quarta-feira, 4 de julho de 2012

Clarividência

A multidão se esfolava na grade do estádio, vibrando frenéticamente na ressonância de hinos e injúrias cantadas. A partida já havia acabado, mas eu nem me importava com qual time havia sido o grande campeão. Podiam ser as minhas cores ou as cores rivais que enfeitariam os jornais de segunda-feira, que, no fundo, tanto fazia para mim.
Uma energia quente e latejante pulsava dentro do meu corpo, em cada dedo, evaporando pela minha pele eriçada. As feições das pessoas estavam embaçadas e a minha visão tornara-se uma tormenta de cores que vibravam em sincronia com as vozes retumbantes. O gramado enxarcava-se cada vez mais com a chuva insistente e o ar ficava cada vez mais denso. Tornava-se difícil respirar.
As duas torcidas engalfinhavam-se ferozmente no alambrado enferrujado que as separavam. Por mais que os holofotes ofuscantes, com seus canhões de luzes brancas e frias, enverdassem todo o gramado, as torcidas permaneciam naquele calor escuro, escondidas pela cobertura de concreto das arquibancadas. Sob a sombra, havia um movimento disforme de braços, cabeças, troncos e uniformes negros e azuis. Parecia um mar borbulhante de águas escuras, cujas ondas iam de encontro umas contra as outras, mas sem se tocarem, separadas por uma frágil grade retorcida.
Eu me agarrei grunhindo à cerca. Sentia que as minhas garras rasgavam o alambrado metálico, meu peito explodia. Minha consciência já não existia ali, haviam apenas reações instintivas. Centenas de corpos seguiam essa turba de inconsciência selvagem. O barulho e o fluxo agressivo daqueles corpos ensandecidos, formavam um monstro, um leviatã que agia por si próprio. Erámos apenas força e movimento, raiva e som. Rapidamente, o monstro foi se avolumando no perímetro da cerca e se enroscando nela.
Eu sentia a multidão me empurrando e me apertando para frente, mas não havia passagem. Ou o alambrado pendia sobre a torcida adversária, menos delirante, ou então eu seria espremido através dos buracos da grade, tal qual um  enorme purê de batatas ensangüentado. Com tamanha pressão , a estrutura metálica começou a se envergar lentamente sobre as pessoas do outro lado, como uma árvore caindo em câmera-lenta.
Uma espécie de marco decisivo havia chegado. Enquanto sentíamos a grade ceder sob o nosso peso, algo havia mudado. De súbito, nosso mundo parara de girar.
A intenção de violência,  que fora artificialmente criada por um impedimento físico de ser realizada, ou seja, a grade, tornava-se, com a queda da barreira, ação. Agora a vida real chegara de supetão para ser linchada por todos nós.
Então, uma relutância coletiva estancou por milésimos de segundos, quase imperceptível, quase  não foi traduzida para as expressões borradas dos nossos rostos.
Os olhos enxeram-se por um instante, ocorreu um lapso de sanidade acendendo-se como uma luz, que logo se apagou. O último suspiro da individualidade de cada um de nós escapava, enfim, dos nossos olhos novamente inertes.
Após essa pausa sutil, as tensões se inflamaram com um vigor multiplicado. O disfarce da hesitação que sentimos, surgiu como um rolo compressor, um reforço explosivo. O ar voltou a nos sacudir com os rugidos e berros loucos, tonificando-se rapidamente.
Eu me agarrava com o tênis e as mãos, forçando a grade para baixo. Quando olhei para baixo, a grade estava a uns 30º do chão. Vi uns homens com as camisas adversárias, deitados, embaixo do metal, presos pela multidão que se empurrava para escapar da estrutura que caia.  Mesmo fitando aqueles olhos aterrorizados embaixo de mim, eu só pensava em fazê-los sofrer mais.
Na verdade eu nem sequer pensava. O meu vazio mental não respondia a mais nenhum estímulo que não fosse o da turba. Eu não passava de um peixe num cardume, de uma gota d'água na maré.

Eu ameaçava com ferocidade aqueles olhos. Enquanto isso um calor forte subiu à minha cabeça, senti minha visão ficar cada vez mais turva. O barulho começava a convulsionar todo meu corpo. Em instantes veio uma confusão mental que nocauteou minhas reações e movimentos. De súbito, o barulho converteu-se num som agudo fulminante, que alfinetou meus miolos. Uma enxaqueca empurrou violentamente minhas pálbebras para baixo.Toda a realidade então fora tragada por um silêncio total. Tudo aquietou-se, como se eu houvesse perdido todos os sentidos, me senti arremesssado num vácuo vertiginoso.
Lentamente meus sentidos começaram a retornar. Quando consegui abrir meus olhos, eu ainda urrava e gesticulava loucamente, me jogando no ar com todos os músculos tensionados. Mas eu não estava mais no mundo real, na verdade eu não estava em lugar nenhum. O estádio e a selvageria haviam sumido, meus olhos injetados de sangue não enxergavam mais nada além de um branco infinito. Minha voz era o único som audível, e não ecoava, apenas se jogava para o nada. Por detrás dela, o silêncio monolítico era soberano.
Era tudo branco, não era possível distinguir teto, chão, paredes, dimensões, paisagens. Nada tinha profundidade, transparência, nem opacidade. Era um branco sem fim. Eu estava em pé num não-chão que fazia parte dessa pureza branca, inerte, imune. Me sentia no princípio de tudo, onde não havia nenhum rabisco de matéria além da minha. Era apenas uma não-existência do existir.
O que eu estava fazendo ali? Naquele nada, gritando igual um louco, socando o vazio, pisando em pessoas que não existiam mais e que eu nem sequer conhecera um dia.
 A minha consciência me atingiu como um meteoro incendiário. Tudo que eu ignorara naquele movimento marionético da turba, agora ria de mim. Por que diabos eu gritava daquela maneira? Nada daquilo tinha um porquê compreensível. Meu grito tornava-se um sussurro rouco.


Ali, sozinho, eu me sentia envergonhado, embora ninguém me observasse ou me julgasse naquele momento.
Quem havia sido eu, naquela multidão louca? Porque eu as agredia pessoas sem nenhuma razão?
Aqueles olhos sob a grade eram uma existência tal qual a minha. Mas tinha sido impossível pensar em humanos naquela hora, eu esqueci-me até do meu próprio homem, oras. Eu não era irritadiço assim em casa, nem mesmo com o meu irmão. Eu nunca era agressivo.

Após essa enxurrada de reflexões pesadas, eu me sentia exausto e contido. Meu corpo já não movia mais. Olhei para minha pele suja e para minha camisa molhada enrolada no antebraço. Meus punhos fechados destacavam as veias que agora se recolhiam, dando um aspecto hominídeo para o meu corpo.
Eu ouvia apenas meu coração socando surdamente minhas costelas humanas. Meu ódio atrofiou-se, como uma rosa espinhenta e vermelha de raiva, que revolve a um botão. Eu sentia vergonha de quem eu tinha sido, simplesmente por eu não ter sido nada.
Encolhi-me, amedrontado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário