De fato deviam ser dois seres humanos, corpóreamente falando. Mas pelo próprio olhar tolo e instintivo das duas criaturas, víamos que não havia espírito algum lá dentro. A aclamada razão, a consciência humana não existia nessas alminhas velejantes. Afinal, estamos lidando com o príncipio de tudo, mais precisamente, alguns instantes antes do princípio. Nesta dimensão que crio metaforicamente, não há tempo correndo, muito menos há a nossa noção de espaço. Embora impossível, a própria existência não tem seu lugar aqui, ainda.
No caso, falo de uma dimensão superficiana, pois nossos serezinhos navegam sob uma jangada de madeira bem rústica, que sempre esteve boiando em águas universais, com suas madeirinhas toscas, sob o curso das marés longícuas e inexplicáveis. Esse oceano não é nada similar aos nossos conhecidos oceanos terráqueos. Ele representa a divisão entre o não-tempo na superfície, um mundo das ideias platônico, e o mundo do tempo e da existência terrena, onde percorre nossos corpos materiais. Falo de uma superfície transcedental. Esse seres são apenas a representação da ideia de homem, e essa representação de homem ainda não possui esse pulsar espiritual que chamamos de alma, esta capacidade de elevarmos a voz em porquês e em serás.
Pois bem. Nossos dois personagens inexistentes seguiam pasmando sob aquelas águas misteriosas. Não vou colocar em voga se eles se alimentavam ou respiravam e se havia dias e noites, luas e sóis. Permanecerei observando o comportamento desses companheiros, dito já, instintivo. Ah, esqueci-me de deixar claro que eram macho e fêmea, e que, seguindo a lógica do instinto, copulavam mecanicamente. Nada de amor, nada de emoções. Talvez até existissem, mas nada disso tinha qualquer significado poético e profundo, digamos, humano. Eram apenas reações químicas cerebrais e sensações físicas. Os dois hominídeos seguiam suas vidas babando e pronunciando seus sons guturais, comunicando sobre sei lá o quê. Não importa o quê, uma vez que está claro que haviam apenas banalidades em suas vidas monótonas. Aqueles típicos grunhidos vazios que comumente são travados por desconhecidos, como "se vai chover" ou "se estamos ou não com fome". Nada de espírito nem humanismos, nem de reflexões acerca da psique, teorias filosóficas ou sentimentos vividos. Pois bem, suas babas escorriam pela boca e os miolos seguiam torrando-se com essas tolices. A jangada não veio de lugar algum, muito menos os dois animais. Muito menos iriam, os três, para algum lugar.
Adiantando o curso da narrativa, certa vez, enquanto copulavam, o olhar dos dois seres se encontrou pela primeira vez. Pode parecer piegas o olhar se encontrar e o amor surgir, mas não tem nada a ver com isso. Na verdade eles olharam bem fundo nas pupilas um do outro, que se dilatavam, como um túnel preto que se aproxima. Analisaram as íris e as suas raias coloridas, sejam verdes, azuis ou marrons. Eram belas, claro, como flores de pétalas finíssimas. Na umidade que cobria a superficie ocular, viram seus próprios olhos. Enxergaram-se pela primeira vez. Olharam no fundo dos próprios olhos, através dos olhos do outro. Encararam a própria existência pela primeira vez também, aliás, tomaram conhecimento dela. O que poderia ser aquilo que sentiam naquele momento? Uma pequena chama se acendia dentro deles, junto com ela, ardia já uma inquietação, uma angústia de existir, uma emoção de sentir-se vivo. Permaneceram alguns momentos, naquela posição confortável e peculiar. Contemplando a indiferença passada e a nova consciência que pousava em suas recém-descobertas almas. Tocaram as faces um do outro e as próprias também. Sentiram com as pontas dos dedos, agora muito mais sensíveis e delicados, cada cravo da pele, cada textura e cada pêlo. Uniram suas próprias bocas, no primeiro beijo de toda a anterioridade do princípio. Desajeitado e inexperiente, aquele beijo era apenas uma experimentação de sensações. Se afastaram e, de mãos dadas, passaram a refletir, pela primeira vez também, dentro de si próprios. O que eram eles, exatamente? Aquele amontoado de tecidos em constante transformação, que seguia um padrão de ações, por pura intuição. O que fazim-nos se erguerem e sentirem as sensações que o mundo externo lhes proporcionava? A imagem daquele olho refletido, em conssonância com o do próprio companheiro, instigava mais ainda a curiosidade daqueles novatos pensadores. Aturdidos, coçaram a cabeça e se sentiram ansiosos. Agitavam as pontas dos dedos enquanto olhavam em volta. Nada havia lá, apenas um lençol de água de área indetermidada, que se estendia a todos os horizontes. Começaram a sentir-se desconfortáveis, pequeninos demais para tanta grandiosidade inexplicada.
Afinal, o que faziam ali, naquela jangada tosca, sobre aquelas águas, o que havia embaixo daquela imensidão aquática. Haveriam outros deles? Experimentaram, então, a sensação do desconhecido, o mistério em si. O desejo de conhecer e o medo de avançar pela linha de frente do escuro. Olharam pela primeira vez, para fora das toras de madeira velha que compunham o piso da jangadinha tosca. Temendo, o que é perfeitamente compreensível, nada a julgar. Pensaram umas três vezes, hesitantes. O homem ajoelhou-se, nu, com as mãos segurando a borda da embarcação medíocre. A mulher segurou seu abdome postando-se ao lado e acima dele, e fincou seu queixo na escápula musculosa do outro. Ele não tremia, mas erguia-se para frente e para traz, pensativo. Enfim projetou seu corpo o suficiente para que pudesse ver de frente a superfície azul. Lá estava ele de novo refletido. Dessa vez ele sorriu, ela também. Seus dedos que fincavam nervosamente na madeira se afrouxaram. Aproximou seu rosto devagarzinho da água, até que sua pele tocasse o reflexo. O contato fez a água agitar-se e desfigurar a imagem projetada. Ele ergueu-se e apalpou, assustado, o próprio rosto molhado. A forma ainda era a mesma. Retornou seu olhar para a água e viu ela se acalmar e novamente formar o reflexo liso de suas feições. Seus olhos brilhavam. Ao olhar para o lado, constatou que a mulher fazia o mesmo, mas ela já invadira a água com seus braços e brincava com as ondinhas frescas e com o respingar risonho e sonoro das águas, um barulhinho delicado, como gargarejos infantis. Ele imitou-a, e sentiu a temperatura agradável e a sensação refrescante da nova experiência. Bebeu daquela água e sentiu seu tubos digestivos deleitarem-se, como uma paz que entrava dentro dele. Jogou aquela água em sua face seca e, após sentir-se à vontade e íntimo, mergulhou naquele mistério atrante. Seguido o impulso ela o imitou, e os dois mergulharam bem fundo, naquela escuridão deliciosa e instigante.
Dito isto, evindencio que os dados da história começaram a rolar. O relógio da humanidade começara a girar junto com os outros já submersos no oceano do tempo e do espaço. A dupla desapareceu de vista naquelas águas e deu início à aventura humana. Agora já posso chamá-los assim, de espíritos viventes. Iniciaram seu mergulho na existência. E a jangada permaceu ali, inerte, em sua transcendência atemporal. Aguardando nada acontecer e indo para lugar nenhum.
Sabe-se que neste mergulho venturoso, nossos homens buscaram o tempo todo saciar aquela chama que queimava sua ansiedade. Pensou, criou, destruiu e reconstruiu. Debateram-se e mataram-se em palestras e em guerras. Traíram uns aos outros, competiram vorazmente. Se suicidaram de tanto saberem ou por não saberem de nada também. Foram crucificados e queimados em fogueiras, cortaram suas próprias cabeças e furaram os tão admirados olhos. Explodiram-se e amaram-se, intensamente. Misturaram horrores e maravilhas em toda sua jornada submarina. Jogaram aviões contra torres e invetaram crenças sobre novas jangadas. Aprenderam a cozinhar e a voar, sem nunca esquecer de guerrear. Passaram pelos dias de hoje e seguiram adiante, sob os ponteiros dos relógios obedientes.
Nada disso eu vi ou sonhei, tal qual um profeta. São apenas imagens criadas em minha mente.E essas imagens ainda não cessaram. Elas prosseguem assim... Eu bem poderia imaginar o casal recém-mergulhado, retornando à superfície angustiado e exausto. Ofegantes, subiriam os dois na mesma velha jangada e deitariam sobre aqueles eternos troncos, duros e ásperos. Após descansarem, seguiriam de castigo naquela situação miserável e depressiva. Após desiludirem-se com todas as experiências e terem topado com muros em todas as perguntas. Assim seguiriam sua tortuosa flutuação. Só que desta vez com uma consciência esmagando seus instintos primitivos.
Mas não concluirei assim. Esse escrito seria demasiado pessimista e iria contra as próprias imagens que surgiram em flashes na minha imaginação. O que vejo, no final de tudo. Aliás, no momento logo após o final de tudo é o seguinte... Vejo borbolhas no oceano do tempo, quebrando a calmaria daquele limiar frágil que separa nossos dois planos imaginários. Sob um som retumbante de uma orquestra gigantesca, toneladas de litros de água seriam deslocados para os lados em ondas e espumas enevoadas. E, do epicentro deste turbilhão, despontaria um gigantesco navio de marfim, impecavelmente branco. Uma branco puríssimo que rebentaria a estúpida jangada em mil pedacinhos igualmente estúpidos. Este navio subiria à superfície imponentemente, como um Gigante grandioso e pomposo que domina os mares só com a sua presença onipotente. Demoraria alguns minutos para que a colossal estrutura saísse totalmente das águas e deitasse, reluzente em sua alvura, sobre a superfície. Enquanto isso águas escorreriam pelas suas laterais como cachoeiras preguiçosas. Milhões de cornetas saudariam a eternidade alcançada. Enfim o ápice da humanidade chegara. As centenas de bandeiras das nações tremulariam sobre enormes hastes, como arranha-céus, que enfeitariam todo o quilométrico convés límpido e vistoso, igualmente de marfim, recheado de tapeçarias refinadas.
Todos os belos homens existentes, habitantes da belonave escultural, se amariam e se abraçariam, relembrando os rechaços sofridos pelos antigos durante toda aquela bábarie vivida nas profundezas do oceano histórico. Derramariam lágrimas pelos corajosos antepassados que contribuiram com seu suor e sangue para que, enfim, os homens pudessem retornar à superfície com todo o seu espírito latente já satisfeito e respondido. Só haveria paz e sorrisos. A bárbarie fora apenas o esforço e os erros necessários para que a humanidade enfim se encontrasse.
Desta vez a embarcação era, de fato, merecedora da alma bela e amorosa dos homens e mulheres que nela viviam e navagavam. E enfim ela seguiria seu curso infinito, guiada por olhos brilhantes e espíritos radiantes.
Esse foi um devaneio eloqüente, acima de tudo, exagerado. Mas teve lá suas inspirações. Graças ao Sr. Settembrini, o grande e pemagogo humanista do livro "A Montanha Mágica" de Thomas Mann, brotou-me este devaneio. Mas, infelizmente, permanecemos na barbárie.