudessem retornar à superfície com todo o seu espírito latente já satisfeito e respondido. Só haveria paz e sorrisos. A bárbarie fora apenas o esforço e os erros necessários para que a humanidade enfim se encontrasse.
Desta vez a embarcação era, de fato, merecedora da alma bela e amorosa dos homens e mulheres que nela viviam e navagavam. E enfim ela seguiria seu curso infinito, guiada por olhos brilhantes e espíritos radiantes.
Esse foi um devaneio eloqüente, acima de tudo, exagerado. Mas teve lá suas inspirações. Graças ao Sr. Settembrini, o grande e pemagogo humanista do livro "A Montanha Mágica" de Thomas Mann, brotou-me este devaneio. Mas, infelizmente, permanecemos na barbárie.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

pilula não engravida
compra o sexo da menina
qu'esqueceu-se de sonhar
nunca soube o que pensar



o velhinho vem sem pressa
no semáforo tropeça
mas ninguém reparou
mais um caminhão passou

observação friedman

Quando se paga por um serviço privado há maior controle sobre ele, dependendo das escalas. O que é melhor do que a distância criada ao pagar-se impostos para burocratas ilegítimos que estão, por sua vez, também distantes. o grande problema e a giganteza da maquina burocratica estatal. Seria essencial fragmentá-la, e tornar cada fração, menos dependente possível do centro. Municipios mais autonomos, federalismo, uma especie de controle democratico radical. vindo de baixo pra cima. Assim o serviço estatal, ou privado, com ajuda de um estado, para atender a todos, estaria mais manipulavel e ao alcance do contribuinte e suas exigencias.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

mergulhe de ponta na lâmpada
e viaje com a luz
nas suas chispantes faíscas azuis
colvulsionando na velocidade infinita dos eletrodos
e vê no que vai dar
aonde tua viagem vai parar
aonde a velocidade da luz vai lhe arremessar


nossa senhora do carmo

Vermelho, estático
Amarelo, ansioso
Verde, orgástico
Rápido o semáforo
Implacável major urbano
que pisca no vácuo
controlando carros invisíveis
um juiz ignorado.
Que segue julgando
enquanto os réus já se mataram.

Só lhe resta a folhinha
que, frágil, se debate em sua frente
sendo levantada e deitada
pelos ventos dos carros cegos.
que ignoram as ordens mudas.

Uma folha noturna
que capota sozinha
livre, sem linha
no asfalto duro
em seu trepidar escuro.

Ela,
Há quanto tempo esteve
enforcada num galho
até amarelar, tombar
e, ao vento,
sob rodas e sapatos rudes
dia e noite dançar?

Se essa folhinha está seca
e bóia no asfalto áspero
eu me lembro então,
de quando eu não lembrava
desta folha amarela

Eu marchava pelas ruas lá
outros marchavam pelas ruas acolá
e ela, atada nos galhos
só queria voar

Agora sentado neste banco noturno
esperando uma nave que nunca virá,
a folha amarela me olha do asfalto
e se arrasta, sorrindo, parada em meu tempo

E, se o tempo é só transformação
e o não-tempo é a não-ação
não existe mais tempo
neste estático momento.
se a folha já foi seiva,
se amanhã será pássaro
 e se depois será terra.
Hoje ela é apenas
a humilde companheira. 
Pois nem o pré nem o pós
figuram nessa minha cena.

O tempo se foi
e se preludia o retorno
mas agora, com a folha caída
em meio aos seus mil destinos:
          suas memórias e rastros,
           pra jamais lembrados,
           mui menos notados,
          e ainda o acaso que sorteia
          os seus próximos passos,
vejo o tempo que esmorece,
e o relógio que s'esquece
de roletar nossa sorte
de sussurrar nossa morte.

Com essa viajante volante
dorminhoca solitária
sob a luz semafórica
da rua autoritária
Eu paro no tempo

não mais me importo
com os maus-elementos
ou com os carros vis
à caça d'atropelamentos

Só olho os veios
os capilares secos
quebradiças tabuinhas
fininhas madeirinhas
que balouçam e gangorram
sob uma brisa noturna
com o empurrãozinho
da brisa escura.

E ela parece assobiar
tranquila com seu futuro ignorado
tanto fazia, a folha cai, voa e some.
e ninguém lhe deu nome.
E se teimam segui-la
a danada despista
como fez-me agora,
sumiu-me da minha vista

levanto os olhos
e minha folhinha
no vento noturno se foi
calada, calminha
ser varrida por outros
ou beijada por loucos

enquanto eu, parado no tempo
imaginava os caminhos
e seus tenros galhinhos
que dia-a-dia eles varrem
e os perdem
num  saco negro
com suas irmãzinhas
milhões de folhinhas
mortas
há de alguma estar viva?

pensei em guardar a folhinha
mas deixei-a voar 
seria engaiolar,
sua liberdade privar,
ter o pássaro e matar.

domingo, 12 de agosto de 2012

Momento fútil

se me negastes a meia calça
me puseste à meia vista
uma nuvem que me embaça
o desenrolar braseado da noite
não me admires tanto assim
pois deveras belos
foram teus olhos mancos
amordaçara a eloquência
da minha juventude exagerada

Enrolaste tanto teu corpo
em amarras de seda boa
que preferi ter com o teto
um papo mais sincero
contigo seria contramão
desgastado pelos nãos
aconchego na lassidão
das minhas pálpebras dormentes

Quiseras um príncipe gaulês
mas nem poeta pude ser
esbarrei na tua maldade
pois aí mesmo lhe vi

Nossa história nem tem começo
mas mesmo assim me privastes
de um sexo pervertido
por teu próprio corpo, ficou de castigo

Por isso lhe digo
finja que sou de longe
ou um parque de diversões barato
uma poeira a voar
um homem pra não falar

Liberte-se de nós meu amor
comigo, seja ao menos voraz
pois, talvez
amanhã,
eu nem exista mais

sábado, 11 de agosto de 2012

abro abro e abro

De manhã eu tomo um remédio,
abro um pão
e como
De tarde eu me sento,
abro um livro pesado
e durmo
De noite eu saio às ruas,
abro umas pernas
e amo
De madrugada eu adormeço
abro minha mente
e sonho
De sonhos sonhados
eu abro o meu mundo
e vivo.


poema origami

Faço poemas
como dobro origamis
Barquinhos, aviões, passarinhos
Chapéu de três pontas

Faço poemas
como desenho um desenho
Moças, pernas, olhos
Monstros e feras

Faço vários
inspiro e reinspiro minhas mesmas memórias
Apago e quebro meu mesmo grafite.
E, de tanto sonhar
um poeta vai tentar

Por isso alguns saem forçadinhos
outros saem arrumadinhos
uns rimam
bem
outros, mais ou menos
uns travam a língua
outros turvam a vista
e alguns
coçam a testa

Mas, os melhores
encarnam sua vida
me lembram uma peça
e uma menina.






sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Não diz nada

Você esqueceu o meu nome?
És qualquer uma que some?
Ah, não se envergonhe
Eu também esqueci o teu.

Maiakovski

Meu livro do Maiakovski
Nem é meu livro do Maiakovski
Mas fica no meu quarto
e por lá ficará.
Sua capa antiga traz a cara
Do russo bravejante
quisera eu ser poeta
que dos pulmões exala
tanta barba e bravura
Como um bárbaro à luta
quisera eu ser eslavo
e grunhir palavras
em cima de uma mesa
que rasgam e proclamam
versos tão delicados
quanto o rugir de uma bomba
e tão enraivados
quanto o pisar de uma moça

Saudades dos tempos
que Maiakovski chorava
e que a vodka era barata

Dos romances passados
e dos povos inflamados
Das bocas sinceras
e dos bravos poetas
 

tua carta

Tua carta tem treze linhas
e faz treze dias
que eu leio
uma linha por dia

Saudade daquela tarde

Saudade daquela tarde
daquela inocência
daquela ignorância
daquela displicência
preferia ter
por lá sentado
por lá ficado
por lá amado

O menino dos dedos melados e a rosa sardenta

Rosa roseira
que passa teu tempo
ouvindo besteiras
e roçando no vento
Vê o menino de dedos melados
com o querido pirulito
giramundo colorido

Pra ele sim, ela solta seu perfume
Pra que os dedos melados
lhe desarme os espinhos
e lhe colha com carinho

Assim, parte a rosinha
que, vermelha de vergonha
empeteca as tranças
de uma garotinha ruiva de olhos grandes e reluzentes
que, sardenta
sorri para o menino dos dedos melados


há de ser o meu último beijo

Fecho meus olhos
Me mudo de lugar
viajo, lhe invado o espaço
roubo tua frenteira
e você, como eu quis,
queria comigo
aquilo que eu fiz

Fico ali,
escondido do tempo
De olhos fechados
imaginando o sabor
do teu beijo sonhado

Vermelho, macio
suspiro bem fundo
pra acalmar meu coração
que desesperado
pergunta o porquê
de não ser bem beijado

Fico ali, no correr dos ponteiros
da minha escola triste
Fazendo sozinho, a minha alegria
Criando pra mim, o meu melhor dia

Imagino cada toque
de teu rosto de seda
as bordas úmidas, frias ao vento
e, lá dentro da sua boca rubra
um morno acolhedor
amortece meu beijo

E, bem pensado,
após soltarmos
como dois ímas forçados
paramos no ar, pertinho
e salivando, desistimos de desencontrar
e tornamos lívidos, a nos enroscar
ventava dentro de mim
um frio na barriga de ser tão feliz

E, não era só eu.
Abri meus olhos 
e o que vi, você era aquela criança
que sorria, por ter ganhado
o amado presente
E, no fundo, era essa a minha
maior fantasia...

Pronto, nuvens me cercavam
todo o ar era leve, fresco
E, com tanta magia
com tudo acontecendo como num éden
Meus olhos molhados brilharam
e eu tentei falar
a declaração mais verdadeira já dita
que, engasgada, perdeu-se
na minha cabeça doída
Curvando-se pra fugaz covardia

Acordei com meu próprio som gutural
de uma garganta dormida e gripada
Meus olhos ofuscados esmagaram-se ao retornarem ao sol
meu lábios relaxados balbuciavam os sons agora perdidos
que desiludidos, talvez nunca retornem
minhas pupilas contraíam
E, a umidade acumulada em sua volta, escorria
e formava pequenos orvalhos sonolentos

Então eu lembrei de tudo
E que nada eu havia vivido
Encarei o real, o duro real
Tentei sentir aquele gosto doce
Mas minha boca seca,
se fingia de azeda
E meus labios rachados
se contraíram, lacrados

Me vendo então
naquele lixo de realidade
sem vontades
nem palavras
 que mereciam ser cantadas
sem gostos
 nem olhos
que mereciam ser amados

Retornei, fugidio, aos seus braços sonhados
tornei a me embebedar, com meus olhos fechados
Achei, então, minhas dengosas palavras
E lhe dei como mel, fresco das favas
E sorrindo, selei
aquele que,
pela lei há de ser,
 o meu último beijo

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Voamos nus, numa só direção
Num redemoinho gigante
Que converge, lentamente,
agitado em ondas de explosões
pro centro das nossas vontades

Começamos brandos
planando sem pressa
em ares aquém da nossa imaginação
descansando em nuvens de sonhos
com os corpos criando o verão
bem distantezinhos
acalmando na delicadeza
e mistificando a nossa beleza

Essa calma vai só se ajuntando
E, no centro, se acumulando
Vem mais e mais calor
E, à nossa vista, aparece o destino
a fabulosa chegada
A nossa vontade, viaja,
e vai ganhando mais vida
sim, vivemos mais
queremos mais.
E a vontade traz
o olhar da tua boca imensa
e ela vem
sentimos cada vez mais a sua presença
dentro de nós, coçando o peito
e fora, puxando nosso coração de ferro para fora da garganta
como um ímã de carne

A iminência da chegada
O medo do despenhadeiro
A derradeira amada
Se juntam

Já não há calma
O redemoinho já nos engoliu por completo
Estamos apenas seguindo o fluxo
O maremoto alucinado
que joga nossos corpos possuídos
pela própria vontade,
que, após solta,
pôs-se a alimentar-se
a crescer e agigantar-se
agora ela nos domina
Nos aperta na ferida

As ondas aceleram
Não há mais nada atrás
Vemos apenas um centro que puxa
cada vez mais.

Quando mais perto, mais forte somos tragados
Num movimento frenético, despencamos em disparada
Para aquela acumulação totalizante
Tudo que vibrava à nossa volta
no nosso maremoto particular
estava sumindo
naquele buraco negro de loucuras
E, afunilando como um carrossel descontrolado
vemos a reta final.
Rubros, o sangue pressurisava cada veia
Uma agulha em brasa
atravessava nossos corpos unidos

 E, como se fôssemos a última gota do mar
O redemoinho se anulou. Fim. Silêncio.
Suspensos no ar, o prelúdio do gran finale.
Um suspiro, o ar preso, o ápice da volúpia.
A sensualidade máxima.

Sumimos dentro daquela partícula insignificante 
Aquela concentração de tudo
tudo que havia no nosso universo de amor

Enfim, dentro daquela densidade sufocante
O limite da pressão fora atingido
Tudo estancou e, enfim, explodiu
Naquele instante crítico
estávamos em meio ao big bang de nossa paixão
Tudo se amontoara num ponto
Que, teso, liberou toda aquela bela energia num estouro
Aquele mundo de inquietações corpóreas
Um oceano de prazer que fora sendo injetado e afunilado
A totalidade do êxtase havia se espalhado por todo o espaço sensível daquele momento
Em ondas avassaladoras de pulsações sanguíneas
Nosso corpo finalmente convulsionava, feliz

Em meio a esse turbilhão quente
Sentimos uma anestesia sair daquela agulha em brasa
Que queimava nossos corações
Todo um torpor fez-se sentir
Uma dormência espalhava-se por toda a parte
Tudo que borbulhava e pululava
agora se embriagava,
E, juntos, nos deliciávamos, exaustos
Silêncio,  só restava o rastro do coração já desacelerante
O suor e o rubor eram as nossas marcas de um passado safado
De nossa recém vivida aventura.
A denúncia da nossa felicidade pura.

Então ficamos esparramados
Deixando que nosso corpo
se desvanecesse com os últimos espasmos
Derretendo, num bálsamo quente e perfumado











quinta-feira, 2 de agosto de 2012

choro moderno

Num dia desses, carcomidos
Pelos meses perdidos
Eu esquecia minha vida
Como um lacaio seguia

Mas, uma figura fraudulenta me avistou
E a mim veio mancando
E, com suas passadas subversivas
Fazia as poças tristes espirrarem
Agitando suas lamas magoadas
Em meio à sarjeta grisalha

Veio trajando as noites passadas
E penteado pelo vento da tarde
Mas sorria como quem vivia
Loucamente um novo momento
- Não me trates  como um bardo no exílio
Nem um bebum que anda chato
Tampouco um fracassado poeta
ou um aspirante a asceta
 Não passo de uma pessoa
que acha, que ri e que chora
E se me permites
quero te ver mais feliz
como meu sorriso lhe diz

Então lhe convido para amar
Também, comigo, o meu maior amor
Que, como me encanta a noite
talvez lhe encante o dia
talvez lhe acenda
sua saudade de alegria
lhe chova águas mornas
e lhe lembre um sol nascente
lhe seja um vinho que entornas
e lhe excite como bela gente

Que lhe afrouxe a gravata
e, enfim, carregue sua pasta

 Dito isto,
 me arregalei
aturdido, contestei
-de que falas
meu sonhador recaldado
o que lhe faz
Ser tão bem amado ?

 Numa reverência bailante
O barbado de olhos amendoados
Laçou uma maleta
de couro, quase preta

E, dum bom veludo,
 Fortemente avermelhado
Subiu um violino
lindamente envernizado

Com a barba roçando a madeira
e os dedos sobre os finos fios
o arco pôs-se a tanger
senti o eco gemer

Começou um lamento, tristonho,
agudo como uma agulha
Suplicando minha ajuda

Cerrei meu olhos

Mas os ganidos mudaram de ideia
trataram de se levantar
e gritar para o sol a brilhar
As faíscas de notas novas
Me pareceram camponesas que brincavam
criancinhas que giravam
Sutilezas inocentes
Pipocas e presentes
que caíam,
numa garoa de cores
sobre o gramado da liberdade

Aquela bruma então foi subindo
de volta aos céus
E, em minha frente restou
o mágico curvado

De novo eu estava sozinho

Esquecido no meu ninho

O sentimento que fervia
em minha alma febril
Encontrou-se só
Sem respaldo no silêncio

A vida então regou
a minha tarde viciada
Pela primeira vez brotou
minha lágrima guardada