quinta-feira, 26 de julho de 2012

Sequência bonita


O prédio grandinho é branco
E o sol, a pino, sobreou sua encosta vistosa
Que, mui bem ladrilhada  
Ficou então cinza


Mas, quando o sol escorregou
Amarela ficou
E, depois que o sol
Um pouco tombou
O laranja brotou
Que foi se avivando, vibrando
Até, até o fim do horizonte
E, ao fim, no vermelho parou

Daí, foi sumindo o sol
E, junto c'o céu
O prédio arroxeou

Que também não se firmou
Não muito durou
Enfim veio a noite
E o preto reinou
Meu colorido acabou
E a cidade calou

Venho então
Aqui todo dia
Relembrar a minha vida
Na sequência bonita

Cinza, amarelo
Laranja, vermelho
Roxo e preto


A antítese da ansiedade


Essa minha reflexão talvez seja  vazia de importância ou de significado palpável para um leitor encabrestado em suas próprias desimportâncias  e devaneios diferentes dos meus. Mas, aqueles que seguirem a mesma estrada que meu pensamento, que tremerem ao atravessar o mesmo rio turvo de perturbações, sobre a mesma pinguela verdejante e escorregadia, talvez consigam assimilar as próximas linhas. E talvez se enternecer como eu me enterneceria caso visse esse meu devaneio escrito pelas mãos de outro viajante que pensasse em sincronia comigo. Mas deixemos de lado as milhares de alternativas situacionais, e situemo-nos na presente, em que eu sou o mensageiro dessa singela reflexão,  que leva os seus passageiros específicos para uma viagem embriagada  para dentro de si. Uma abstração que amolece o corpo e faz ele ficar babando como um vegetal molhado. Dito isto, começo a destrinchar este poço subconsciente.
Reluto em dizer que sinto ansiedade agora. Não digo isso apenas pela conotação de fraqueza da ansiedade, que traz uma imagem trepidante, insegura. Aquela imagem de quem não consegue carregar a sua própria independência mental durante as esperas angustiantes que a vida nos provoca. É certo que a relutância já traduz, então, essa insegurança por sentir-se inseguro. Melhor dizendo, se eu reluto em assumir a minha ansiedade, é porque é natural que eu tenha medo de ser inseguro e, esse medo, é a própria essência ocultada da própria insegurança.
Nesse momento, por mais essa minha fuga natural da ansiedade seja presente e esclarecida, não é ela que me faz escrever estas linhas tão tortas e jogadas. À partir do momento que tomo consciência desse medo, eu não o domino, mas o entendo e aceito.
 Assim, o que me leva a temer esta ansiedade palpitante é, enfim, a sua natureza não-poética. Não há ternura nenhuma num pensamento ansioso, não há nenhuma admiração do momento que está sendo vivido. O que há é uma vontade maléfica de fazê-lo ir embora, sem que se perceba a sua beleza, a sua sutileza, o seu mistério e, por fim, a sua poesia. O regogizo interno é imobilizado e deixado cego pela  ânsia. Ansiamos por futilidades futuras, queremos ignorar o passar do tempo numa vida curta.
O que realmente me incomoda não é a fraqueza da ansiedade, e sim o que me traz a ansiedade. Geralmente são motivos bestas e sem nenhuma necessidade verdadeira que trazem essa sensação de sentir-se alfinetado e com coceiras pelo corpo. Um grito que é sufocado por uma rolha de ansiedade, um não-viver tolo e monótono, causado pela necessidade de um estímulo externo para despertar a homem e aquietar suas agitações. Esse estímulo pode ser um telefonema, uma palavra dirigida, um dia, uma compra. Variam bastante em sua estupidez.
Agora, destrinchada e esclarecida essa raiva da ansiedade, explicarei o motivo da minha. Aquele que perpetua a minha angústia e me arrancava os cabelos há pouco. E é justamente este motivo que me permite escrever sobre essa ansiedade em particular, pois ele é diferente. Não posso afirmar que ele deixa de ser fútil, mas certamente não o julgo como mau. Afinal, é poético. Ou, ao menos, deseja ser.  Indo um pouco mais longe, a ansiedade que sinto é pela falta de poesia na vida, ou seja, é pela falta de viver. Então talvez nem seja ansiedade, talvez seja o oposto dela. Mas a sensação se assemelha, o aperto no peito e o imaginar situações longíncuas e prazerosas, que justifico estarem longe do meu alcance, o que não é verdade, é apenas uma comodidade. O que descrevo aqui é quase uma ansiedade para fugir da ansiedade rotineira e neurótica das nossas vidas modernas e urbanas. Por isso não fujo dela e a encaro, descrevendo em todas essa letras e palavras desconjuntadas o meu sentimento ambíguo. Prossego então, com meu devaneio.
Eu estava na cozinha, preparando um café, quando me deparei com uma janela aberta à minha frente. O branco da cozinha estava acinzentado pela sobra do fim da tarde, que pairava dentro do meu apartamento fechado. Essa cor estava sendo humilhada por uma centelha de um pôr-do-sol atrasado. Entre os contornos de dois prédios, cujas faces em penumbra estavam voltadas para a minha janela, vi um laranja avermelhado esparramando-se céu acima. O azul estava comprimido entre essa radiante fogueira  luminosa e um roxo crepuscular que baixava com o cair da noite.
O sol já havia baixado por de trás de um outro prédio menor, localizado entre os dois maiores que emolduravam as laterais da efêmera pintura. Eu via apenas os rastros abrasados daquele sol fugitivo. E, assim, senti uma triste saudade dele e de todos os outros sóis que eu vi e vivi, e acabei perdendo para os horizontes distantes. E foi dessa saudade que veio aquela ânsia justificada.  A multidão de preguiças, almoços pontuais, programas de televisão, redes sociais e sonos em que eu mesmo me trancava no meu apartamento, sufocava os meus sonhos juvenis de viver. Me faziam esquecer minhas vontades e aspirações futuras de ganhar o mundo com botas, esboçar sorrisos por todos os continentes, recitar poemas para todas as moças que eu me apaixonar, tocar violão diante dos sóis poentes e nascentes. Sonhos que me davam vontade de usar várias vezes a mesma calça suja de terras distantes, de sobreviver à ermo, jogando para o alto todas as minhas prisões rotineiras.
Por isso eu estou roendo as minhas unhas crescidas que eu deixara crescer pela primeira vez, para tentar dedilhar com mais destreza e sonoridade a minha viola descansada. Vejo, triste, mais um pôr-do-sol perdido e choro por todos que ando perdendo pela minha vida, e que sei que perderei ainda anos à fio, deitado em cama doente. Sendo sugado pelo computador sobrecarregado.
Cansei de ser todo dia lembrado de desligar a máquina de café e de todo dia apagar as luzes, para depois ter que reacendê-las novamente. Cansei de não fazer nada, enquanto a ciranda celeste gira em torno do meu mundo sem me chamar a atenção.
Mais um pôr-do-sol que eu perco. O sol desce e a lua sobe. Ela baila com as estrelas e se esconde de novo. Então o sol sobe e reinicia a ciranda celeste. Sol e lua, revezando a pintura com suas poses imponentes. Dando voltas sobre minha cabeça, enquanto meus cabelos caem silenciosamente. E eu fico aqui, empacotado em minhas roupas, rangendo os meus dentes.
homem rico esbanjava e ganhara o dinheiro passando em cima, encontra-se angustiado, ouve conselho e resolve doar, o dinheiro sai manchado de sangue, sem ter porque, e nao e aceito por ninguem, nem pelos mendigos desdentados

Conivência e lucidez

O fato que será narrado nas linhas seguintes, ocorreu-me já faz um tempo,uns 4 ou 5 meses, eu deduzo. Não se trata de nada excepcional, criativo ou novo, é apenas um fato junto a uma observação à cerca dele. Tentarei evitar divagar sobre o assunto sem ao menos introduzi-lo, o que poderia causar embaralhamento e as minhas divagações não ancorariam em nenhum sentido palpável. Não que tudo precise ter algum sentido, isso seria uma blasfêmia. Mas o tamanho da banalidade deste fato e a sutileza das próximas reflexões, me incitam a ser o mais transparente possível, para que o leitor, usando os óculos que eu uso, consiga enxergá-las. 
Numa tarde qualquer, após o almoço, eu fui caminhando para casa. No caso, eu estava morando em um prédio não novo, mas moderadamente luxuoso, próprio da elite de classe média alta de Belo Horizonte. Apartamentos de 4 quartos, dois elevadores, porteiro, o piso do andar térreo interno e do salão de festas é de granito branco, dentre outra especificações. Pois bem, ao chegar na portaria, me deparei com a empregada doméstica que meu pai contrara, chamada nana, uma mulher de ótimo astral, bom humor e bastante competente. Ignorando a coincidência, nós nos cumprimentamos simpaticamente e provavelmente eu devo ter perguntado onde ela estava e ela deve ter respondido banalmente. Aquele tipo de diálogo curto, que é quase uma convenção entre pessoas conhecidas, mas que não são íntimas, do qual eu iria me esquecer em 30 segundos. Geralmente, a falta de assunto depois destes diálogos causa um certo desconforto em mim, o silêncio é sincero demais.Ter uma conversa é quase uma regra, que acaba deixando constrangimento às vezes. O que ocorreu, foi que o diálogo não foi o prelúdio de nenhum silêncio constrangedor, pois a Nana tomara um caminho diferente do meu. Quando eu abri a porta de vidro para entrar no hall encoberto que me levaria ao elevador social, olhei para o lado para ceder passagem para a Nana, mas vi que ela virara à esquerda em direção à uma portinha que a levaria ao elevador de serviço. No momento eu estranhei, mas não fiz nada, ela não disse nada, ia ao mesmo lugar que eu mas tomara um caminho diferente. Claro que não foi para evitar qualquer ausência de conversa no ar, que levaria a um constragimento. Ela não é do tipo de pessoa que se constrange com isso, ou qualquer outra coisa mesmo. Eu tentei falar algo, mas sem pensar. "Nana... porque... vem por..." e ela olhou para mim sorrindo, como se nada houvesse de anormal, como se ela não tivesse entendido o que eu queria dizer. Enquanto eu tentava desvencilhar daquela estranheza, tentando chamá-la pra ir no elevador social comigo, a indiferença dela fez as minhas palavras vacilarem. Ela não iria desviar do caminho que toma em seu cotidiano apenas para me acompanhar, não seria só devido à coincidência de me encontrar na portaria, que ela iria mudar sua rotina, ela é automática, inconsciente. A minha também. Usei, da mesma forma, o elevador que sempre uso, o social. A reflexão não tem nada a ver com segregação social, ou com preconceito do próprio prédio, mas em relação ao fato deu ter achado o fato estranho,  mas ter concordado com essa 'anormalidade', seguindo tranquilamente o meu caminho. Eu tive a leve lucidez, ou talvez tenha sido enfático em algo inextente, posso ter forçado as vistas, ao ponto de criar uma ilusão. Mas, ignorando as mil possibilidades, encararei como 'lucidez' o meu sentimento naquele momento.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

sono

devagar eu escrevo
meus dedos pesam
erram, esquecem, pescam uma lucidez confusa
me perco, esqueço, caio, encosto, esparramo,
não penso, escorro, prelúdio meu sonho
requiem noturno

Sono, sono, sono
peso, lentidão, lento
paro, parando no tempo
pesando, fechando, apagando
vou-me indo
embora
não pra fora
pra dentro
entrando
trôpego
para dentro da escuridão
de volta aos meus sonhos
arrastando, fraco, pereço na cama
quente agora, não frio
escuro, silêncio
silêncio
baixinho respiro
não, suspiro
arrasto
quieto
quietinho
e se vai
meu pensamento flutua no breu
meu eu se escondeu
dentro
me encolho
lento
já vou,
já sonho,
esqueço,
apago,
me enrolo.
quieto.
pesando...

fechando...

afrouxando...

sumindo...

sono...

sono...

sono...

sono...

já durmo...

me calo.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Tosse ranzinza

Cof, cof, cof
O doente que tosse
Tuberculoso, apodrecido, um fardo denegrido
Escarra escarros fedidos
Pulmões vencidos
Sangue escorrido
Um corpo vazio
Um esqueleto sozinho
Uma carcaça nojenta de pele cinzenta
Asqueroso, não se olha no espelho, seus olhos secaram, seus cabelos caíram e sua tosse arranca
A pele da garganta
Um ralador respirado
Um ouriço agarrado
Sai cinza, a tosse ranzinza.
 Do miserável, na parada final
Da sua vida horizontal
Deitado em leitos marcados
Pelos morimbundos passados
Cof, cof, cof, segue tossindo o doente.
Sem casa nem asa
pra fugir dessas ruas
dessa rotina ingrata
Uma vida cansada
De ver a piedade
dos reis da cidade
De ser o coitado
de ser carregado

noite covarde

Nessa noite covarde
Apodreço na casa
Tola de monotonia
Como um cuspe na pia
Que seca sozinho

Nem ouço os barulhos
Dos jovens no escuro
Fecho a janela
Aprofundo meu mudo

Quiçá me banhei
Nem vinho tomei
Pra escrever com ideias
Desinibidas sinceras

Sou um cadáver fadado
ao eterno fracasso
Conversar com as fotos
das mulheres qu'eu gosto

Uma caveira estancada
Eterna madrugada
Não rio nem choro
Pois não faço nada



quarta-feira, 18 de julho de 2012

(Soneto do) Idiota relutante - Poema montável

Um idiota vem perguntar
Se alguém sabe nadar
Pois seu amor caiu na água
E ela pode se afogar

Vai você, paspalho
Se arrisque dessa vez
Se jogue para sorte
E esqueça o fim do mês

Sua labuta é rotina
Olhar pernas de menina
Que encantam mas se vão

(Desimporte sua mágoa) - transforma em soneto,
E encorage, pois a água     mas prefiro sem
Vai levar teu coração

(Pula logo e não mia
pois o sol está a pino
No inverno a água é fria
e encolhe o bom menino) - Complemento safado que desvirtuaria a forma do soneto.

vagueando sobre Claus Offe

A moral do trabalhador ainda existe. Vagabundos são criticados, deputados aproveitadores e ricos ociosos que vivem na esbórnia também.
Mas acontece que hoje, o homem não está mais preocupado com a moral social como antes.
Numa era de individualismo e de fotalecimento das identidades. O homem se importa cada vez menos com o julgamento e a opinião alheia. Procura fazer o que perpetua mais seu próprio prazer latente.

Hipocrisia literata

Sincrônicos autores anônimos
Que se adivinham à ermo
Repetem sós cada termo
Só por sonhar
Algo novo pra pregar
Mas não é que se convergem?

Lá no fundo se invejam
Escrevem pra semear
Mas só pensam em ditar
A receita dum mundo bom
Mas, pois, não querem testemunhar
O mundo próprio se guiar

Pois assim perde-se a glória
De profetizar-se a história

Medo moderno

Valha-me mãe
Dessa chatisse corriqueira
Do escrutínio pavimentado
Sob a ostentação, dos ratos do estado
Deixe-me fugir dessas maldades
Esses egostos das cidades
Tenho medo do meu fim
Não quero acabar assim

Deixe eu deitar no seu colo
De que há tempos m'esqueci
E enfim dormir tranquilo
Como na minha criancice

Na certeza de qu'estarei
Em casa bem quentinho
Quando o dia raiar cedinho

 Na certeza de que esses pesadelos
Tornarão-se contigo
Meus velhos e coloridos brinquedos

Poema de ônibus II

Escrever aqui é diferente
Num movimento que desbrava
Pelas ruas e pelas casas
A metamorfose que não pára
É bom, pra pensar no corriqueiro
Dos cidadãos desse rodeio
Que se agarram como podem
Nesse touro, nossa sina
A nossa moderna vida

Poema no ônibus

Tenho meus dezoito anos
Quero mudar meus velhos panos
E todo mundo nessa neura
De tirar logo a carteira
Ter a máquina que manda
Nas cidades desumanas

E eu não fujo dessa
Atrair mulher à beça
Abandonar meus pés de gente
E me tornar metal latente

Latente, de calor e de poder
Numa voraz disputa urbana
Fundo o pé para correr
Chegar antes na gana,
no sinal avermelhado
Onde, no final...
Vais me encontrar parado.

Melhor largar e caminhar
só e só como nasci
Pra que acelerar o tempo
Se é ele que nos leva
Leva torto, mas sereno
O homem nu que vai vivendo





Sonhos

-Quis denunciar o posto, chamei o policial, mas ele foi corrompido. Me senti impotente, com medo e perseguido. Fui na polícia federal. Mas não conseguia explicar o problema. Haviam conversas paralelas e meu pai parecia estar no meio, distraindo os policiais, e eu aflito. Confusão mental.
-Num almoço estava o ex-marido da mulher do meu pai conversando com os dois.
-Rangia meus dentes e sentia-os saindo. Continuava fazendo força até eles saírem. Aflitivo.

Foda-se...

Foda-se...
Devolve pra mim esse foda-se
M'ensina a gritar esse foda-se
Pras minhas velhas dores...

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terça-feira, 17 de julho de 2012

O absurdo da solidão.

As crianças não estão mais aqui. Elas foram embora, e isso não é justo. Ainda é muito cedo para mim vê-las saindo de casa. Afinal, elas ainda são crianças. Não que um dia elas deixem de ser minhas crianças. Mas , de fato, as minhas pequenas ainda são meninas bem novas. Uma tem sete anos e a outra, a caçula, só tem cinco. E, com essa idade, elas já tinham saído de casa.
 Eu queria ver minhas filhas saindo de casa muito tempo depois, sorrindo. Todos nós sorrindo. Mas não existe mais "nós". Se elas estivessem ao menos cursando alguma boa universidade, ou tivessem completados seus dezoito anos... Isso já bastaria para me deixar tranquilo em casa, mesmo que solitário. Eu teria me divertido por mais uns bons anos, seriam anos felizes, de balanços venturosos, acampamentos sorridentes, galochas coloridas, bonecas  vestidinhas, maquiagens novas, o primeiro saltinho e os dias de debutantes.
Após ter vivido esses bons momentos, eu poderia mofar aqui em paz. Eu ligaria uma televisão chata, fumaria um cigarro fedorento e poderia ver meu reflexo enrrugado no vidro de uma janela, já intransponível para um espírito já apodrecido. E mesmo que eu me tornasse rabugento, eu olharia minha cara envelhecida no reflexo dessa janela e lembraria dos sorrisos que um dia já ocuparam esse espaço morto.
Hoje, eu posso estar relativamente velho ou relativamente novo, com meus quarenta anos. Depende apenas do ponto de vista. Mas, definitivamente, estou muito novo para me ver só assim. Essa casa está vazia demais para a minha idade. A ausência de móveis nem me importa. São as pessoas que fazem a maior falta.
Meu chão foi-se embora com a minha ex-mulher. Eu nem a amava mais, como eu prometia antigamente. Quando nossos olhos brilhavam em planos futurescos, quando entrávamos juntos num mar de águas azuis, quando tomávamos banhos de águass quentes e nos enxarcávamos de suor na cama.
Mas toda essa água já havia secado quando ela se foi. Nós cavamos poços bem fundos para tentar encontrar alguma água. Tentamos de tudo para conseguir regar o nosso amor desértico, só que todos os poços já haviam secado. Nenhuma gota.
Mesmo assim, um relacionamento árido não justificaria de forma alguma a sua partida. Continua sendo injusto ela ter ido embora com as nossas crianças. Afinal, eram as nossas crianças. E minhas princesinhas.
Depois de tanto tempo, não me restara mais nada na vida. As outras flores que eu já tive, outrora, secaram-se e se tornaram quebradiças, puídas, foram lentamente levadas pelo vento cotidiano. E eu sempre achei que as minha três flores mais importantes, as únicas para as quais eu tinha meus olhos, estavam sendo bem regadas. Eu as observava e as admirava com muito esmero. Mas parece que elas já estavam cansadas de permanecerem inertes, plantadas num só lugar, sob os cuidados e os olhos de um só jardineiro carente. Elas se transformaram em belos pássaros, que, destemidos, alçaram vôo. Talvez elas tenham se sentido sozinhas demais no meu jardim, ou tenham tido medo de murcharem como as outras flores velhas. Eu tinha certeza de que nunca ia dexar de regá-las. Mas minhas certezas podem ter se enganado, não sei.
Já chorei bastante, até cansar. Por isso parei. Também dei um soco na parede, mas minha mão doeu muito e inchou. Então eu chutei uma porta daqui de casa, mas meu pé também ficou doendo pra cacete. Pelo menos eu consegui quebrar um pedaço dela. O barulho também foi estrondoso, o que me agradou no momento.
Mas eu já estava calmo. Até receberia bem o meu antigo amor, caso ele voltasse. Não lhe daria flores e ainda relutaria em lhe dar um beijo carinhoso. Mas, sem dúvida, eu sorriria. Pensaria também seriamente em lhe preparar um chocolate quente cremoso, como ela sempre gostou.
Já as crianças, eu gostaria de abraçá-las intensamente. Eu ficaria sem forças, mas faria de tudo para esquentá-las em meus braços bambos. Mas talvez eu também relutasse um pouco com as meninas, pois eu fiquei muito triste ao vê-las indo embora sem chorarem por mim. Eu não sei se elas sabiam que não iriam voltar mais para casa, mas apenas essa incerteza angustiante já é capaz de criar um receio em meu coração. É claro que, no final das contas, eu as abraçaria feliz. Afinal, os olhos das crianças ainda são puros. Eles não conhecem os jogos das inseguranças e malícias que atormentam as almas velhas e doentes. E, além disso, eu as amo.
Lá fora já escureceu. Aqui dentro também. O meu reflexo enfim sumiu do vidro da janela à minha frente. Felizmente o luar conseguiu entrar, com algum esforço, no meu antigo quarto. Aliás, aquele ainda era o meu quarto, nada de antigo. Embora estivesse sem os meus pertences, eu ainda estava nele. Pelo menos até o meio-dia do dia seguinte ele seria meu. Pois aí, os homens maquinais viriam tomar-me a minha casa, e então vendê-la para uma família unida.
Eu mesmo nem sabia para onde eu iria no dia seguinte. A necessidade de ordem e segurança que guiara todos os meus passos durante toda a minha vida anterior não fazia mais sentido algum naquele momento. Eu não me importava mais se eu soubesse ou não aonde eu dormiria em seguida, qual seria a minha próxima refeição e onde me limparia. Não me importava mais, pois deixaram de ser necessidades. O agora tornava-se a minha vivência total, desprendia-me do passado e despreocupava-me com o futuro. Encontrei assim, o hoje totalizado. Um agora nu e cru, que revelava-me um existir completamente distinto. Intenso, admirável e absurdo.
 Retirando-se qualquer sentido fisiológico da palavra, eu cansei de ter necessidades. Sempre as tive em excesso e, por isso, nunca satisfiz nenhuma. O sonho de ver minhas filhas saindo de casa amadurecidas não era uma necessidade mais. Deixara de ser aquela vontade que queimava em minhas entranhas e ocupava todo o meu pensar. Tornara-se apenas um devaneio jogado em meus pensamentos flutuantes. Um sentimento de injustiça passada, que já perdeu-se em tempos não tão remotos.
Enquanto isso, a lua andava cheia. Redonda e inflada. Sem dúvida alguma era a mais bonita que eu já havia visto. E muito bem acompanhada por uma multidão de estrelas sapecas. Aquela pintura estática, mas que todo dia se refazia, me atraía como nunca. Eu me sentia puxado para cima, sugado para lugares invisíveis aos meus olhos. Inalcançável e ininteligível, nada poderia me explicar o que havia além daquela visão noturna, que era tão frequente quanto enigmática.
Mas meus joelhos começaram a doer. Eu estava em pé, diante daquela janela, há horas. Tive então que renunciar ao meu regojizo celeste e abandonar aquela visão.
Sentei-me no chão duro para descansar minhas juntas e ter uma reflexão mais confortável. Mas, de fato, a vista da janela era muito mais reconfortante do que a parede branca e desagradável com a qual eu me deparava. Ela erguia-se sinistramente no breu à minha frente. Na verdade, aquela parede não era apenas desagradável, ela era totalmente detestável. Estava meio azulada, devido à coloração que a noite fazia penetrar pela janela. Entretanto, ela continuava sendo detestável.
A parede subia como um edifício infinitesimal, liso.  Apenas uns pregos desvirtuavam sua pureza monocromática, sabidamente branca. Reta demais, larga demais. A parede parecia querer intimidar-me, coisa que eu detesto, justamente por sentir-me intimidado. O topo da parede, que eu não enxergava por estar além do teto do quarto, alongava-se noite a fora até os confins dos céus, e parecia exalar um hálito frio e mau. Sentia que à qualquer momento aquela parede ia se arrebatar sobre meu corpo frágil e me engolir de vez.
Os pregos que eu havia fincado nela, pareciam não amedrontá-la. Pelo contrário, eles pareciam deixá-la mais ameaçadora ainda. Como se ela fosse um gigante inerte, que é provocado insistentemente. Mas continuaria quieto, apenas observando com maldade. E, quando o seu alvo se distraisse, estouraria com todo o seu ódio num ataque fulminante.
Essa sensação é o perfeito prelúdio de um susto aterrorizante, sim. Sentimos como se, do nada, algo fosse quebrar a monotonia do momento, disparar nossa adrenalina e arrancar-nos um grito expurgante. Em hipótese alguma eu pregaria outro prego naquela parede calada.
Para afujentar esses pensamentos desconfortáveis, resolvi desviar meu olhar para o teto. A escuridão que reinava acima da minha cabeça me fez olhar para dentro de mim, para as minhas memórias empoeiradas.
 Lembrei-me da minha ex-mulher. De quando ela me pedia para amá-la e me perguntava, em prantos, se eu ainda gostava do nosso amor. Eu sempre respodia que sim, sem pensar. Por mais que aquele fosse um assunto delicado, eu não queria ver, jamais, as suas lágrimas escorrendo. Era uma culpa grande demais para mim.
Eu preferia fazer amor com ela  tentando esconder as minhas confusões mentais. Eu só queria vê-la sorrindo e suspirando aliviada ao meu lado antes de adormecer, sob a luz amarela do meu abajur. É, demorou um certo tempo para eu descobrir que ainda a amava. Durante esse tempo eu permaneci no meu posto, criava os sorrisos do nada e carregava os medos da minha donzela nas costas.
Quando ocorreu o contrário, fiquei sozinho. Ela não conseguiu carregar o seu velho príncipe quando ele mais precisou, quando a vida o fez parecer um sapo. Não sei se ela teve medo de eu nunca mais voltar a ser o seu príncipe encantado ou se ela achou o peso das minhas fraquezas humanas acima do suportável. Mas, no final das contas, ela foi-se embora de casa, levando as minhas duas pequeninas. Saiu de supetão, como uma mulher valente e independente, mas que outrora fora carregada pelos meus braços e beijada, em seu rosto lacrimejado, pelos meus lábios.
Não tive nem mesmo o orgulho de ser jogado na rua, para poder me virar comigo mesmo. Não pude ter qualquer ímpeto independente de autoconfiança e superação. Minhas iniciativas ficaram todas contidas dentro de casa, onde eu tinha sido deixado com tudo aquilo que eu sempre convivi antes. Tive tempo de me olhar no espelho, chorar no meu travesseiro e bater a porta do meu quarto. Pude deixar as lágrimas secarem sem precisar enxugá-las frente ao mundo a julgar-me.
Mas meu tempo de adaptação acabara. Não sei se me adaptei a uma nova vida, ou ao que sobrou da antiga. Restos que não passam de um corpo envelhecido, dos meus pertences inúteis e do meu trabalho entediante. Parece que me adaptei ao nada. Corri na direção contrária. Não queria construir nada novo, estava, enfim, me desconstruindo.
Esses pensamentos foram se esvaindo e perdendo sua presença. Nem havia percebido que eu estava com os olhos fechados. Abri-os pesadamente e me ergui na escuridão como um sonâmbulo, dopado pelas sínteses e desagragações mentais. Balancei minha cabeça e sorri novamente para o luar. Eu precisava sair dali.
Saí de casa nessa madrugada quente de verão pela última vez. O ar litorâneo fazia tudo ficar mais agradável e me convidava para o melhor mergulho da minha vida. Nada mais importava, as sensações eram plenas. Tudo que era bonito ficava mais belo ainda, o mundo sensível ocupara totalmente a minha cabeça. As velhas quinquilharias mentais já não poluíam mais minhas boas sensações.
Dirigi rápidamente pela estrada reta, com as janelas abertas para sentir as lufadas de ar puro. As árvores vinham pelas margens da pista e, ao passar pelo meu carro, disparavam para trás, sendo engolidas pelo meu passado. A cerca lateral havia se tornado apenas duas linhas contínuas, de madeira, suspensas no ar. As hastes verticais tornaram-se invisíveis ao passarem tão ligeiras por mim.
Deixei o farol desligado, para não afugentar as estrelinhas acanhadas. A lua, vigorosa e atenta, não ficava para trás. Por mais rápido que eu viajasse, ela permanecia vigilante, bem acima de mim.
Estacionei na curva do mirante. O silêncio era bonito, os grilos orquestravam uma sinfonia solitária. As ondas batiam e voltavam, batiam e voltavam, e enxiam meu peito de tranquilidade. Aquele som de águas e rochas, misturava-se com as árvores e com o cheiro verde da natureza ao meu redor.
Atravessei um pequeno bosque à pé e alcancei a clareira final. Um chão pedregoso me guiava até a beirada da falésia. A brisa marítima batia gostosamente na minha cara, com seu cheiro de mar salgado. Caminhei vagarosamente até a beirada do abismo. Assim eu sentia, aprazerado, as pedras se acomodando sob os meus sapatos
Não estava tão escuro, a lua cheia clareava um pouco o mundo. Assim, olhando precipício abaixo, eu via as ondas brancas borbulhantes. Elas subiam com calma e se esparramavam preguiçosamente sobre as rochas negras que se acumulavam lá embaixo. No limite do horizonte, a noite parecia misturar-se com o oceano num só pano de fundo negro. As estrelas navegavam em águas longínquas. Não havia nenhuma nuvem para atrapalhar aquele espetáculo.
No limite da queda, virei-me de costas. Minha nuca arrepiou-se com o desconhecido infinito que a contemplava. Vi minhas pegadas moldadas no chão, vi as árvores escurecidas do bosque e, enfim, vi novamente o meu amado cenário estrelado. Nada mais perturbava a beleza do meu campo de visão. Esqueci todos os demais pensamentos, deixei minha família partir em paz e meu trabalho prosseguir sem mim, o mundo girava sem o meu peso.
Senti-me isolado no meio do universo, nada mais participava da minha vida ali. O meu querido mistério continuava enfeitado pela lua e pelas estrelas. Puxei o ar profundamente e abri meus braços, como se quisesse abraçar para sempre aquela maravilha e destilar, sozinho, todos os seus segredos imemoriais.
Aquele mistério sem resposta, aquela beleza sem fim, me envolveu completamente. Eu era totalmente atraído, senti meu corpo se suspender. O universo entrava dentro de mim.
Soltei o ar e, enfim, deixei meu corpo cair no vazio daquela existência. Sem tirar os olhos do céu, eu despenquei no infinito.


Devaneio da Matrix

Nos tempos atuais convivemos com uma herança iluminista que moldou a nossa sociedade. A racionalidade científica tornou-se um ideal. Tudo (relacionamentos sociais, administrações pública e privada, dinâmicas de transporte, criações humanas, sistemas físicos e metafísicos, o estado, etc..) é projetado, em sua instância final e perfeita, para funcionar mecanicamente.
A ideia da precisão da máquina ultrapassou as engenharias. Um símbolo tosco disso é o recrutamento de engenheiros para administrar empresas. A lógica mecânica ganhou o status de utilidade máxima, tornou-se a lógica mais racional. A própria denominação "Racional" já problematiza essa minha reflexão. A alternativa, o caminho chamado de "racional" nos leva a entender, etimologicamente, que seja o caminho mais utilitário possível, o óbvio da funcionalidade perfeita. Como se fosse a característica de algo produzido com a máxima clarividência da mente humana, o ápice da nossa inteligência.
Mas não, a capacidade de criar esses sistemas encadeados e precisos, faz parte de apenas um tipo de racionalidade humana. Ela não resume a instância mais elaborada e benéfica de nossa racionalidade humana total. Essa racionalidade matemática é um viés técnico magnífico, que os homens extraíram da natureza à partir de nossas competências sensíveis. A mágica que nós fazemos com os númenos engenheiros são fundamentais para a magnificência humana, são essenciais para expandirmos nosso bem-estar e melhorar a nossa compreensão de mundo, mas não são tudo que temos para pensar.
O âmago do meu argumento reside no fato de a nossa inteligência ser muito mais profunda do que a capacidade de criar (ou revelar) sistemas mecânicos fechados e de viver dentro deles. O maior problema está nos nossos instintos, imperfeições, desejos, instabilidadse, despadronizações e metamorfoses, que impedem o funcionamento de um sistema racional no qual seríamos peças. Um perfeito exemplo disso é a burocracia fechada e enferrujada de grandes estados modernos.
 É como criar um sistema estatal, encaixando peças humanas, e esperar um funcionamento perfeito dele, sem desvios de conduta, interferências de interesses pessoais, favorecimentos, etc. Essa ideia só daria certo se o homem fosse um robô.
Essa ideia, no caso, a confiança (na minha opinião é uma inocência por parte da população, por ser enganada por aqueles que desvirtuam o estado e a administração pública - os corruptos, poderosos influentes, lobistas - que se mantém no topo ao fazerem a população crer num funcionamento mecânico, perfeito e inquestionável da Burocracia estatal.) na perfeição desses sistemas-padrão  pode ser vista por toda a sociedade. Como em livros de auto-ajuda, que criam caminhos-padrão para se atingir a felicidade ou então para se tornar um novo-rico e que, assim, censuram as particularidades de cada ser humana; Em correntes psicológicas que tratam o paciente a fim de tornar-lo ideal, ao invés de ajudá-lo a conhecer a si próprio e se aceitar socialmente ( Esses tratamentos surgem pela demanda moderna de idealização pessoal. O homem moderno não quer encontrar a sua própria essência, ele quer que sua essência seja aquela idealizada e perfeita. Ele busca uma terapia que que tenta reprogramá-lo a fim de torná-lo o sujeito perfeito e sincrônico); Em imperativos estéticos e suas estereotipagens; Em desejos turbulentos pelo consumo ideal, por estilos de vida que não conseguem ser vividos por todos os homens ao mesmo tempo. Todos querem se tornar as peças ideais do nosso sistema maquinal.
Vou agora, criar uma metáfora para devanear sobre os caminhos pelos quais essas tendências podem nos levar. Ao tentarmos criar esse perfeito quebra-cabeças com peças humanas que sempre mudam suas formas e cores, ou seja, nunca serão rígidas o suficiente para se encaixarem, enquanto humanas, surgem duas alternativas:
1)O quebra-cabeça se desfaz, por pura incompatibilidade e dá lugar a outra organização social das peças humanas, uma nova distribuição e interrelação dessas peças no mundo.
2)Ou então, o Quebra-cabeças sobrepuja a humanidade das peças. Desumaniza elas para encaixá-las no seu sistema perfeito, tornando-as, robôs, autômatos, marionetes, seres inflexíveis e orientados externamente.
No segundo devaneio, as almas humanas que mantiverem-se vivas em meio aos poderosos encaixes do Sistema de um Quebra-cabeças megalômano, viverão nas margens. Escondendo-se nas sombras dos edificios perfeitos e fugindo dos ex-humanos sedentos por sangue animal. Os sopros de vida restantes tentarão lutar contra a máquina, ou serão esmagados por ela. Eis o motivo do título.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

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domingo, 8 de julho de 2012

cheque-mate


A chuva caía com aflição através da noite. A água despencava em grossos pingos, que trespassavam o escuro escondidos. Uma negritude sem fim dominava a noite do lado de fora do pequeno apartamento. As nuvens encobriam densamente a lua e as estrelas, sufocando as esperanças de qualquer minúscula fonte de claridade no céu. Abaixo, a luz solitária da lâmpada de uma sala escapava pela janela, compondo um dos raros pontos iluminados que podiam ser vistos, ilhados, no mar negro que se estendia noite afora.
A noite já se aproximava da beirada do abismo, perigava a madrugada. E poucas janelas davam sinais de vida no horizonte da cidade entorpecida. A maioria das pessoas dormia profundamente enovelada em seus lençóis sob o ruído insistente da tempestade. Algumas ainda abriam os olhos, de tempos em tempos, assustadas com os estrondos bravos dos trovões à espreita.
Atrás do frágil vidro da janela, dois homens jogavam xadrez em uma sala de estar. A iluminação não era forte. Apenas uma luminária duvidosa pendia sob um fio, bem acima da pequena mesa circular onde jazia o tabuleiro alvi-negro. As paredes brancas, ainda diminutamente no breu, adquiriam um tom amarelo com a luz fraca da esforçosa lâmpada.
A mobília não era farta. Todos os móveis eram de madeira escura e pesada, e carregavam um estilo rústico. Além da mesinha de jogos, haviam duas cadeiras, uma estante com três pequenas portas embaixo, uma cômoda de cinco gavetas largas e um sofá vermelho desbotado, com dois lugares não muito espaçosos.
O ar dos dois homens era grave, e ambos detiam um copo de uísque dourado nas mãos. De costas para a porta da cozinha, estava sentado Scot, que observava atentamente os dedos pensativos do Dr. Ervin, que estava de costas para a porta de entrada do apartamento do primeiro. Isolados naquele caixote que boiava no oceano das trevas noturnas, os dois homens jogavam e passavam suas rodadas em um ritmo pesado e monótono.
 Scot tinha 32 anos e Ervin beirava os 60, uma diferença que era facilmente perceptível pela aparência e pelas vestimentas de ambos. Scot usava os cabelos curtos e a barba bem aparada. Vestia uma camisa social listrada, um par de mocassins marrons e calças jeans de 'haute couture'. Já o Dr. Ervin, ostentava uma barba grisalha solene, uma calvície relativa e algumas rugas ríspidas. Tendo, então, um sobretudo marrom-escuro apoiado em seus ombros, sobre roupas sociais discretas, também escuras.
"Essa chuva cai com força, não?"-perguntou petulantemente Scot-"parece que não vai parar tão cedo...".
"Não tenho nada contra ela"-respondeu o Dr. Ervin, sem tirar os olhos do tabuleiro.
"Ah... eu também acho que essa chuva não me incomoda muito, mas, de certo modo, prefiriria a sua ausência do que essa sua presença tão violenta"- acatou Scot, tentando empurrar alguma conversa para frente e esquivando-se de qualquer divergência de opiniões.  O que sem dúvida lhe deixaria desgostoso.
Era apenas uma conversa tola, mas a resposta do Dr. Ervin, como as outras, deixou Scot um tanto quanto frustrado. O Dr.Ervin não deixava transparecer nenhum interesse ou sentimento por palavra alguma.
Scot sentia-se desconfortável em ficar constantemente tentando iniciar conversas ridículas e vazias. Após as respostas do Dr. Ervin, não havia mais nada para se dizer, ou, sobretudo,  não havia nem mais vontade de manter-se a conversa, ela tornava-se um peso sobre o ego. O ar absorto exalado pelo Dr. Ervin acabou, enfim, convencendo Scot a aceitar aquela condição que tanto o perturbava, o silêncio.
O ruído dos peões, bispos e cavalos trocando de casas no tabuleiro tornou-se então a única constante auditiva vinda de dentro do apartamento, a bailar com as malcriadas gotas que batiam no parapeito da janela.
Ambos fumavam os charutos cubanos do Dr. Ervin, e a fumaça branca infestava todo o aposento com o seu cheiro forte de bom tabaco. O cinzeiro já estava quase transbordando quando Scot levantou-se para esvazia-lo na lixeira da cozinha. Enquanto isso o Dr. Ervin permaneceu imóvel, pensando na sua jogada. A cozinha tinha azulejos brancos e azuis, várias tonalidades de azuis se distribuiam aleatoriamente pela parede. A cozinha era bem simples, como o resto do apartamento, tinha apenas uma pia, dois armários brancos modestos, uma geladeira média e um fogão de duas bocas. Como morava só, Scot não exigia muito de seu lar, estava contente apenas com o necessário, embora sua condição financeira viesse se avantajando nos últimos tempos.
Scot voltou com um copo d'água a passos ruidosos, com a esperança reacesa de iniciar um contato amigável com o adversário. Sua frustração vinha fácil, mas também era raramente esquecida. Conhecera o Dr. Ervin no mesmo dia, em uma charutaria, por acaso. Atraído pela seriedade e impessoalidade daquele senhor, convidara-o para um partida de Xadrez naquela noite. Sentia-se desafiado a desvendar a consciência de pessoas assim, fechadas. Gostava de conhecê-las, de desarmá-las. Sempre audaciou desvendar alguma alma que tivesse aberturas amigáveis reprimidas, por detrás das respostas secas e olhos sérios. Lhe dava gosto ser reconhecido como alguém digno e confiável o suficiente para merecer a abertura de pessoas aparentemente impenetráveis.
Mas algo corria diferente com o Dr. Ervin. Ele permanecia impassível, não sorrira uma só vez. Scot não ouvira nem mesmo um comentário sarcástico, o que era bem esperado de pessoas com esses ares.
Por isso se inquietava, tentava a qualquer custo ganhar a atenção daquele senhor misterioso, mas seu carisma fracassava miseravelmente.
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Enquanto retornava da cozinha, Scot teve tempo para refletir sobre a situação. Reerguera seu ânimo, afastando as inseguranças que o prostravam. Imaginou que a sua própria preocupação era o impecilho para uma conversa agradável, tentava iniciar assuntos artificiais e banais forçosamente, e isso, é claro, não era incentivo algum para que o Dr. Ervin se interessasse. Scot então voltou tentando transparecer um ar contente. Mas nada adiantou, o outro permaneceu imóvel, olhando para o tabuleiro. Ele ainda não havia movido sua peça.
Scot novamente intimidou-se, parou de fazer ruídos, temendo incomodar o oponente. Sentou-se mecanicamente e colocou o copo sobre a mesa. A lâmpada acima deles havia enfraquecido um pouco, o ambiente ficara mais lúgubre. A chuva ainda batia na janela. Após observar novamente o ambiente a sua volta, o olhar de scot focalizou a cabeça do Dr. Ervin. Sobre a sua testa envelhecida, havia uma mosca gorda. O inseto era de um verde brilhante, e limpava as patas tranquilamente. Seus grandes olhos avermelhados, que pareciam globos de danceterias minúsculos, não expressavam nada, apenas ficavam paralizados e absortos. Sua pequena boca, que parecia uma tromba de elefante, esticava-se e recolhia-se organicamente. Scot também reparou nos películos que cobriam as patas negras e no abdôme,que exalava aquele verde duro e metálico e era coberto por dobras escuras. As asas, que de tempos em tempos tremiam em reflexos espamados, eram translúcidas e totalmente entrecortada por linhas negras, lembrando uma bacia hidrográfica de piche.
 Scot ficou alguns segundos com os olhos fixos naquela mosca invasiva, totalmente alheio ao jogo e ao apartamento à sua volta, como num transe momentâneo. Até que a realidade lhe batesse à porta novamente.
De súbito, Scot agitou a cabeça torta e recobrou a consciência. De assalto, arredou a cadeira e ofegou uma lufada de ar rapidamente. Arregalando os olhos assustados para o Dr. Ervin, viu que ele pemanecia inerte, como se não houvesse mais ninguém ali naquela sala. Mesmo com o barulho feito por Scot ao assustar-se e com a maldita presença daquele inste perturbador, o Dr. Ervin não reagia.
A visão asquerosa daquela mosca começou a incomodar profundamente Scot, aquela imagem tornava-se cada vez mais doentia. Ele rangia os dentes e batia os pés no chão repetidamente, numa crescente ansiedade. Chegou um momento em que a gastura foi tanta que Scot ergueu-se raivosamente da cadeira e afugentou a mosca com um movimento brusco das mãos.
Aquela exasperação não pareceu incomodar o Dr. Ervin, que ergueu os olhos e disse, pacientemente, "Obrigado". E, dito isso, moveu o seu bispo perigosamente. Scot respirou fundo, tentando esquecer a ansiedade. Tomou uma grande golada de água e se pôs a observar o jogo. Estava numa situação favorável, havia perdido uma torre, um bispo e dois peões, enquanto o adversário tinha sofrido as seguintes baixas: duas torres, um cavalo, um bispo e três peões. Observando satisfeito seu desempenho, exclamou, tentando descontrair-se dos incômodos recentes: "Rá, dessa vez eu ganho, sim? Pulo da janela se não o fizer...". Então, avançou sua rainha e derrubou o último cavalo que restava para o Dr. Ervin.
Ao ouvir tais palavras lúdicas, o Dr. Ervin, olhou nos olhos de Scot, com a boca entreaberta. Um sorriso malicioso formou-se, revelando parte de alguns dentes amarelados. Scot tentou fingir um sorriso também, mas não parecia estar respondendo à altura. O sorriso do Dr. Ervin não havia mostrado nenhum sinal de alegria, era puro sarcasmo. Mas aquele sarcasmo parecia maldoso, não havia nenhum traço de humor irônico, Scot sentiu que estava sendo ameaçado por aquele sorriso. Um frio no peito lhe fez sentir que aquele sorriso zombava o ser humano "Scot", ao invés de rir-se da brincadeira inoportuna feita por tal criatura.
Apreensivo, Scot permaneceu encarando aqueles olhos sérios. O Dr. Ervin meneou a cabeça para os dois lados e baixou seu olhar novamente para o tabuleiro. Sua mão ergueu-se e, sem pensar, ele avançou derradeiramente com a rainha. Neste momento, Scot viu que todas as suas jogadas anteriores haviam sido planejadas pelo seu adversário, tudo encaixara-se perfeitamente. "Xeque-mate", pronunciou Scot, com relutância. Mas realmente não havia saída, o jogo havia sido conduzido ao fim com maestria pelo silêncio do Dr. Ervin.
Scot, um pouco amedrontado, permaneceu quieto, tentando entender a situação. O sorriso malicioso estava fixado em sua mente, pertubador, como se o ameaçasse de dentro. Coçou a cabeça, inquieto, tentando afastar aquelas aberrações. Quando deu por si, o Dr. Ervin havia se levantado e rumava para a cozinha. "pegarei um copo d'água, aceita?" -indagou o doutor-
 " Er, não, ob-obrigado... Aliás!"- confundiu-se Scot - "p-pode ser, sim,  eu aceito, porque não?"- respondeu então, com certa dificuldade.
Na ausência do homem, Scot permaneceu reflexivo, apoiando sua cabeça nas mãos que, por sua vez, apoiavam-se com o cotovelo na mesinha. Agitava a cabeça rapidamente, como se ajudasse a afastar quaisquer pensamentos indigestos. A situação tomara um rumo desagradável, Scot sentia-se num jogo de gato e rato, e o incômodo era que ele se sentia o próprio ratinho. Geralmente os ratos são esguios e espertos, mas o ar pesava uma insegurança notável em torno daquele rato. Ele sentia-se como uma marionete do Dr. Ervin, o gato articulava seus passos à seu favor e o rato nada poderia fazer para mudar seu caminho. Seu fim já estava determinado desde que se fechara nessa sala sombria com o maquiavélico Dr. Ervin. Por mais que ele mudasse a direção  dos próprios passos, o Dr. Ervin já havia premeditado todos eles. Seu rei já havia tombado. Sua ansiedade crescia, sobre o peso do fim que ele temia.
Ouviu os passos atrás de si, aproximando-se da mesa. Sentiu todos os pelos do seu corpo doendo nas raízes tensionadas. Sua pele entrava numa erupção gelada de medo. Seu corpo paralizara, o coração martelante parecia roubar as forças de todo o corpo, uma moleza quase derrubava sua consciência desesperada. Uma imagem de um filme lhe veio à mente, lembrou-se da inteligência e da esperteza do serial killer Dr. Hannibal Lecter, que entortava a sanidade das suas vítimas para depois comê-las vivas. Os passos se avizinhavam, tornaram-se mais lentos, como um predador que se concentra.

Durante aquele turbilhão de temores e premeditações negativas, acendeu-se um senso de ridículo. Toda aquela imaginação ganhara uma visão absurda, sentiu-se enganado pela circunstância. Por mais que o temor permanecesse, surgira uma força contrária a ele, uma vontade de afastar quaisquer maquinações que o pertubassem. Aquilo não passava de uma fuga. Ele tentava esquivar-se da sua sensibilidade duvidosa. Aquilo que ele sentia realmente correspondia à realidade? Essa vontade de desacreditar em si mesmo começou então a lutar, dentro de sua mente, contra as indagações aterrorizadas e o medo que alfinetava sua medula.
O Dr. Ervin se aproximava e, travando sua batalha mental pela lucidez, Scot permaneceu paralizado. O instinto animal rogava para que seu corpo se virasse para proteger o seu dorso tão vulnerável. Mas não, virar-se para o Dr. Ervin seria admitir o medo. Denunciaria toda a desconfiança, afinal, as costas sempre ficam à mercê das externalidades, das atitudes de terceiros com, no caso, o Dr. Ervin. Enquanto o olhar concretiza o mundo palpável à sua frente, as costas permanecem no breu, no mistério do acaso, nada é visto, conhecido nem premeditado.
Mesmo assim, tortuasamente, Scot permaneceu em sua posição tenente, num congelamento marcial. Quem olhasse de fora pensaria que ele estivesse absorto em pensamentos internos, à parte de qualquer estímulo do mundo sensível. Mas na realidade, aquele estado era completamente atento aos seus sentidos. A concentração dissumulada em seus olhos petrificados espalhava-se por cada centímetro de sua pele e seus ouvidos abarcavam qualquer vibração no ar. Sentia agora todas as tábuas do piso rangendo sob os passos do Dr. Ervin. Após essa convulsão mental e sensitiva, todo aquele minúsculo lapso de tempo pareceu ter durado horas.
       Enfim, o Dr. Ervin passou, relando suas vestes no braço de Scot. Somente após o vulto do Doutor penetrar no seu campo de visão que Scot conseguiu desativar a sua concentração absoluta, deixando a sua disputa mental desfazer-se e sumir. Levantou os olhos e, ao ver o copo d'água que lhe era entregue, armou um sorriso fingido de agradecimento.
O Doutor permanecia com o mesmo olhar tóxico de antes, impenetrável, gelado. Antes de sentar-se, ele parou um pouco em uma reflexão e exclamou: "Me parece que você estava degustando bem seus pensamentos".
Scot, sem entender o que ele quis dizer com isso, repondeu apenas afirmativamente, balbuciando algumas palavras automáicas, como: "Sim, às vezes, costumo...pensar...é bom sabe", e desviou seu olhar para o lado. O Dr. arqueou as sobrancelhas e sorriu de lado. Sentou-se e acendeu seu charuto marrom. Scot sentiu  uma gota de suor escorrer na sua testa, e a limpou rapidamente. A fumaça subia lentamente, fúnebre. "Boa partida garoto", "você jogou bem, fez boas tentativas", disse o Dr. Ervin calmamente, fazendo perfeitos movimentos com os lábios finos envoltos pela barba. "Você, achou mesmo, Dr.? Eu não sabia que você jogava bem assim...", acelerou-se Scot, fingindo-se surpreendido.
"São seus olhos garoto, você teve até certeza de que ganharia uma hora, lembra-se?"
"É... mas foi impulsivo,  certamente foi muita pretensão minha, desculpe-me..."
"Sim... e essas pretensões podem ser perigosas rapaz."
Scot refletiu, confuso, por um momento.
"Podem ser, não sei, você acha, é, acha que atrapalha meu jogo, talvez?", disse, tentando parecer interessado em sua própria performance como enxadrista. A essa hora da noite Scot só queria se livrar daquele homem sinistro e dormir, escapando daquele incômodo. Anteriormente ele queria conversar, mas aquando começaram a surgir algumas palavras dos lábios ríspidos do Dr. Ervin, ele percebeu seu engano. Essas palavras o intimidavam mais do que o silêncio e sua cegueira.
Sem perceber, coçava ansiosamente o couro cabeludo, e seu penteado já havia sido substituído por uma confusão de fios desgrenhados e seus dentes também doíam após terem rangido agressivamente por muito tempo. Alheio à situação do adversário, o Dr. Ervin permanecia calmo e penetrante, ao mesmo tempo que impenetrável. Sua cabeça havia se inclinado para frente, com o queixo apontando para o peito. Sua testa salientava-se e as pupilas, que sumiam na íris negra, elevavam-se um pouco, para encarar Scot. Essa posição fazia com que a luz incidisse na testa e no topo da cabeça do Dr., deixando o seu rosto em sombras. Scot não percebera essa mudança de olhar, mas sentira as gotas de suor frio que ela atraía progressivamente.
"Às vezes pensamos e falamos coisas muito precipitadas, acabamos distraindo do jogo" sugeriu o Dr., em uma pronúncia maleável.
PENSAR DIALOGO PSICOLOGICO PESADO....







A luz ofuscou um pouco a visão de Scot. Ele, enquanto remoía a frase solta, fechou os olhos. Quando abriu-os novamente olhando para a mesa, sem saber o que dizer, a visão embaçada ainda lhe era pouco precisa. De relance, viu algo que lhe lembrava uma pequena mancha negra com pernas, passando rapidamente. Subira a mão enrugada e pouco precisa do Dr. e fundira-se com sua manga escura. Ainda sem saber o que vira, Scot esfregou os olhos rapidamente e arregalou-os com força,  piscando nervosamente. A cena congelada continuava a mesma, os olhos invasivos do Dr. o encaravam de dentro do breu. A testa já enrugada pela idade era destacada sombriamente pela lâmpada enfraquecida. As linhas negras da pele áspera da figura penetrante, permaneciam inflexíveis e maldosas. As pontas dos dentes amarelos escapavam pelos lábios ríspidos que formavam, fixos, o esboço do malicioso sorriso. Essa cena permanecia a mesma. O pequeno vulto negro sumira, e Scot já começava a questionar a sua própria sanidade mental. A única matéria a mover-se naquele aposento era o corpo e as vestes de Scot. Suas pernas pululavam inquietas e seus dedos tamborilavam na mesa e coçavam os cabelos desgrenhados. Os olhos azuis de Scot também não permitiam-se descansar. Giravam por toda a cena, evitando o olhar fulminante do adversário. Fingiam-se distraídos e interessados em várias visões, mas nessa agitação desconcertada, deixavam óbvia a coceira que germinava nos miolos de Scot. Se não fosse a matéria borbulhante que agitava o corpo do jogador derrotado, a cena na qual desenrolam-se os obscuros fatos narrados não diferiria de uma fotografia, pela sua imobilidade. Aliás, uma fotografia seria muito esclarecedora, uma imagem demasiada limpa e delineada. Descrevemos aqui uma cena de contornos turvos e de cores embaçadas que se mesclam nas sombras. Uma cena em que o espírito humano, bom ou mau, faz-se sentir mais do que o próprio corpo humano. Diria que assemelharia-se mais com um quadro expressionista, com suas curvas incertas mas que emanam fortemente a energia sentida no ambiente.
Além de todos os estímulos externos que, no dercorrer desta noite incerta, foram entrelaçando o espírito de Scot e lentamente envolvendo-o neste evidente nervosismo, havia também uma encruzilhada interna que o desorientava. Ele estava consciente de seu nervosismo, o que o fazia odiar mais ainda a situação, e também sabia  que era impossível escondê-lo. Essa exposição à qual se sujeitava fazia-o sentir-se excessivamente exposto, como um homem nu que exibe todo suas intimidades frente a uma plateia que vai julgar-lhe. Sua  evidente vulnerabilidade lhe martelava uma paranoia ainda maior no cérebro. Mas, indo ao fundo das entranhas psicológicas do frágil camundongo, chegamos enfim ao cerne da sua perturbação. Por mais que fosse óbvia e gritante a aflição interna de Scot, o Dr. Ervin mantinha-se impassível e não hesitava em manter seu sorriso nefasto que expunha a ponta dos dentes amarelos. Não demonstrava menhum calor humano em sua expressão facial e mantinha uma postura totalmente alheia ao comportamento do adversário que encurralava-se. Era como se não percebesse a paranoia do outro, mas ainda assim a alimentava forçosamente. Era justamente essa contradição que fazia Scot duvidar da própria sanidade e da veracidade das suas impressões. Nessa encruzilhada psíquica, Scot vacilava entre duas vias: na primeira delas um monstro revelava-se à sua frente, devorando sua mente, um pesadelo vivo. Na segunda delas, seu córtex cerebral traduzia uma noite qualquer, mas que por complexos mentais, algo como uma crise de pânico ou uma alucinação de causa desconhecida, lhe parecia obscuramente ameaçadora, sem nem mesmo saber como ou porque seria ameaçado por aquela figura. Scot não sabia se a verdadeira ameaça que afligia seus nervos, que já se incendiavam neste curto-circuito infame, vinha de fora ou de dentro.



(se vc sair do xeque mate, eu pulo da janela, ervin leva a serio)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Clarividência

A multidão se esfolava na grade do estádio, vibrando frenéticamente na ressonância de hinos e injúrias cantadas. A partida já havia acabado, mas eu nem me importava com qual time havia sido o grande campeão. Podiam ser as minhas cores ou as cores rivais que enfeitariam os jornais de segunda-feira, que, no fundo, tanto fazia para mim.
Uma energia quente e latejante pulsava dentro do meu corpo, em cada dedo, evaporando pela minha pele eriçada. As feições das pessoas estavam embaçadas e a minha visão tornara-se uma tormenta de cores que vibravam em sincronia com as vozes retumbantes. O gramado enxarcava-se cada vez mais com a chuva insistente e o ar ficava cada vez mais denso. Tornava-se difícil respirar.
As duas torcidas engalfinhavam-se ferozmente no alambrado enferrujado que as separavam. Por mais que os holofotes ofuscantes, com seus canhões de luzes brancas e frias, enverdassem todo o gramado, as torcidas permaneciam naquele calor escuro, escondidas pela cobertura de concreto das arquibancadas. Sob a sombra, havia um movimento disforme de braços, cabeças, troncos e uniformes negros e azuis. Parecia um mar borbulhante de águas escuras, cujas ondas iam de encontro umas contra as outras, mas sem se tocarem, separadas por uma frágil grade retorcida.
Eu me agarrei grunhindo à cerca. Sentia que as minhas garras rasgavam o alambrado metálico, meu peito explodia. Minha consciência já não existia ali, haviam apenas reações instintivas. Centenas de corpos seguiam essa turba de inconsciência selvagem. O barulho e o fluxo agressivo daqueles corpos ensandecidos, formavam um monstro, um leviatã que agia por si próprio. Erámos apenas força e movimento, raiva e som. Rapidamente, o monstro foi se avolumando no perímetro da cerca e se enroscando nela.
Eu sentia a multidão me empurrando e me apertando para frente, mas não havia passagem. Ou o alambrado pendia sobre a torcida adversária, menos delirante, ou então eu seria espremido através dos buracos da grade, tal qual um  enorme purê de batatas ensangüentado. Com tamanha pressão , a estrutura metálica começou a se envergar lentamente sobre as pessoas do outro lado, como uma árvore caindo em câmera-lenta.
Uma espécie de marco decisivo havia chegado. Enquanto sentíamos a grade ceder sob o nosso peso, algo havia mudado. De súbito, nosso mundo parara de girar.
A intenção de violência,  que fora artificialmente criada por um impedimento físico de ser realizada, ou seja, a grade, tornava-se, com a queda da barreira, ação. Agora a vida real chegara de supetão para ser linchada por todos nós.
Então, uma relutância coletiva estancou por milésimos de segundos, quase imperceptível, quase  não foi traduzida para as expressões borradas dos nossos rostos.
Os olhos enxeram-se por um instante, ocorreu um lapso de sanidade acendendo-se como uma luz, que logo se apagou. O último suspiro da individualidade de cada um de nós escapava, enfim, dos nossos olhos novamente inertes.
Após essa pausa sutil, as tensões se inflamaram com um vigor multiplicado. O disfarce da hesitação que sentimos, surgiu como um rolo compressor, um reforço explosivo. O ar voltou a nos sacudir com os rugidos e berros loucos, tonificando-se rapidamente.
Eu me agarrava com o tênis e as mãos, forçando a grade para baixo. Quando olhei para baixo, a grade estava a uns 30º do chão. Vi uns homens com as camisas adversárias, deitados, embaixo do metal, presos pela multidão que se empurrava para escapar da estrutura que caia.  Mesmo fitando aqueles olhos aterrorizados embaixo de mim, eu só pensava em fazê-los sofrer mais.
Na verdade eu nem sequer pensava. O meu vazio mental não respondia a mais nenhum estímulo que não fosse o da turba. Eu não passava de um peixe num cardume, de uma gota d'água na maré.

Eu ameaçava com ferocidade aqueles olhos. Enquanto isso um calor forte subiu à minha cabeça, senti minha visão ficar cada vez mais turva. O barulho começava a convulsionar todo meu corpo. Em instantes veio uma confusão mental que nocauteou minhas reações e movimentos. De súbito, o barulho converteu-se num som agudo fulminante, que alfinetou meus miolos. Uma enxaqueca empurrou violentamente minhas pálbebras para baixo.Toda a realidade então fora tragada por um silêncio total. Tudo aquietou-se, como se eu houvesse perdido todos os sentidos, me senti arremesssado num vácuo vertiginoso.
Lentamente meus sentidos começaram a retornar. Quando consegui abrir meus olhos, eu ainda urrava e gesticulava loucamente, me jogando no ar com todos os músculos tensionados. Mas eu não estava mais no mundo real, na verdade eu não estava em lugar nenhum. O estádio e a selvageria haviam sumido, meus olhos injetados de sangue não enxergavam mais nada além de um branco infinito. Minha voz era o único som audível, e não ecoava, apenas se jogava para o nada. Por detrás dela, o silêncio monolítico era soberano.
Era tudo branco, não era possível distinguir teto, chão, paredes, dimensões, paisagens. Nada tinha profundidade, transparência, nem opacidade. Era um branco sem fim. Eu estava em pé num não-chão que fazia parte dessa pureza branca, inerte, imune. Me sentia no princípio de tudo, onde não havia nenhum rabisco de matéria além da minha. Era apenas uma não-existência do existir.
O que eu estava fazendo ali? Naquele nada, gritando igual um louco, socando o vazio, pisando em pessoas que não existiam mais e que eu nem sequer conhecera um dia.
 A minha consciência me atingiu como um meteoro incendiário. Tudo que eu ignorara naquele movimento marionético da turba, agora ria de mim. Por que diabos eu gritava daquela maneira? Nada daquilo tinha um porquê compreensível. Meu grito tornava-se um sussurro rouco.


Ali, sozinho, eu me sentia envergonhado, embora ninguém me observasse ou me julgasse naquele momento.
Quem havia sido eu, naquela multidão louca? Porque eu as agredia pessoas sem nenhuma razão?
Aqueles olhos sob a grade eram uma existência tal qual a minha. Mas tinha sido impossível pensar em humanos naquela hora, eu esqueci-me até do meu próprio homem, oras. Eu não era irritadiço assim em casa, nem mesmo com o meu irmão. Eu nunca era agressivo.

Após essa enxurrada de reflexões pesadas, eu me sentia exausto e contido. Meu corpo já não movia mais. Olhei para minha pele suja e para minha camisa molhada enrolada no antebraço. Meus punhos fechados destacavam as veias que agora se recolhiam, dando um aspecto hominídeo para o meu corpo.
Eu ouvia apenas meu coração socando surdamente minhas costelas humanas. Meu ódio atrofiou-se, como uma rosa espinhenta e vermelha de raiva, que revolve a um botão. Eu sentia vergonha de quem eu tinha sido, simplesmente por eu não ter sido nada.
Encolhi-me, amedrontado.

Sofá moderno

Era um garoto sonhador
Cornetava suas destrezas
Preludiando as proezas

Sentado no sofá macio
Cunhava suas façanhas
Dum engolidor de rios
salteador de montanhas

Papai ,vê, me aguarde
dormirei com dez mil pares
ganharei os sete mares
Mas por favor não se alarde
quando eu fugir sorrindo
tu estarás dormindo

O pai, com seus botões
Crente e cego nos jargões
Via ali, na sua cria
O que já quis ser um dia

O garoto convincente
Disse como quem não mente:
"O dia se aproxima,
ganharei tal mundão,
mas, me rest'um estorvo:
estarei de prontidão,
Com um bom sapato novo"

O velho, sem pensar,
resolveu logo mimar.
Mas de praxe, ouviu permeias:
 "agora me faltam as meias..."


segunda-feira, 2 de julho de 2012

Ironia de Tendências históricas

A maior constante da história do ser humano, é o próprio homem. Portanto numa análise tanto econômica quanto histórica, pontos em comum ao longo do percurso devem ser analisados à partir de fatores constantes na equação das somas dos ingredientes históricos. O fator mais constante de todos, além do crescimento de 2% do PIB, é o próprio homem.
Por mais que essa seja a constante mais variável em si, e constante em si, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma constante oras, o homem, desde as anotações imemorias da história, é homem. Surge o homo sapiens, permanece homo sapiens. Mas todos sabemos que não há um só ser humano igual a outro, cada ser é um oceano de variáveis que se escondem tanto nas digitais quanto no obscuro sub-consciente.  Plural, mas, no fundo é um ser humano, não deixa de ser um grupo restriro. Algo me diz que esses 2% do crescimento do PIB mundial tem a ver com o próprio homem como constante, retirando de cena sua tão bela e intrínseca pluralidade.

domingo, 1 de julho de 2012

singela andante

Ela vem quietinha
apreciando seus passos
primeiro os dedos
depois alivia
um minuto meu dia

Teu cordeiro sorri
Na coleira marrom
Vim fingir que não vi
esvaziar-se o tom
do céu tempestade
 que engole a cidade


Aquiete-se maluco
qu'esse tormento se vai
mas o cinza vem negro
um monstro que cai

Um show retumbante
soturno amante
assaz deslumbrante
cai cego o pedante

ai, segura a onda
o silencia proclama
sua presença insana
o vampiro vem lá
quietinho adiante
não vá se mostrar
passar do barbante

periga o maluco
barbárie no muro
tingindo de rubro
o sangue era escuro

mas nada acabou
nem vinho vazou
religue a vitrola
depois vá embora

quero apenas estar
na noite ficar
ver vindo o morcego
tranquilo sem medo

eu gosto é dos loucos
que vêm tateando
e se vão beijocando

dois nus no relento
qu'esquecem os lobos
que babam por dentro