sexta-feira, 18 de maio de 2012

Devaneio Federal. Homenagem ao Dr. Ervin e ao Prof. Dantas.

Muito mal escrito, mas o Prof. Dantas e o Dr. Ervin, darão conta do recado. Eles sabem o que eu quero dizer, righ righ, my little droogies????

Naquela tarde fatídica, eu proseava e matava o meu tempo numa roda  de amigos no gramado da Escola de Música da UFMG, acompanhado pelo talentoso Professor Dantas. Além da agradável companhia do Professor, haviam outros camaradas conosco: Sérgio, um exímio geógrafo; Dudu, um filósofo revolucionário; João, o político estudantil; Pedrão, um músico 'paz e amor'; um outro Pedrão, carinhosamente chamado de 'nosso mestre' e ,enfim, o soturno Doutor Ervin.  O Dr. Ervin era apático, de olhar vazio e frio, de uma sobriedade quase psicopata. Ele era um homem sério, de poucas palavras. Mas parecia que dentro dele haviam engrenagens que giravam à todo vapor, e que retiravam, assim, a energia daquele olhar.
Enquanto o Músico Pedrão enrolava um baseado, o Sol ardia obliquamente sobre o violão cantante, que delongava nas mãos de Dantas. Estava tudo agradável, ensolarado e verde. Após o baseado ser consumido, propus ao Professor "une promenade", um passeio pela escola de música, enquanto o cânhamo massageava nosso cérebro.
Chegando lá, o ar era  leve e a mistura de melodias era sempre consonante para os nossos ouvidos abertos à percepção. Caminhamos, observamos a precisão dos alunos pelas pequenas janelinhas das salas de aula, enquanto dialogávamos sobre aquele lugar tão mágico e tão exuberante em sua arte. Começamos a percorrer extensos corredores pelo interior do prédio, nas entranhas daquele local. E, sem que percebêssemos, nossa prosa cessou, nós apenas observávamos e sentíamos aquele ambiente.
Então chegamos num corredor distinto. A única opção era virar à esquerda, e a escuridão daquele novo corredor já mostrava seu limiar, na parede à nossa frente, antes de alcançarmos a curva. Desaceleramos os passos e lentamente viramos à esquerda, numa hesitação inconsciente. O ar estava ganhando densidade, o tempo passava mais lentamente e uma letargia envolvia nosso espírito.
Após virar, paramos.O corredor tinha as luzes apagadas, as portas das salas deixavam passar raios fracos de luz branca e, no final do corredor, uma lâmpada dava seus últimos suspiros... Oscilando em pulsos elétricos.
Nos entreolhamos intrigados... O que será que estava acontecendo? Quando começamos galgar em frente, nosso ouvido passou a ser alfinetado por uma música endiabrada, que substituiu a harmonia anterior. Os sons agudos estavam estridentes e dissonantes. Os instrumentos de sopro faziam uma marcha amedrontadora, uma mistura de agudos arranhados e ofegantes, pontuados por graves profundos e pomposos.  Este conjunto de sensações eram incríveis, porém aterrorizantes. Pareciam um prelúdio de algo pior.
Íamos caminhando pelo corredor como dois curiosos e, quando fomos conferir pelas janelinhas das salas os músicos que agregavam aquela desarmonia, não havia ninguém. Os ambientes careciam penosamente de vidas humanas, nada nos aconchegava mais. Haviam apenas velhas vitrolas em seus uníssonos individuais, uma em cada sala. Essa bizarrice toda, um corredor escuro, salas trancadas com suas luzes brancas, vitrolas avulsas e o som aflitivo, criavam um manicômio à nossa volta.
Essa constatação nos fez entrar em um desespero contido. A realidade estava ali, mas vacilava para as margens do absurdo. Era ridículo termos aquele medo, mas o sentíamos à cada instante.Era frio, escuro, estridente. Com o coração batendo rapidamente, apressamo-nos em sair daquela sensação. Finalmente chegamos à luz vacilante e pudemos, assim, tomar outro rumo.
Durante o percurso de volta, trocamos poucas palavras... Apenas jogamos observações racionais sobre a estranheza vivenciada pela dupla. Absortos em reflexões sobre aquilo tudo, nem percebemos que os saguões estavam vazios. As pessoas haviam ido embora, e apenas aquele som estranho era audível, distante.Naquela vazieza, éramos as únicas almas vivas que existiam. O que seria desconcertante, caso tivessemos constatado tal fato,  pois há poucos instantes atrás, pessoas iam e vinham por ali.
Quando chegamos na saída envidraçada do prédio, apalpamos com certezas aquele absurdo que vivíamos. Estava de noite, e deviam ser 15h ainda. Quando Dantas buscou as horas no seu relógio de pulso, mostrou-me que os ponteiros estavam congelados às 14h47min. Nos entreolhamos assustados e ele exclamou: " Que merda é essa que está acontecendo com a gente?"
Não consegui responder nada, apenas grunhi algum palavrão e prossegui em direção à saída.
Estava muito frio do lado de fora, o ar saía esfumaçado pela nossas narinas. Não era possível aquilo estar acontecendo. Há pouco o sol nos esquentava no gramado verde, e esta memória ainda estava fresca para nós.
Então, andamos apressadamente pelo gramado escurecido, em direção ao local onde estávamos reunidos mais cedo. À partir daí, o medo só fez-se crescer: O violão estava jogado no chão, sem cordas, cercado por roupas largadas no chão... As roupas dos nossos queridos camaradas estavam jogadas na grama, sem seus respectivos donos. Ficou evidente que alguma coisa maligna estava em curso, estava claro que não era apenas a imaginação de algum de nós dois: Percebíamos individualmente o cenário que ia surgindo à nossa volta. Um cenário agonizante que ia contra toda a lógica de nossas vidas. O que diabos estava acontecendo conosco?
Enquanto olhávamos as roupas no chão, sujas e rasgadas, um odor repugnante invadiu nossas narinas... Um cheiro de enxofre, alguma coisa acontecia perto dali. Ao buscarmos com os olhos a origem de tal cheiro, vimos um rastro de fumaça saindo de uma mata, que fazia fronteira com o gramado em que pisávamos.  A tensão aumentou, e começamos a suar frio, embasbacados. Mas o cheiro de enxofre se foi, e, sob aquele som longíncuo e bizarro, rumamos, instintivamente, para a mata fechada.Um ponto de luz laranja guiou-nos pela nossa caminhada desencorajada.
Chegamos finalmente ao cúmulo desta narrativa medonha. Lá estava o Dr. Ervin, sentado de costas para nós, sobre o toco de uma árvore cortada. O homem raquítico estava totalmente nu.Sua pele branca alaranjava-se diante do fogo de uma pequena fogueira, para a qual ele estava de frente. Ele abraçava a si próprio , atravessando os braços pela frente do corpo e fazendo com que suas mãos alcançassem suas costas. A única coisa que movia naquele corpo paralisado eram as mãos, que esfregavam as costas ensombreadas, como que para proteger-se do frio que reinava. Estacamos. Não tínhamos a menor ideia do que estava para suceder. Conhecíamos pouco o Dr. Ervin, aliás, ninguém o conhecia direito. Ele apenas convivia conosco na UFMG, de forma misteriosa e silenciosa.
 "Ervin?" - exclamou Dantas... Ele não respondeu... Chamamos seu nome incessantemente e nenhum músculo se moveu. Ele parecia estar em transe, num transe psicótico. Aquilo tudo era demoníaco. Mas forçamo-nos a acreditar que estava tudo bem e que logo o pesadelo acabaria. "Vamos acabar logo com essa loucura"- eu disse - " ele deve estar passando mal"... Péssimas palavras. Eu dizia isto, mas tremia de medo por dentro. Nada mais era normal.
. Haviam alguns pêlos negros em suas costas e o seu cabelo era bem curto, sua posição era meio retraída, ele acorcundava-se um pouco. Aproximei-me do Dr. Ervin e lentamente cheguei meus dedos perto daquela pele branca. Hesitei um pouco antes de iniciar o contato físico, eu estava perigosamente perto dele.
Quando o toquei, sua pele estava gelada. De súbito, ele inspirou ruidosamente um bocado de ar e expirou levemente. Em seguida, começou rir baixinho, um riso quase mudo, mas penetrante.
Vagarosamente, ele ergueu a cabeça que pendia para baixo e, sentado, foi girando para a nossa direção, sem alterar aquela postura friorenta. Quando parou, sua risada maléfica foi ganhando tom gradualmente, o que me fez recuar um ou dois passos, para o lado do Prof. Dantas, que estarrecia-se.
Quando parou de girar, numa explosão demoníaca, o pavoroso Dr. Ervin escancarou sua boca de dentes amarelados e começou a gargalhar descontrolavelmente, como um lunático enfurecido. Suas mãos esfregavam compulsivamente as costas e o corpo nu pendia para frente e para trás, acompanhando o ritmo estridente da risada enlouquecida.
Aquele riso invadia nossas cabeças e nos deixava atordoados, em meio a todo o terror. Não tínhamos ideia do que fazer. Ele ergueu-se então violentamente, e abriu os braços, tais quais grandes asas, crispando os dedos com força e urrando: " ERRRRVIN!!!"
Só então, a luz iluminou o rosto do Dr. Ervin, e nos deu a nossa última visão daquela noite.As orelhas eram finas, quase sem pele, com uma cartilagem navalhada, quase vampiresca. Sua barba avolumava as linhas inferiores do seu maxilar, e as sobrancelhas arqueavam formando duas pontas. A boca estava aberta, mostrando os dentes sanguinolentos e vorazes. Mas os olhos eram a visão mais medonha possível. Arregalados e vermelhos, ameaçavam cada pensamento nosso.
Como um felino, suas pupilas esticaram-se verticalmente, uma visão diabólica. Aquele lunático incorporava uma monstruosidade animalesca. A realidade em que vivíamos e tudo que acreditávamos ser lógico, estava sendo esmagado pelo Dr. Ervin.
Mesmo se sobrevivêssemos àquela visão monstra, ao choque psicológico e a todos os perigos que emanavam daquela criatura, o mundo não faria mais sentido. Seria uma constante fuga, um medo cotidiano que nos gelaria a cada sombra, a cada ruído e a cada cortina esvoaçante. O Dr. Ervin estaria sempre à espreita. Um monstro sorrateiro e alucinado ao mesmo tempo, Sutil e arrebatador, Sóbrio e ébrio, louco e sério, Razão e instinto. Homem e animal.

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