quinta-feira, 3 de maio de 2012

PARADOXO LIBERAL: A ANULAÇÃO PARCIAL DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL HUMANA



Há um paradoxo na ideia liberal de condenar a intervenção estatal na economia.
Radicalizando nos termos (não digo que alguns dos próprios liberais não façam uso deles), a seleção natural econômica proposta no liberalismo se vê defasada a partir do momento em que ela não é total. Há a ausência de um estado na economia, mas a ausência da do estado em outras áreas relacionadas, é desprezada tacitamente. Isso cria uma injustiça, é como se uma determinada lei, coagisse apenas uma parcela da população.
Tomemos como pano de fundo a expressão ‘moinho satânico’, de Karl Polanyi. Sendo ela um exagero, ou não, a miséria, ou pauperismo, é endêmico em nossa sociedade. O caos social, a soberania do capital sobre a vida humana, a falta de amparo estatal, é insustentável. O ser humano, seguindo seu instinto, não permaneceria conformado, padecendo por não ter acesso econômico aos meios de sobrevivência. Da mesma forma que o mais “competente” ( forte, esperto, esforçado, ou qualquer adjetivo que identifique  o sujeito que consegue dinheiro para sobreviver, ou esbanjar) chegou  ao seu status social vencendo na árdua “seleção natural econômica” por puro mérito, a massa oprimida tomaria seus métodos, por mais selvagens que fosse, para sobreviver.
Neste ponto de calamidade pública entra, enfim, o estado, para anular a desordem da luta de classes como uma força transcendental. E ele o faz através da polícia e das leis. É neste momento que o liberalismo, utópico, entra num paradoxo, pois a seleção natural é quebrada. O pobre que poderia brigar pela sua posição social, através dos seus métodos, é forçado a abrir mão do seu instinto de sobrevivência.  Ele é obrigado a abaixar a cabeça diante do sistema.
O estado não deve intervir nos salários, no auxílio aos pobres, nos impostos, nos bancos centrais. Mas deve manter a ordem, por mais que ela subverta a salubridade da vivência humana. Proteger a propriedade é mais importante que deixar o homem proteger a própria vida. Ele não pode roubar uma maçã, mas pode morrer de fome na fila de um hospital. Eis o paradoxo. Claro que o pobre não deve matar o rico ou destruir a fábrica dele para sobreviver. Mas os próprios meios politicamente corretos, como greves, protestos, união e propostas de reformas, vão contra a lei soberana, contra a nossa ‘constituição infalível’.
Bem, não estou discutindo a pertinência do liberalismo, mas apenas dizendo que ele é utópico. E o principal, atenção, é a proteção da competição justa, e não da liberdade total que supostamente levaria a ela. Mas que não leva, nunca. A grande problemática é que há dificuldade em encaixar as liberdades em seus devidos lugares.
Não há como impedir as ‘falhas de mercado’: monopólios, competições injustas, poder de mercado. Ou seja, a liberdade é anulada pela sua base: é utópica a ideia de oportunidades iguais de competição. Em última instância, o estado anula a competição ao existir como força coercitiva. Não estou defendendo uma anarquia, pois o homem assistiria à sua própria selvageria, o que é perigoso, devido às suas imperfeições. Não que ele seja ruim, ele é apenas plural. E essa pluralidade pode ser encaixada em uma organização social racional. Mas essa discussão não é a nossa.
A discussão é a controvérsia da “livre competição” quando o estado impede o ser humano faminto de lutar pela sobrevivência. Por exemplo, ema mãe com seu filho morrendo nos braços não pode invadir a UTI de um hospital do SUS. Há uma fila, e deve-se esperar pelo salvamento da criança. É um apelo sentimental, mas traduz a realidade.
Como eu disse antes, a proposta não é o miserável ter a liberdade de matar seu patrão e comer a comida dele, caso consiga. A proposta é que a organização social, no nosso caso o estado, deveria impedir que um ser humano se visse na condição de lutar, contra outro ser humano, pela sua sobrevivência. A ‘maravilha’ humana não está no mercado perfeito, e sim na capacidade do homem de não lutar entre si. A maravilha seria a capacidade do homem não cometer a autodestruição, através da sua capacidade de organização social.
Economicamente falando, também não digo que a flutuação mercantil livre não é benéfica, o argumento de Hayek é enfaticamente válido. Mas deve ser aplaudido com os olhos bem abertos. As interpretações devem ser cuidadosas. Realmente a flutuação dos preços consegue interligar informações maravilhosamente, o mercado encaixa as ofertas nas demandas como se elas fossem as peças de um quebra-cabeça. Mas a partir do momento em que o ser humano acredita ser possível um funcionamento perfeito desta liberdade comercial, ele cai na barbárie. Neste caso, proponho a anarquia, ela é mais sincera e menos hipócrita.
Este liberalismo utópico ignora as raízes de nossa sociedade. Ele trata cada ser humano como uma ilha isolada, independente e igual. Este problema pode resumir-se à lógica: é impossível criar um sistema isento das externalidades. É como tentar prever o futuro, é uma aposta no vazio, como se as probabilidades pudessem ser anuladas.  Seria como uma concordância geral sobre um comportamento humano e econômico a ser seguido. Todos nós vivemos o mundo de hoje e todos nós sabemos que esta sincronia é impossível. Atemo-nos aos fatos reais, simples assim.
Vivemos um progresso fenomenal desde o início do capitalismo. Temos curas, inventos, facilidades, maravilhas tecnológicas, vastidões intelectuais, o ser humano vem se mostrado magnífico. Agora, o meu questionamento é a desconexão feita entre este desenvolvimento humano e a dignidade humana.  O andamento perfeito do mercado (no caso, um andamento igualitário, uma competição justa) uma vez utópico, deve ser construído pela organização humana.
Repito, este andamento ‘perfeito’ não corresponde ao andamento natural da economia e da sociedade, ele deve ser conduzido por elas. Eis então o jogo de funções que é subvertido em muitas discussões: atualmente, a organização humana assegura uma competição deficiente, uma contradição latente e caótica. Atualmente, o objetivo da organização social humana se esconde sob a suposta função de impermeabilizar a economia e deixá-la tomar seu rumo natural e perfeito.  Mas, na verdade, a organização social humana (que existe comumente como o ‘Estado’) deveria desviar o andamento natural da economia para um curso benéfico à humanidade.
O desafio é um animal imperfeito como o ser humano, conseguir aproximar-se de uma organização cada vez mais próxima, da perfeita para si. Por mais que a perfeição seja impossível de atingir, é possível caminhar indefinidamente em direção a ela.

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