A chuva caía com aflição através da noite. A água despencava em grossos pingos, que trespassavam o escuro escondidos. Uma negritude sem fim dominava a noite do lado de fora do pequeno apartamento. As nuvens encobriam densamente a lua e as estrelas, sufocando as esperanças de qualquer minúscula fonte de claridade no céu. Abaixo, a luz solitária da lâmpada de uma sala escapava pela janela, compondo um dos raros pontos iluminados que podiam ser vistos, ilhados, no mar negro que se estendia noite afora.
A noite já se aproximava da beirada do abismo, perigava a madrugada. E poucas janelas davam sinais de vida no horizonte da cidade entorpecida. A maioria das pessoas dormia profundamente enovelada em seus lençóis sob o ruído insistente da tempestade. Algumas ainda abriam os olhos, de tempos em tempos, assustadas com os estrondos bravos dos trovões à espreita.
Atrás do frágil vidro da janela, dois homens jogavam xadrez em uma sala de estar. A iluminação não era forte. Apenas uma luminária duvidosa pendia sob um fio, bem acima da pequena mesa circular onde jazia o tabuleiro alvi-negro. As paredes brancas, ainda diminutamente no breu, adquiriam um tom amarelo com a luz fraca da esforçosa lâmpada.
A mobília não era farta. Todos os móveis eram de madeira escura e pesada, e carregavam um estilo rústico. Além da mesinha de jogos, haviam duas cadeiras, uma estante com três pequenas portas embaixo, uma cômoda de cinco gavetas largas e um sofá vermelho desbotado, com dois lugares não muito espaçosos.
O ar dos dois homens era grave, e ambos detiam um copo de uísque dourado nas mãos. De costas para a porta da cozinha, estava sentado Scot, que observava atentamente os dedos pensativos do Dr. Ervin, que estava de costas para a porta de entrada do apartamento do primeiro. Isolados naquele caixote que boiava no oceano das trevas noturnas, os dois homens jogavam e passavam suas rodadas em um ritmo pesado e monótono.
Scot tinha 32 anos e Ervin beirava os 60, uma diferença que era facilmente perceptível pela aparência e pelas vestimentas de ambos. Scot usava os cabelos curtos e a barba bem aparada. Vestia uma camisa social listrada, um par de mocassins marrons e calças jeans de 'haute couture'. Já o Dr. Ervin, ostentava uma barba grisalha solene, uma calvície relativa e algumas rugas ríspidas. Tendo, então, um sobretudo marrom-escuro apoiado em seus ombros, sobre roupas sociais discretas, também escuras.
"Essa chuva cai com força, não?"-perguntou petulantemente Scot-"parece que não vai parar tão cedo...".
"Não tenho nada contra ela"-respondeu o Dr. Ervin, sem tirar os olhos do tabuleiro.
"Ah... eu também acho que essa chuva não me incomoda muito, mas, de certo modo, prefiriria a sua ausência do que essa sua presença tão violenta"- acatou Scot, tentando empurrar alguma conversa para frente e esquivando-se de qualquer divergência de opiniões. O que sem dúvida lhe deixaria desgostoso.
Era apenas uma conversa tola, mas a resposta do Dr. Ervin, como as outras, deixou Scot um tanto quanto frustrado. O Dr.Ervin não deixava transparecer nenhum interesse ou sentimento por palavra alguma.
Scot sentia-se desconfortável em ficar constantemente tentando iniciar conversas ridículas e vazias. Após as respostas do Dr. Ervin, não havia mais nada para se dizer, ou, sobretudo, não havia nem mais vontade de manter-se a conversa, ela tornava-se um peso sobre o ego. O ar absorto exalado pelo Dr. Ervin acabou, enfim, convencendo Scot a aceitar aquela condição que tanto o perturbava, o silêncio.
O ruído dos peões, bispos e cavalos trocando de casas no tabuleiro tornou-se então a única constante auditiva vinda de dentro do apartamento, a bailar com as malcriadas gotas que batiam no parapeito da janela.
Ambos fumavam os charutos cubanos do Dr. Ervin, e a fumaça branca infestava todo o aposento com o seu cheiro forte de bom tabaco. O cinzeiro já estava quase transbordando quando Scot levantou-se para esvazia-lo na lixeira da cozinha. Enquanto isso o Dr. Ervin permaneceu imóvel, pensando na sua jogada. A cozinha tinha azulejos brancos e azuis, várias tonalidades de azuis se distribuiam aleatoriamente pela parede. A cozinha era bem simples, como o resto do apartamento, tinha apenas uma pia, dois armários brancos modestos, uma geladeira média e um fogão de duas bocas. Como morava só, Scot não exigia muito de seu lar, estava contente apenas com o necessário, embora sua condição financeira viesse se avantajando nos últimos tempos.
Scot voltou com um copo d'água a passos ruidosos, com a esperança reacesa de iniciar um contato amigável com o adversário. Sua frustração vinha fácil, mas também era raramente esquecida. Conhecera o Dr. Ervin no mesmo dia, em uma charutaria, por acaso. Atraído pela seriedade e impessoalidade daquele senhor, convidara-o para um partida de Xadrez naquela noite. Sentia-se desafiado a desvendar a consciência de pessoas assim, fechadas. Gostava de conhecê-las, de desarmá-las. Sempre audaciou desvendar alguma alma que tivesse aberturas amigáveis reprimidas, por detrás das respostas secas e olhos sérios. Lhe dava gosto ser reconhecido como alguém digno e confiável o suficiente para merecer a abertura de pessoas aparentemente impenetráveis.
Mas algo corria diferente com o Dr. Ervin. Ele permanecia impassível, não sorrira uma só vez. Scot não ouvira nem mesmo um comentário sarcástico, o que era bem esperado de pessoas com esses ares.
Por isso se inquietava, tentava a qualquer custo ganhar a atenção daquele senhor misterioso, mas seu carisma fracassava miseravelmente.
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Enquanto retornava da cozinha, Scot teve tempo para refletir sobre a situação. Reerguera seu ânimo, afastando as inseguranças que o prostravam. Imaginou que a sua própria preocupação era o impecilho para uma conversa agradável, tentava iniciar assuntos artificiais e banais forçosamente, e isso, é claro, não era incentivo algum para que o Dr. Ervin se interessasse. Scot então voltou tentando transparecer um ar contente. Mas nada adiantou, o outro permaneceu imóvel, olhando para o tabuleiro. Ele ainda não havia movido sua peça.
Scot novamente intimidou-se, parou de fazer ruídos, temendo incomodar o oponente. Sentou-se mecanicamente e colocou o copo sobre a mesa. A lâmpada acima deles havia enfraquecido um pouco, o ambiente ficara mais lúgubre. A chuva ainda batia na janela. Após observar novamente o ambiente a sua volta, o olhar de scot focalizou a cabeça do Dr. Ervin. Sobre a sua testa envelhecida, havia uma mosca gorda. O inseto era de um verde brilhante, e limpava as patas tranquilamente. Seus grandes olhos avermelhados, que pareciam globos de danceterias minúsculos, não expressavam nada, apenas ficavam paralizados e absortos. Sua pequena boca, que parecia uma tromba de elefante, esticava-se e recolhia-se organicamente. Scot também reparou nos películos que cobriam as patas negras e no abdôme,que exalava aquele verde duro e metálico e era coberto por dobras escuras. As asas, que de tempos em tempos tremiam em reflexos espamados, eram translúcidas e totalmente entrecortada por linhas negras, lembrando uma bacia hidrográfica de piche.
Scot ficou alguns segundos com os olhos fixos naquela mosca invasiva, totalmente alheio ao jogo e ao apartamento à sua volta, como num transe momentâneo. Até que a realidade lhe batesse à porta novamente.
De súbito, Scot agitou a cabeça torta e recobrou a consciência. De assalto, arredou a cadeira e ofegou uma lufada de ar rapidamente. Arregalando os olhos assustados para o Dr. Ervin, viu que ele pemanecia inerte, como se não houvesse mais ninguém ali naquela sala. Mesmo com o barulho feito por Scot ao assustar-se e com a maldita presença daquele inste perturbador, o Dr. Ervin não reagia.
A visão asquerosa daquela mosca começou a incomodar profundamente Scot, aquela imagem tornava-se cada vez mais doentia. Ele rangia os dentes e batia os pés no chão repetidamente, numa crescente ansiedade. Chegou um momento em que a gastura foi tanta que Scot ergueu-se raivosamente da cadeira e afugentou a mosca com um movimento brusco das mãos.
Aquela exasperação não pareceu incomodar o Dr. Ervin, que ergueu os olhos e disse, pacientemente, "Obrigado". E, dito isso, moveu o seu bispo perigosamente. Scot respirou fundo, tentando esquecer a ansiedade. Tomou uma grande golada de água e se pôs a observar o jogo. Estava numa situação favorável, havia perdido uma torre, um bispo e dois peões, enquanto o adversário tinha sofrido as seguintes baixas: duas torres, um cavalo, um bispo e três peões. Observando satisfeito seu desempenho, exclamou, tentando descontrair-se dos incômodos recentes: "Rá, dessa vez eu ganho, sim? Pulo da janela se não o fizer...". Então, avançou sua rainha e derrubou o último cavalo que restava para o Dr. Ervin.
Ao ouvir tais palavras lúdicas, o Dr. Ervin, olhou nos olhos de Scot, com a boca entreaberta. Um sorriso malicioso formou-se, revelando parte de alguns dentes amarelados. Scot tentou fingir um sorriso também, mas não parecia estar respondendo à altura. O sorriso do Dr. Ervin não havia mostrado nenhum sinal de alegria, era puro sarcasmo. Mas aquele sarcasmo parecia maldoso, não havia nenhum traço de humor irônico, Scot sentiu que estava sendo ameaçado por aquele sorriso. Um frio no peito lhe fez sentir que aquele sorriso zombava o ser humano "Scot", ao invés de rir-se da brincadeira inoportuna feita por tal criatura.
Apreensivo, Scot permaneceu encarando aqueles olhos sérios. O Dr. Ervin meneou a cabeça para os dois lados e baixou seu olhar novamente para o tabuleiro. Sua mão ergueu-se e, sem pensar, ele avançou derradeiramente com a rainha. Neste momento, Scot viu que todas as suas jogadas anteriores haviam sido planejadas pelo seu adversário, tudo encaixara-se perfeitamente. "Xeque-mate", pronunciou Scot, com relutância. Mas realmente não havia saída, o jogo havia sido conduzido ao fim com maestria pelo silêncio do Dr. Ervin.
Scot, um pouco amedrontado, permaneceu quieto, tentando entender a situação. O sorriso malicioso estava fixado em sua mente, pertubador, como se o ameaçasse de dentro. Coçou a cabeça, inquieto, tentando afastar aquelas aberrações. Quando deu por si, o Dr. Ervin havia se levantado e rumava para a cozinha. "pegarei um copo d'água, aceita?" -indagou o doutor-
" Er, não, ob-obrigado... Aliás!"- confundiu-se Scot - "p-pode ser, sim, eu aceito, porque não?"- respondeu então, com certa dificuldade.
Na ausência do homem, Scot permaneceu reflexivo, apoiando sua cabeça nas mãos que, por sua vez, apoiavam-se com o cotovelo na mesinha. Agitava a cabeça rapidamente, como se ajudasse a afastar quaisquer pensamentos indigestos. A situação tomara um rumo desagradável, Scot sentia-se num jogo de gato e rato, e o incômodo era que ele se sentia o próprio ratinho. Geralmente os ratos são esguios e espertos, mas o ar pesava uma insegurança notável em torno daquele rato. Ele sentia-se como uma marionete do Dr. Ervin, o gato articulava seus passos à seu favor e o rato nada poderia fazer para mudar seu caminho. Seu fim já estava determinado desde que se fechara nessa sala sombria com o maquiavélico Dr. Ervin. Por mais que ele mudasse a direção dos próprios passos, o Dr. Ervin já havia premeditado todos eles. Seu rei já havia tombado. Sua ansiedade crescia, sobre o peso do fim que ele temia.
Ouviu os passos atrás de si, aproximando-se da mesa. Sentiu todos os pelos do seu corpo doendo nas raízes tensionadas. Sua pele entrava numa erupção gelada de medo. Seu corpo paralizara, o coração martelante parecia roubar as forças de todo o corpo, uma moleza quase derrubava sua consciência desesperada. Uma imagem de um filme lhe veio à mente, lembrou-se da inteligência e da esperteza do serial killer Dr. Hannibal Lecter, que entortava a sanidade das suas vítimas para depois comê-las vivas. Os passos se avizinhavam, tornaram-se mais lentos, como um predador que se concentra.
Durante aquele turbilhão de temores e premeditações negativas, acendeu-se um senso de ridículo. Toda aquela imaginação ganhara uma visão absurda, sentiu-se enganado pela circunstância. Por mais que o temor permanecesse, surgira uma força contrária a ele, uma vontade de afastar quaisquer maquinações que o pertubassem. Aquilo não passava de uma fuga. Ele tentava esquivar-se da sua sensibilidade duvidosa. Aquilo que ele sentia realmente correspondia à realidade? Essa vontade de desacreditar em si mesmo começou então a lutar, dentro de sua mente, contra as indagações aterrorizadas e o medo que alfinetava sua medula.
O Dr. Ervin se aproximava e, travando sua batalha mental pela lucidez, Scot permaneceu paralizado. O instinto animal rogava para que seu corpo se virasse para proteger o seu dorso tão vulnerável. Mas não, virar-se para o Dr. Ervin seria admitir o medo. Denunciaria toda a desconfiança, afinal, as costas sempre ficam à mercê das externalidades, das atitudes de terceiros com, no caso, o Dr. Ervin. Enquanto o olhar concretiza o mundo palpável à sua frente, as costas permanecem no breu, no mistério do acaso, nada é visto, conhecido nem premeditado.
Mesmo assim, tortuasamente, Scot permaneceu em sua posição tenente, num congelamento marcial. Quem olhasse de fora pensaria que ele estivesse absorto em pensamentos internos, à parte de qualquer estímulo do mundo sensível. Mas na realidade, aquele estado era completamente atento aos seus sentidos. A concentração dissumulada em seus olhos petrificados espalhava-se por cada centímetro de sua pele e seus ouvidos abarcavam qualquer vibração no ar. Sentia agora todas as tábuas do piso rangendo sob os passos do Dr. Ervin. Após essa convulsão mental e sensitiva, todo aquele minúsculo lapso de tempo pareceu ter durado horas.
Enfim, o Dr. Ervin passou, relando suas vestes no braço de Scot. Somente após o vulto do Doutor penetrar no seu campo de visão que Scot conseguiu desativar a sua concentração absoluta, deixando a sua disputa mental desfazer-se e sumir. Levantou os olhos e, ao ver o copo d'água que lhe era entregue, armou um sorriso fingido de agradecimento.
O Doutor permanecia com o mesmo olhar tóxico de antes, impenetrável, gelado. Antes de sentar-se, ele parou um pouco em uma reflexão e exclamou: "Me parece que você estava degustando bem seus pensamentos".
Scot, sem entender o que ele quis dizer com isso, repondeu apenas afirmativamente, balbuciando algumas palavras automáicas, como: "Sim, às vezes, costumo...pensar...é bom sabe", e desviou seu olhar para o lado. O Dr. arqueou as sobrancelhas e sorriu de lado. Sentou-se e acendeu seu charuto marrom. Scot sentiu uma gota de suor escorrer na sua testa, e a limpou rapidamente. A fumaça subia lentamente, fúnebre. "Boa partida garoto", "você jogou bem, fez boas tentativas", disse o Dr. Ervin calmamente, fazendo perfeitos movimentos com os lábios finos envoltos pela barba. "Você, achou mesmo, Dr.? Eu não sabia que você jogava bem assim...", acelerou-se Scot, fingindo-se surpreendido.
"São seus olhos garoto, você teve até certeza de que ganharia uma hora, lembra-se?"
"É... mas foi impulsivo, certamente foi muita pretensão minha, desculpe-me..."
"Sim... e essas pretensões podem ser perigosas rapaz."
Scot refletiu, confuso, por um momento.
"Podem ser, não sei, você acha, é, acha que atrapalha meu jogo, talvez?", disse, tentando parecer interessado em sua própria performance como enxadrista. A essa hora da noite Scot só queria se livrar daquele homem sinistro e dormir, escapando daquele incômodo. Anteriormente ele queria conversar, mas aquando começaram a surgir algumas palavras dos lábios ríspidos do Dr. Ervin, ele percebeu seu engano. Essas palavras o intimidavam mais do que o silêncio e sua cegueira.
Sem perceber, coçava ansiosamente o couro cabeludo, e seu penteado já havia sido substituído por uma confusão de fios desgrenhados e seus dentes também doíam após terem rangido agressivamente por muito tempo. Alheio à situação do adversário, o Dr. Ervin permanecia calmo e penetrante, ao mesmo tempo que impenetrável. Sua cabeça havia se inclinado para frente, com o queixo apontando para o peito. Sua testa salientava-se e as pupilas, que sumiam na íris negra, elevavam-se um pouco, para encarar Scot. Essa posição fazia com que a luz incidisse na testa e no topo da cabeça do Dr., deixando o seu rosto em sombras. Scot não percebera essa mudança de olhar, mas sentira as gotas de suor frio que ela atraía progressivamente.
"Às vezes pensamos e falamos coisas muito precipitadas, acabamos distraindo do jogo" sugeriu o Dr., em uma pronúncia maleável.
PENSAR DIALOGO PSICOLOGICO PESADO....
A luz ofuscou um pouco a visão de Scot. Ele, enquanto remoía a frase solta, fechou os olhos. Quando abriu-os novamente olhando para a mesa, sem saber o que dizer, a visão embaçada ainda lhe era pouco precisa. De relance, viu algo que lhe lembrava uma pequena mancha negra com pernas, passando rapidamente. Subira a mão enrugada e pouco precisa do Dr. e fundira-se com sua manga escura. Ainda sem saber o que vira, Scot esfregou os olhos rapidamente e arregalou-os com força, piscando nervosamente. A cena congelada continuava a mesma, os olhos invasivos do Dr. o encaravam de dentro do breu. A testa já enrugada pela idade era destacada sombriamente pela lâmpada enfraquecida. As linhas negras da pele áspera da figura penetrante, permaneciam inflexíveis e maldosas. As pontas dos dentes amarelos escapavam pelos lábios ríspidos que formavam, fixos, o esboço do malicioso sorriso. Essa cena permanecia a mesma. O pequeno vulto negro sumira, e Scot já começava a questionar a sua própria sanidade mental. A única matéria a mover-se naquele aposento era o corpo e as vestes de Scot. Suas pernas pululavam inquietas e seus dedos tamborilavam na mesa e coçavam os cabelos desgrenhados. Os olhos azuis de Scot também não permitiam-se descansar. Giravam por toda a cena, evitando o olhar fulminante do adversário. Fingiam-se distraídos e interessados em várias visões, mas nessa agitação desconcertada, deixavam óbvia a coceira que germinava nos miolos de Scot. Se não fosse a matéria borbulhante que agitava o corpo do jogador derrotado, a cena na qual desenrolam-se os obscuros fatos narrados não diferiria de uma fotografia, pela sua imobilidade. Aliás, uma fotografia seria muito esclarecedora, uma imagem demasiada limpa e delineada. Descrevemos aqui uma cena de contornos turvos e de cores embaçadas que se mesclam nas sombras. Uma cena em que o espírito humano, bom ou mau, faz-se sentir mais do que o próprio corpo humano. Diria que assemelharia-se mais com um quadro expressionista, com suas curvas incertas mas que emanam fortemente a energia sentida no ambiente.
Além de todos os estímulos externos que, no dercorrer desta noite incerta, foram entrelaçando o espírito de Scot e lentamente envolvendo-o neste evidente nervosismo, havia também uma encruzilhada interna que o desorientava. Ele estava consciente de seu nervosismo, o que o fazia odiar mais ainda a situação, e também sabia que era impossível escondê-lo. Essa exposição à qual se sujeitava fazia-o sentir-se excessivamente exposto, como um homem nu que exibe todo suas intimidades frente a uma plateia que vai julgar-lhe. Sua evidente vulnerabilidade lhe martelava uma paranoia ainda maior no cérebro. Mas, indo ao fundo das entranhas psicológicas do frágil camundongo, chegamos enfim ao cerne da sua perturbação. Por mais que fosse óbvia e gritante a aflição interna de Scot, o Dr. Ervin mantinha-se impassível e não hesitava em manter seu sorriso nefasto que expunha a ponta dos dentes amarelos. Não demonstrava menhum calor humano em sua expressão facial e mantinha uma postura totalmente alheia ao comportamento do adversário que encurralava-se. Era como se não percebesse a paranoia do outro, mas ainda assim a alimentava forçosamente. Era justamente essa contradição que fazia Scot duvidar da própria sanidade e da veracidade das suas impressões. Nessa encruzilhada psíquica, Scot vacilava entre duas vias: na primeira delas um monstro revelava-se à sua frente, devorando sua mente, um pesadelo vivo. Na segunda delas, seu córtex cerebral traduzia uma noite qualquer, mas que por complexos mentais, algo como uma crise de pânico ou uma alucinação de causa desconhecida, lhe parecia obscuramente ameaçadora, sem nem mesmo saber como ou porque seria ameaçado por aquela figura. Scot não sabia se a verdadeira ameaça que afligia seus nervos, que já se incendiavam neste curto-circuito infame, vinha de fora ou de dentro.
(se vc sair do xeque mate, eu pulo da janela, ervin leva a serio)