terça-feira, 17 de julho de 2012

O absurdo da solidão.

As crianças não estão mais aqui. Elas foram embora, e isso não é justo. Ainda é muito cedo para mim vê-las saindo de casa. Afinal, elas ainda são crianças. Não que um dia elas deixem de ser minhas crianças. Mas , de fato, as minhas pequenas ainda são meninas bem novas. Uma tem sete anos e a outra, a caçula, só tem cinco. E, com essa idade, elas já tinham saído de casa.
 Eu queria ver minhas filhas saindo de casa muito tempo depois, sorrindo. Todos nós sorrindo. Mas não existe mais "nós". Se elas estivessem ao menos cursando alguma boa universidade, ou tivessem completados seus dezoito anos... Isso já bastaria para me deixar tranquilo em casa, mesmo que solitário. Eu teria me divertido por mais uns bons anos, seriam anos felizes, de balanços venturosos, acampamentos sorridentes, galochas coloridas, bonecas  vestidinhas, maquiagens novas, o primeiro saltinho e os dias de debutantes.
Após ter vivido esses bons momentos, eu poderia mofar aqui em paz. Eu ligaria uma televisão chata, fumaria um cigarro fedorento e poderia ver meu reflexo enrrugado no vidro de uma janela, já intransponível para um espírito já apodrecido. E mesmo que eu me tornasse rabugento, eu olharia minha cara envelhecida no reflexo dessa janela e lembraria dos sorrisos que um dia já ocuparam esse espaço morto.
Hoje, eu posso estar relativamente velho ou relativamente novo, com meus quarenta anos. Depende apenas do ponto de vista. Mas, definitivamente, estou muito novo para me ver só assim. Essa casa está vazia demais para a minha idade. A ausência de móveis nem me importa. São as pessoas que fazem a maior falta.
Meu chão foi-se embora com a minha ex-mulher. Eu nem a amava mais, como eu prometia antigamente. Quando nossos olhos brilhavam em planos futurescos, quando entrávamos juntos num mar de águas azuis, quando tomávamos banhos de águass quentes e nos enxarcávamos de suor na cama.
Mas toda essa água já havia secado quando ela se foi. Nós cavamos poços bem fundos para tentar encontrar alguma água. Tentamos de tudo para conseguir regar o nosso amor desértico, só que todos os poços já haviam secado. Nenhuma gota.
Mesmo assim, um relacionamento árido não justificaria de forma alguma a sua partida. Continua sendo injusto ela ter ido embora com as nossas crianças. Afinal, eram as nossas crianças. E minhas princesinhas.
Depois de tanto tempo, não me restara mais nada na vida. As outras flores que eu já tive, outrora, secaram-se e se tornaram quebradiças, puídas, foram lentamente levadas pelo vento cotidiano. E eu sempre achei que as minha três flores mais importantes, as únicas para as quais eu tinha meus olhos, estavam sendo bem regadas. Eu as observava e as admirava com muito esmero. Mas parece que elas já estavam cansadas de permanecerem inertes, plantadas num só lugar, sob os cuidados e os olhos de um só jardineiro carente. Elas se transformaram em belos pássaros, que, destemidos, alçaram vôo. Talvez elas tenham se sentido sozinhas demais no meu jardim, ou tenham tido medo de murcharem como as outras flores velhas. Eu tinha certeza de que nunca ia dexar de regá-las. Mas minhas certezas podem ter se enganado, não sei.
Já chorei bastante, até cansar. Por isso parei. Também dei um soco na parede, mas minha mão doeu muito e inchou. Então eu chutei uma porta daqui de casa, mas meu pé também ficou doendo pra cacete. Pelo menos eu consegui quebrar um pedaço dela. O barulho também foi estrondoso, o que me agradou no momento.
Mas eu já estava calmo. Até receberia bem o meu antigo amor, caso ele voltasse. Não lhe daria flores e ainda relutaria em lhe dar um beijo carinhoso. Mas, sem dúvida, eu sorriria. Pensaria também seriamente em lhe preparar um chocolate quente cremoso, como ela sempre gostou.
Já as crianças, eu gostaria de abraçá-las intensamente. Eu ficaria sem forças, mas faria de tudo para esquentá-las em meus braços bambos. Mas talvez eu também relutasse um pouco com as meninas, pois eu fiquei muito triste ao vê-las indo embora sem chorarem por mim. Eu não sei se elas sabiam que não iriam voltar mais para casa, mas apenas essa incerteza angustiante já é capaz de criar um receio em meu coração. É claro que, no final das contas, eu as abraçaria feliz. Afinal, os olhos das crianças ainda são puros. Eles não conhecem os jogos das inseguranças e malícias que atormentam as almas velhas e doentes. E, além disso, eu as amo.
Lá fora já escureceu. Aqui dentro também. O meu reflexo enfim sumiu do vidro da janela à minha frente. Felizmente o luar conseguiu entrar, com algum esforço, no meu antigo quarto. Aliás, aquele ainda era o meu quarto, nada de antigo. Embora estivesse sem os meus pertences, eu ainda estava nele. Pelo menos até o meio-dia do dia seguinte ele seria meu. Pois aí, os homens maquinais viriam tomar-me a minha casa, e então vendê-la para uma família unida.
Eu mesmo nem sabia para onde eu iria no dia seguinte. A necessidade de ordem e segurança que guiara todos os meus passos durante toda a minha vida anterior não fazia mais sentido algum naquele momento. Eu não me importava mais se eu soubesse ou não aonde eu dormiria em seguida, qual seria a minha próxima refeição e onde me limparia. Não me importava mais, pois deixaram de ser necessidades. O agora tornava-se a minha vivência total, desprendia-me do passado e despreocupava-me com o futuro. Encontrei assim, o hoje totalizado. Um agora nu e cru, que revelava-me um existir completamente distinto. Intenso, admirável e absurdo.
 Retirando-se qualquer sentido fisiológico da palavra, eu cansei de ter necessidades. Sempre as tive em excesso e, por isso, nunca satisfiz nenhuma. O sonho de ver minhas filhas saindo de casa amadurecidas não era uma necessidade mais. Deixara de ser aquela vontade que queimava em minhas entranhas e ocupava todo o meu pensar. Tornara-se apenas um devaneio jogado em meus pensamentos flutuantes. Um sentimento de injustiça passada, que já perdeu-se em tempos não tão remotos.
Enquanto isso, a lua andava cheia. Redonda e inflada. Sem dúvida alguma era a mais bonita que eu já havia visto. E muito bem acompanhada por uma multidão de estrelas sapecas. Aquela pintura estática, mas que todo dia se refazia, me atraía como nunca. Eu me sentia puxado para cima, sugado para lugares invisíveis aos meus olhos. Inalcançável e ininteligível, nada poderia me explicar o que havia além daquela visão noturna, que era tão frequente quanto enigmática.
Mas meus joelhos começaram a doer. Eu estava em pé, diante daquela janela, há horas. Tive então que renunciar ao meu regojizo celeste e abandonar aquela visão.
Sentei-me no chão duro para descansar minhas juntas e ter uma reflexão mais confortável. Mas, de fato, a vista da janela era muito mais reconfortante do que a parede branca e desagradável com a qual eu me deparava. Ela erguia-se sinistramente no breu à minha frente. Na verdade, aquela parede não era apenas desagradável, ela era totalmente detestável. Estava meio azulada, devido à coloração que a noite fazia penetrar pela janela. Entretanto, ela continuava sendo detestável.
A parede subia como um edifício infinitesimal, liso.  Apenas uns pregos desvirtuavam sua pureza monocromática, sabidamente branca. Reta demais, larga demais. A parede parecia querer intimidar-me, coisa que eu detesto, justamente por sentir-me intimidado. O topo da parede, que eu não enxergava por estar além do teto do quarto, alongava-se noite a fora até os confins dos céus, e parecia exalar um hálito frio e mau. Sentia que à qualquer momento aquela parede ia se arrebatar sobre meu corpo frágil e me engolir de vez.
Os pregos que eu havia fincado nela, pareciam não amedrontá-la. Pelo contrário, eles pareciam deixá-la mais ameaçadora ainda. Como se ela fosse um gigante inerte, que é provocado insistentemente. Mas continuaria quieto, apenas observando com maldade. E, quando o seu alvo se distraisse, estouraria com todo o seu ódio num ataque fulminante.
Essa sensação é o perfeito prelúdio de um susto aterrorizante, sim. Sentimos como se, do nada, algo fosse quebrar a monotonia do momento, disparar nossa adrenalina e arrancar-nos um grito expurgante. Em hipótese alguma eu pregaria outro prego naquela parede calada.
Para afujentar esses pensamentos desconfortáveis, resolvi desviar meu olhar para o teto. A escuridão que reinava acima da minha cabeça me fez olhar para dentro de mim, para as minhas memórias empoeiradas.
 Lembrei-me da minha ex-mulher. De quando ela me pedia para amá-la e me perguntava, em prantos, se eu ainda gostava do nosso amor. Eu sempre respodia que sim, sem pensar. Por mais que aquele fosse um assunto delicado, eu não queria ver, jamais, as suas lágrimas escorrendo. Era uma culpa grande demais para mim.
Eu preferia fazer amor com ela  tentando esconder as minhas confusões mentais. Eu só queria vê-la sorrindo e suspirando aliviada ao meu lado antes de adormecer, sob a luz amarela do meu abajur. É, demorou um certo tempo para eu descobrir que ainda a amava. Durante esse tempo eu permaneci no meu posto, criava os sorrisos do nada e carregava os medos da minha donzela nas costas.
Quando ocorreu o contrário, fiquei sozinho. Ela não conseguiu carregar o seu velho príncipe quando ele mais precisou, quando a vida o fez parecer um sapo. Não sei se ela teve medo de eu nunca mais voltar a ser o seu príncipe encantado ou se ela achou o peso das minhas fraquezas humanas acima do suportável. Mas, no final das contas, ela foi-se embora de casa, levando as minhas duas pequeninas. Saiu de supetão, como uma mulher valente e independente, mas que outrora fora carregada pelos meus braços e beijada, em seu rosto lacrimejado, pelos meus lábios.
Não tive nem mesmo o orgulho de ser jogado na rua, para poder me virar comigo mesmo. Não pude ter qualquer ímpeto independente de autoconfiança e superação. Minhas iniciativas ficaram todas contidas dentro de casa, onde eu tinha sido deixado com tudo aquilo que eu sempre convivi antes. Tive tempo de me olhar no espelho, chorar no meu travesseiro e bater a porta do meu quarto. Pude deixar as lágrimas secarem sem precisar enxugá-las frente ao mundo a julgar-me.
Mas meu tempo de adaptação acabara. Não sei se me adaptei a uma nova vida, ou ao que sobrou da antiga. Restos que não passam de um corpo envelhecido, dos meus pertences inúteis e do meu trabalho entediante. Parece que me adaptei ao nada. Corri na direção contrária. Não queria construir nada novo, estava, enfim, me desconstruindo.
Esses pensamentos foram se esvaindo e perdendo sua presença. Nem havia percebido que eu estava com os olhos fechados. Abri-os pesadamente e me ergui na escuridão como um sonâmbulo, dopado pelas sínteses e desagragações mentais. Balancei minha cabeça e sorri novamente para o luar. Eu precisava sair dali.
Saí de casa nessa madrugada quente de verão pela última vez. O ar litorâneo fazia tudo ficar mais agradável e me convidava para o melhor mergulho da minha vida. Nada mais importava, as sensações eram plenas. Tudo que era bonito ficava mais belo ainda, o mundo sensível ocupara totalmente a minha cabeça. As velhas quinquilharias mentais já não poluíam mais minhas boas sensações.
Dirigi rápidamente pela estrada reta, com as janelas abertas para sentir as lufadas de ar puro. As árvores vinham pelas margens da pista e, ao passar pelo meu carro, disparavam para trás, sendo engolidas pelo meu passado. A cerca lateral havia se tornado apenas duas linhas contínuas, de madeira, suspensas no ar. As hastes verticais tornaram-se invisíveis ao passarem tão ligeiras por mim.
Deixei o farol desligado, para não afugentar as estrelinhas acanhadas. A lua, vigorosa e atenta, não ficava para trás. Por mais rápido que eu viajasse, ela permanecia vigilante, bem acima de mim.
Estacionei na curva do mirante. O silêncio era bonito, os grilos orquestravam uma sinfonia solitária. As ondas batiam e voltavam, batiam e voltavam, e enxiam meu peito de tranquilidade. Aquele som de águas e rochas, misturava-se com as árvores e com o cheiro verde da natureza ao meu redor.
Atravessei um pequeno bosque à pé e alcancei a clareira final. Um chão pedregoso me guiava até a beirada da falésia. A brisa marítima batia gostosamente na minha cara, com seu cheiro de mar salgado. Caminhei vagarosamente até a beirada do abismo. Assim eu sentia, aprazerado, as pedras se acomodando sob os meus sapatos
Não estava tão escuro, a lua cheia clareava um pouco o mundo. Assim, olhando precipício abaixo, eu via as ondas brancas borbulhantes. Elas subiam com calma e se esparramavam preguiçosamente sobre as rochas negras que se acumulavam lá embaixo. No limite do horizonte, a noite parecia misturar-se com o oceano num só pano de fundo negro. As estrelas navegavam em águas longínquas. Não havia nenhuma nuvem para atrapalhar aquele espetáculo.
No limite da queda, virei-me de costas. Minha nuca arrepiou-se com o desconhecido infinito que a contemplava. Vi minhas pegadas moldadas no chão, vi as árvores escurecidas do bosque e, enfim, vi novamente o meu amado cenário estrelado. Nada mais perturbava a beleza do meu campo de visão. Esqueci todos os demais pensamentos, deixei minha família partir em paz e meu trabalho prosseguir sem mim, o mundo girava sem o meu peso.
Senti-me isolado no meio do universo, nada mais participava da minha vida ali. O meu querido mistério continuava enfeitado pela lua e pelas estrelas. Puxei o ar profundamente e abri meus braços, como se quisesse abraçar para sempre aquela maravilha e destilar, sozinho, todos os seus segredos imemoriais.
Aquele mistério sem resposta, aquela beleza sem fim, me envolveu completamente. Eu era totalmente atraído, senti meu corpo se suspender. O universo entrava dentro de mim.
Soltei o ar e, enfim, deixei meu corpo cair no vazio daquela existência. Sem tirar os olhos do céu, eu despenquei no infinito.


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