Fantástico o final do filme... O cara é sistemático e egocêntrico, criativo, mas pessimista e inseguro. A moça super talentosa, exasperada, inocente e vívida... O relacionamento entre os dois termina com ele continuando em Nova Iorque, como quis, retraído e impassivo, e ela após conviver com ele, consegue externar suas vontades e talentos. Essa transição é representada no momento em que o homem introduz a mulher na Psicanálise, com a qual ela consegue se "libertar". E ele fazia análise há muito tempo... Mas a análise não é causa em si, é apenas uma representação da expansão da mulher, ela dá uma reviravolta na vida, expõe seu talento como cantora, busca novas experiências e foge da antiga imobilidade, típica do seu parceiro. Essa "libertação" leva ao fim do relacionamento dos dois, ela se desapega dele.
O fantástico é a "piada" final contada pelo protagonista masculino, que é um comediante:
Um rapaz conta a seu analista que seu irmão é um frangote. O analista então aconselha-o a dizer isso com sinceridade ao irmão. E o paciente responde que não pode dizer isso, pois precisa dos ovos do frango.
Ele enfim conclui: hoje os relacionamentos que as pessoas vivem são inconstrutivos, sem sentido algum, absurdos, mas mesmo assim continua-se a vivê-los.
Aqui está uma via de escape, uma tentativa de despejo mental, uma aspiração à escrita, um sonho jovem, uma preguiça caseira. beijos e abraços, Rafael
quarta-feira, 30 de maio de 2012
terça-feira, 22 de maio de 2012
Reflexão do Mito de Sísifo, de Albert Camus... O absurdo da existência
Como ser um homem adormecido que sabe que está dormindo?
É a mesma sensação de ter consciência de que sonha. No meio de um gozo extraordinário, aquele momento prazerosíssimo, que você sempre desejou viver na vida real. Quando você sonha com uma declaração de amor que já evaporou-se no tempo. Um beijo que já secou, de uma pessoa que já esqueceu seu nome há tempos... Nesse cúmulo do sonho, às vezes surge a consciência de que o que você está vivendo é apenas um sonho. De repente, você domina a sua imaginação... Bem diferente daquela sensação comum nos sonhos, em que você não consegue fugir do seu algoz mortífero, suas pernas sempre cedem.Ou então não consegue desferir um soco contra um arqui-rival, seus músculos amolecem no sonho fora de controle, sua mão começa a pesar inacreditáveis 1000 kilos.
Nessas situações, meio raras, em que conseguimos dominar nosso sonho, você tristemente percebe que nada daquilo é real, você tem duas escolhas: submergir e acordar sonolentamente, possivelmente angustiado, para ir ao banheiro pacatamente, ou então manter-se submerso, prendendo a respiração naquele mundo onírico, em que tudo passa a ser perfeito, tudo te faz sereno, como seu desejo mais íntimo articula.
Essa metáfora simboliza o homem que sabe que vive um absurdo, sabe que sua vida é uma caminhada falsa, mas permanece nessa cegueira cômoda. Ele sabe que pode abrir os olhos, pois há uma trilha que desvia-se da sua suposta verdade... Um desvio que desmanchará suas ilusões e lhe dará um tapa na cara, um certo balde de água fria que Camus chama de "absurdo", o absurdo da nossa existência.
Mas este homem não sabe como pegar tal desvio, talvez ele não suportasse isso, muitas vezes um homem sucumbe, como Camus devaneia sobre o suicídio, uma vida que não vale a pena ser vivida. Este homem pode não conseguir ter o ímpeto, a vontade de despertar.
Pois ele sabe da existência absurda, mas não infiltra ela na sua vida. Ele não pega o desvio que escancara e invade a alma dele... É quase um medo de ser descorrompido, ele está muito bem acomodado em seu sonho.
É a mesma sensação de ter consciência de que sonha. No meio de um gozo extraordinário, aquele momento prazerosíssimo, que você sempre desejou viver na vida real. Quando você sonha com uma declaração de amor que já evaporou-se no tempo. Um beijo que já secou, de uma pessoa que já esqueceu seu nome há tempos... Nesse cúmulo do sonho, às vezes surge a consciência de que o que você está vivendo é apenas um sonho. De repente, você domina a sua imaginação... Bem diferente daquela sensação comum nos sonhos, em que você não consegue fugir do seu algoz mortífero, suas pernas sempre cedem.Ou então não consegue desferir um soco contra um arqui-rival, seus músculos amolecem no sonho fora de controle, sua mão começa a pesar inacreditáveis 1000 kilos.
Nessas situações, meio raras, em que conseguimos dominar nosso sonho, você tristemente percebe que nada daquilo é real, você tem duas escolhas: submergir e acordar sonolentamente, possivelmente angustiado, para ir ao banheiro pacatamente, ou então manter-se submerso, prendendo a respiração naquele mundo onírico, em que tudo passa a ser perfeito, tudo te faz sereno, como seu desejo mais íntimo articula.
Essa metáfora simboliza o homem que sabe que vive um absurdo, sabe que sua vida é uma caminhada falsa, mas permanece nessa cegueira cômoda. Ele sabe que pode abrir os olhos, pois há uma trilha que desvia-se da sua suposta verdade... Um desvio que desmanchará suas ilusões e lhe dará um tapa na cara, um certo balde de água fria que Camus chama de "absurdo", o absurdo da nossa existência.
Mas este homem não sabe como pegar tal desvio, talvez ele não suportasse isso, muitas vezes um homem sucumbe, como Camus devaneia sobre o suicídio, uma vida que não vale a pena ser vivida. Este homem pode não conseguir ter o ímpeto, a vontade de despertar.
Pois ele sabe da existência absurda, mas não infiltra ela na sua vida. Ele não pega o desvio que escancara e invade a alma dele... É quase um medo de ser descorrompido, ele está muito bem acomodado em seu sonho.
sexta-feira, 18 de maio de 2012
Devaneio Federal. Homenagem ao Dr. Ervin e ao Prof. Dantas.
Muito mal escrito, mas o Prof. Dantas e o Dr. Ervin, darão conta do recado. Eles sabem o que eu quero dizer, righ righ, my little droogies????
Naquela tarde fatídica, eu proseava e matava o meu tempo numa roda de amigos no gramado da Escola de Música da UFMG, acompanhado pelo talentoso Professor Dantas. Além da agradável companhia do Professor, haviam outros camaradas conosco: Sérgio, um exímio geógrafo; Dudu, um filósofo revolucionário; João, o político estudantil; Pedrão, um músico 'paz e amor'; um outro Pedrão, carinhosamente chamado de 'nosso mestre' e ,enfim, o soturno Doutor Ervin. O Dr. Ervin era apático, de olhar vazio e frio, de uma sobriedade quase psicopata. Ele era um homem sério, de poucas palavras. Mas parecia que dentro dele haviam engrenagens que giravam à todo vapor, e que retiravam, assim, a energia daquele olhar.
Enquanto o Músico Pedrão enrolava um baseado, o Sol ardia obliquamente sobre o violão cantante, que delongava nas mãos de Dantas. Estava tudo agradável, ensolarado e verde. Após o baseado ser consumido, propus ao Professor "une promenade", um passeio pela escola de música, enquanto o cânhamo massageava nosso cérebro.
Chegando lá, o ar era leve e a mistura de melodias era sempre consonante para os nossos ouvidos abertos à percepção. Caminhamos, observamos a precisão dos alunos pelas pequenas janelinhas das salas de aula, enquanto dialogávamos sobre aquele lugar tão mágico e tão exuberante em sua arte. Começamos a percorrer extensos corredores pelo interior do prédio, nas entranhas daquele local. E, sem que percebêssemos, nossa prosa cessou, nós apenas observávamos e sentíamos aquele ambiente.
Então chegamos num corredor distinto. A única opção era virar à esquerda, e a escuridão daquele novo corredor já mostrava seu limiar, na parede à nossa frente, antes de alcançarmos a curva. Desaceleramos os passos e lentamente viramos à esquerda, numa hesitação inconsciente. O ar estava ganhando densidade, o tempo passava mais lentamente e uma letargia envolvia nosso espírito.
Após virar, paramos.O corredor tinha as luzes apagadas, as portas das salas deixavam passar raios fracos de luz branca e, no final do corredor, uma lâmpada dava seus últimos suspiros... Oscilando em pulsos elétricos.
Nos entreolhamos intrigados... O que será que estava acontecendo? Quando começamos galgar em frente, nosso ouvido passou a ser alfinetado por uma música endiabrada, que substituiu a harmonia anterior. Os sons agudos estavam estridentes e dissonantes. Os instrumentos de sopro faziam uma marcha amedrontadora, uma mistura de agudos arranhados e ofegantes, pontuados por graves profundos e pomposos. Este conjunto de sensações eram incríveis, porém aterrorizantes. Pareciam um prelúdio de algo pior.
Íamos caminhando pelo corredor como dois curiosos e, quando fomos conferir pelas janelinhas das salas os músicos que agregavam aquela desarmonia, não havia ninguém. Os ambientes careciam penosamente de vidas humanas, nada nos aconchegava mais. Haviam apenas velhas vitrolas em seus uníssonos individuais, uma em cada sala. Essa bizarrice toda, um corredor escuro, salas trancadas com suas luzes brancas, vitrolas avulsas e o som aflitivo, criavam um manicômio à nossa volta.
Essa constatação nos fez entrar em um desespero contido. A realidade estava ali, mas vacilava para as margens do absurdo. Era ridículo termos aquele medo, mas o sentíamos à cada instante.Era frio, escuro, estridente. Com o coração batendo rapidamente, apressamo-nos em sair daquela sensação. Finalmente chegamos à luz vacilante e pudemos, assim, tomar outro rumo.
Durante o percurso de volta, trocamos poucas palavras... Apenas jogamos observações racionais sobre a estranheza vivenciada pela dupla. Absortos em reflexões sobre aquilo tudo, nem percebemos que os saguões estavam vazios. As pessoas haviam ido embora, e apenas aquele som estranho era audível, distante.Naquela vazieza, éramos as únicas almas vivas que existiam. O que seria desconcertante, caso tivessemos constatado tal fato, pois há poucos instantes atrás, pessoas iam e vinham por ali.
Quando chegamos na saída envidraçada do prédio, apalpamos com certezas aquele absurdo que vivíamos. Estava de noite, e deviam ser 15h ainda. Quando Dantas buscou as horas no seu relógio de pulso, mostrou-me que os ponteiros estavam congelados às 14h47min. Nos entreolhamos assustados e ele exclamou: " Que merda é essa que está acontecendo com a gente?"
Não consegui responder nada, apenas grunhi algum palavrão e prossegui em direção à saída.
Estava muito frio do lado de fora, o ar saía esfumaçado pela nossas narinas. Não era possível aquilo estar acontecendo. Há pouco o sol nos esquentava no gramado verde, e esta memória ainda estava fresca para nós.
Então, andamos apressadamente pelo gramado escurecido, em direção ao local onde estávamos reunidos mais cedo. À partir daí, o medo só fez-se crescer: O violão estava jogado no chão, sem cordas, cercado por roupas largadas no chão... As roupas dos nossos queridos camaradas estavam jogadas na grama, sem seus respectivos donos. Ficou evidente que alguma coisa maligna estava em curso, estava claro que não era apenas a imaginação de algum de nós dois: Percebíamos individualmente o cenário que ia surgindo à nossa volta. Um cenário agonizante que ia contra toda a lógica de nossas vidas. O que diabos estava acontecendo conosco?
Enquanto olhávamos as roupas no chão, sujas e rasgadas, um odor repugnante invadiu nossas narinas... Um cheiro de enxofre, alguma coisa acontecia perto dali. Ao buscarmos com os olhos a origem de tal cheiro, vimos um rastro de fumaça saindo de uma mata, que fazia fronteira com o gramado em que pisávamos. A tensão aumentou, e começamos a suar frio, embasbacados. Mas o cheiro de enxofre se foi, e, sob aquele som longíncuo e bizarro, rumamos, instintivamente, para a mata fechada.Um ponto de luz laranja guiou-nos pela nossa caminhada desencorajada.
Chegamos finalmente ao cúmulo desta narrativa medonha. Lá estava o Dr. Ervin, sentado de costas para nós, sobre o toco de uma árvore cortada. O homem raquítico estava totalmente nu.Sua pele branca alaranjava-se diante do fogo de uma pequena fogueira, para a qual ele estava de frente. Ele abraçava a si próprio , atravessando os braços pela frente do corpo e fazendo com que suas mãos alcançassem suas costas. A única coisa que movia naquele corpo paralisado eram as mãos, que esfregavam as costas ensombreadas, como que para proteger-se do frio que reinava. Estacamos. Não tínhamos a menor ideia do que estava para suceder. Conhecíamos pouco o Dr. Ervin, aliás, ninguém o conhecia direito. Ele apenas convivia conosco na UFMG, de forma misteriosa e silenciosa.
"Ervin?" - exclamou Dantas... Ele não respondeu... Chamamos seu nome incessantemente e nenhum músculo se moveu. Ele parecia estar em transe, num transe psicótico. Aquilo tudo era demoníaco. Mas forçamo-nos a acreditar que estava tudo bem e que logo o pesadelo acabaria. "Vamos acabar logo com essa loucura"- eu disse - " ele deve estar passando mal"... Péssimas palavras. Eu dizia isto, mas tremia de medo por dentro. Nada mais era normal.
. Haviam alguns pêlos negros em suas costas e o seu cabelo era bem curto, sua posição era meio retraída, ele acorcundava-se um pouco. Aproximei-me do Dr. Ervin e lentamente cheguei meus dedos perto daquela pele branca. Hesitei um pouco antes de iniciar o contato físico, eu estava perigosamente perto dele.
Quando o toquei, sua pele estava gelada. De súbito, ele inspirou ruidosamente um bocado de ar e expirou levemente. Em seguida, começou rir baixinho, um riso quase mudo, mas penetrante.
Vagarosamente, ele ergueu a cabeça que pendia para baixo e, sentado, foi girando para a nossa direção, sem alterar aquela postura friorenta. Quando parou, sua risada maléfica foi ganhando tom gradualmente, o que me fez recuar um ou dois passos, para o lado do Prof. Dantas, que estarrecia-se.
Quando parou de girar, numa explosão demoníaca, o pavoroso Dr. Ervin escancarou sua boca de dentes amarelados e começou a gargalhar descontrolavelmente, como um lunático enfurecido. Suas mãos esfregavam compulsivamente as costas e o corpo nu pendia para frente e para trás, acompanhando o ritmo estridente da risada enlouquecida.
Aquele riso invadia nossas cabeças e nos deixava atordoados, em meio a todo o terror. Não tínhamos ideia do que fazer. Ele ergueu-se então violentamente, e abriu os braços, tais quais grandes asas, crispando os dedos com força e urrando: " ERRRRVIN!!!"
Só então, a luz iluminou o rosto do Dr. Ervin, e nos deu a nossa última visão daquela noite.As orelhas eram finas, quase sem pele, com uma cartilagem navalhada, quase vampiresca. Sua barba avolumava as linhas inferiores do seu maxilar, e as sobrancelhas arqueavam formando duas pontas. A boca estava aberta, mostrando os dentes sanguinolentos e vorazes. Mas os olhos eram a visão mais medonha possível. Arregalados e vermelhos, ameaçavam cada pensamento nosso.
Como um felino, suas pupilas esticaram-se verticalmente, uma visão diabólica. Aquele lunático incorporava uma monstruosidade animalesca. A realidade em que vivíamos e tudo que acreditávamos ser lógico, estava sendo esmagado pelo Dr. Ervin.
Mesmo se sobrevivêssemos àquela visão monstra, ao choque psicológico e a todos os perigos que emanavam daquela criatura, o mundo não faria mais sentido. Seria uma constante fuga, um medo cotidiano que nos gelaria a cada sombra, a cada ruído e a cada cortina esvoaçante. O Dr. Ervin estaria sempre à espreita. Um monstro sorrateiro e alucinado ao mesmo tempo, Sutil e arrebatador, Sóbrio e ébrio, louco e sério, Razão e instinto. Homem e animal.
Naquela tarde fatídica, eu proseava e matava o meu tempo numa roda de amigos no gramado da Escola de Música da UFMG, acompanhado pelo talentoso Professor Dantas. Além da agradável companhia do Professor, haviam outros camaradas conosco: Sérgio, um exímio geógrafo; Dudu, um filósofo revolucionário; João, o político estudantil; Pedrão, um músico 'paz e amor'; um outro Pedrão, carinhosamente chamado de 'nosso mestre' e ,enfim, o soturno Doutor Ervin. O Dr. Ervin era apático, de olhar vazio e frio, de uma sobriedade quase psicopata. Ele era um homem sério, de poucas palavras. Mas parecia que dentro dele haviam engrenagens que giravam à todo vapor, e que retiravam, assim, a energia daquele olhar.
Enquanto o Músico Pedrão enrolava um baseado, o Sol ardia obliquamente sobre o violão cantante, que delongava nas mãos de Dantas. Estava tudo agradável, ensolarado e verde. Após o baseado ser consumido, propus ao Professor "une promenade", um passeio pela escola de música, enquanto o cânhamo massageava nosso cérebro.
Chegando lá, o ar era leve e a mistura de melodias era sempre consonante para os nossos ouvidos abertos à percepção. Caminhamos, observamos a precisão dos alunos pelas pequenas janelinhas das salas de aula, enquanto dialogávamos sobre aquele lugar tão mágico e tão exuberante em sua arte. Começamos a percorrer extensos corredores pelo interior do prédio, nas entranhas daquele local. E, sem que percebêssemos, nossa prosa cessou, nós apenas observávamos e sentíamos aquele ambiente.
Então chegamos num corredor distinto. A única opção era virar à esquerda, e a escuridão daquele novo corredor já mostrava seu limiar, na parede à nossa frente, antes de alcançarmos a curva. Desaceleramos os passos e lentamente viramos à esquerda, numa hesitação inconsciente. O ar estava ganhando densidade, o tempo passava mais lentamente e uma letargia envolvia nosso espírito.
Após virar, paramos.O corredor tinha as luzes apagadas, as portas das salas deixavam passar raios fracos de luz branca e, no final do corredor, uma lâmpada dava seus últimos suspiros... Oscilando em pulsos elétricos.
Nos entreolhamos intrigados... O que será que estava acontecendo? Quando começamos galgar em frente, nosso ouvido passou a ser alfinetado por uma música endiabrada, que substituiu a harmonia anterior. Os sons agudos estavam estridentes e dissonantes. Os instrumentos de sopro faziam uma marcha amedrontadora, uma mistura de agudos arranhados e ofegantes, pontuados por graves profundos e pomposos. Este conjunto de sensações eram incríveis, porém aterrorizantes. Pareciam um prelúdio de algo pior.
Íamos caminhando pelo corredor como dois curiosos e, quando fomos conferir pelas janelinhas das salas os músicos que agregavam aquela desarmonia, não havia ninguém. Os ambientes careciam penosamente de vidas humanas, nada nos aconchegava mais. Haviam apenas velhas vitrolas em seus uníssonos individuais, uma em cada sala. Essa bizarrice toda, um corredor escuro, salas trancadas com suas luzes brancas, vitrolas avulsas e o som aflitivo, criavam um manicômio à nossa volta.
Essa constatação nos fez entrar em um desespero contido. A realidade estava ali, mas vacilava para as margens do absurdo. Era ridículo termos aquele medo, mas o sentíamos à cada instante.Era frio, escuro, estridente. Com o coração batendo rapidamente, apressamo-nos em sair daquela sensação. Finalmente chegamos à luz vacilante e pudemos, assim, tomar outro rumo.
Durante o percurso de volta, trocamos poucas palavras... Apenas jogamos observações racionais sobre a estranheza vivenciada pela dupla. Absortos em reflexões sobre aquilo tudo, nem percebemos que os saguões estavam vazios. As pessoas haviam ido embora, e apenas aquele som estranho era audível, distante.Naquela vazieza, éramos as únicas almas vivas que existiam. O que seria desconcertante, caso tivessemos constatado tal fato, pois há poucos instantes atrás, pessoas iam e vinham por ali.
Quando chegamos na saída envidraçada do prédio, apalpamos com certezas aquele absurdo que vivíamos. Estava de noite, e deviam ser 15h ainda. Quando Dantas buscou as horas no seu relógio de pulso, mostrou-me que os ponteiros estavam congelados às 14h47min. Nos entreolhamos assustados e ele exclamou: " Que merda é essa que está acontecendo com a gente?"
Não consegui responder nada, apenas grunhi algum palavrão e prossegui em direção à saída.
Estava muito frio do lado de fora, o ar saía esfumaçado pela nossas narinas. Não era possível aquilo estar acontecendo. Há pouco o sol nos esquentava no gramado verde, e esta memória ainda estava fresca para nós.
Então, andamos apressadamente pelo gramado escurecido, em direção ao local onde estávamos reunidos mais cedo. À partir daí, o medo só fez-se crescer: O violão estava jogado no chão, sem cordas, cercado por roupas largadas no chão... As roupas dos nossos queridos camaradas estavam jogadas na grama, sem seus respectivos donos. Ficou evidente que alguma coisa maligna estava em curso, estava claro que não era apenas a imaginação de algum de nós dois: Percebíamos individualmente o cenário que ia surgindo à nossa volta. Um cenário agonizante que ia contra toda a lógica de nossas vidas. O que diabos estava acontecendo conosco?
Enquanto olhávamos as roupas no chão, sujas e rasgadas, um odor repugnante invadiu nossas narinas... Um cheiro de enxofre, alguma coisa acontecia perto dali. Ao buscarmos com os olhos a origem de tal cheiro, vimos um rastro de fumaça saindo de uma mata, que fazia fronteira com o gramado em que pisávamos. A tensão aumentou, e começamos a suar frio, embasbacados. Mas o cheiro de enxofre se foi, e, sob aquele som longíncuo e bizarro, rumamos, instintivamente, para a mata fechada.Um ponto de luz laranja guiou-nos pela nossa caminhada desencorajada.
Chegamos finalmente ao cúmulo desta narrativa medonha. Lá estava o Dr. Ervin, sentado de costas para nós, sobre o toco de uma árvore cortada. O homem raquítico estava totalmente nu.Sua pele branca alaranjava-se diante do fogo de uma pequena fogueira, para a qual ele estava de frente. Ele abraçava a si próprio , atravessando os braços pela frente do corpo e fazendo com que suas mãos alcançassem suas costas. A única coisa que movia naquele corpo paralisado eram as mãos, que esfregavam as costas ensombreadas, como que para proteger-se do frio que reinava. Estacamos. Não tínhamos a menor ideia do que estava para suceder. Conhecíamos pouco o Dr. Ervin, aliás, ninguém o conhecia direito. Ele apenas convivia conosco na UFMG, de forma misteriosa e silenciosa.
"Ervin?" - exclamou Dantas... Ele não respondeu... Chamamos seu nome incessantemente e nenhum músculo se moveu. Ele parecia estar em transe, num transe psicótico. Aquilo tudo era demoníaco. Mas forçamo-nos a acreditar que estava tudo bem e que logo o pesadelo acabaria. "Vamos acabar logo com essa loucura"- eu disse - " ele deve estar passando mal"... Péssimas palavras. Eu dizia isto, mas tremia de medo por dentro. Nada mais era normal.
. Haviam alguns pêlos negros em suas costas e o seu cabelo era bem curto, sua posição era meio retraída, ele acorcundava-se um pouco. Aproximei-me do Dr. Ervin e lentamente cheguei meus dedos perto daquela pele branca. Hesitei um pouco antes de iniciar o contato físico, eu estava perigosamente perto dele.
Quando o toquei, sua pele estava gelada. De súbito, ele inspirou ruidosamente um bocado de ar e expirou levemente. Em seguida, começou rir baixinho, um riso quase mudo, mas penetrante.
Vagarosamente, ele ergueu a cabeça que pendia para baixo e, sentado, foi girando para a nossa direção, sem alterar aquela postura friorenta. Quando parou, sua risada maléfica foi ganhando tom gradualmente, o que me fez recuar um ou dois passos, para o lado do Prof. Dantas, que estarrecia-se.
Quando parou de girar, numa explosão demoníaca, o pavoroso Dr. Ervin escancarou sua boca de dentes amarelados e começou a gargalhar descontrolavelmente, como um lunático enfurecido. Suas mãos esfregavam compulsivamente as costas e o corpo nu pendia para frente e para trás, acompanhando o ritmo estridente da risada enlouquecida.
Aquele riso invadia nossas cabeças e nos deixava atordoados, em meio a todo o terror. Não tínhamos ideia do que fazer. Ele ergueu-se então violentamente, e abriu os braços, tais quais grandes asas, crispando os dedos com força e urrando: " ERRRRVIN!!!"
Só então, a luz iluminou o rosto do Dr. Ervin, e nos deu a nossa última visão daquela noite.As orelhas eram finas, quase sem pele, com uma cartilagem navalhada, quase vampiresca. Sua barba avolumava as linhas inferiores do seu maxilar, e as sobrancelhas arqueavam formando duas pontas. A boca estava aberta, mostrando os dentes sanguinolentos e vorazes. Mas os olhos eram a visão mais medonha possível. Arregalados e vermelhos, ameaçavam cada pensamento nosso.
Como um felino, suas pupilas esticaram-se verticalmente, uma visão diabólica. Aquele lunático incorporava uma monstruosidade animalesca. A realidade em que vivíamos e tudo que acreditávamos ser lógico, estava sendo esmagado pelo Dr. Ervin.
Mesmo se sobrevivêssemos àquela visão monstra, ao choque psicológico e a todos os perigos que emanavam daquela criatura, o mundo não faria mais sentido. Seria uma constante fuga, um medo cotidiano que nos gelaria a cada sombra, a cada ruído e a cada cortina esvoaçante. O Dr. Ervin estaria sempre à espreita. Um monstro sorrateiro e alucinado ao mesmo tempo, Sutil e arrebatador, Sóbrio e ébrio, louco e sério, Razão e instinto. Homem e animal.
STALINGRADO
Porque o sangue derramado,
não fez nascer rosas vermelhas,
nas ruas de Stalingrado?
Nas mães já s`esfriaram,
nas ruas de Stalingrado?
Nas mães já s`esfriaram,
as fumegantes centelhas?
domingo, 13 de maio de 2012
O dia das mães é hoje... E eu não fiz porra nenhuma. Este texto foi remoído, mascado, mastigado e todos os tipos de "apagar e reescrever" mentais existentes. O motivo disso é bem simples, eu tive tempo. Uma semana pensando nesta situação ajuda bastante em uma querida criatividade, mas o "querer ter vergonha" é o grande motivador, e é a fixação do dia, o meu devaneio de hoje.
Eu sabia, e de grande consciência, que eu não ia dar nenhum presente, miserável que fosse, para minha mãe. É dia das mães.Beleza, o dia dela, minha progenitora, aquela que me pariu e que é tanto xingada por minha causa, mas que nem mesmo escuta tais injúrias fedorentas.
Eis então que eu matutei a semana inteira: Qual seria o caminho para não fazer feio neste novo dia das mães? Sabendo que as três últimas datas dessas eu passei na cama numa puta ressaca, passando mal e num estado inconversável. Desde o início da semana, a ideia de comprar um presente, material, palpável, já estava anulada pela desculpa financeira. Tipo: minha mesada não consegue acompanhar estas despesas, no ano que vem eu compro algo, ela não faz realmente questão disto ou, a mais hipócrita, eu vou conseguir fazer algo melhor para ela...
Dispensando outras desculpas gaguejadas, são 6h da manhã e eu continuo sorrindo para a lua, sem mover nenhum dedo necrosado de cigarro fincado em minha mão tola. Claro que eu faço questão de fazer bonito. Meu sonho seria realizar o sonho da minha mãe. Mas não dá. Pensando e pensando, você acaba chegando à conclusão de que, por mais que a bolsa nova que você compre para a sua mãe seja de um vermelho vinho-tinto, a bolsa do ano que vem será de um vermelho chocante, e a do outro ano, beirará o infra-vermelho. Sim, esta é uma outra desculpa tosca, e tudo que eu argumentar hoje não vai passar de uma desculpa tosca. Em outras palavras,uma desculpa esfarrapadinha.
Poisé, continuando a viagem, eu queria muito ter a gana, o amor de dedilhar mil amores para minha mãe aqui, ou, pelo menos, arrepender-me de não tê-lo feito, Mas acontece que tanto faz. Não há nem um nem outro. Eu continuo aqui tal qual uma rocha desmaiada no fundo do mar. Refletindo pensamentos tão submarinos quanto o naufragado Titanic. Submarinos mesmo, abaixo do meu próprio senso comum, que seria a nossa superfície respirável. E eu não vou comprar um embrulho bonito para você, justo porquê hoje é o dia 13 de maio de 2012. Vou apenas escrever isto porque tenho muita vontade, porque é algo que anda muito latente desde que eu comecei a pensar em presentes maternos. Bem, seu maior presente é ser você, e eu quero que o meu maior presente seja ser eu, filho seu. Não é nada megalomaníaco nem ideal. É apenas sonho de filho.
Feliz dia das mães, linda. Eu vi tantos jovens, como eu, comprando belos presentes para suas mães, que eu me senti envergonhado. Mas acho que eu me envergonho mais falando que eu estou envergonhado, do que "pagando este mico com você". Mas este devaneio atrasado foi o melhor que eu pude assoprar na tua cara agora. E me desculpe o bafo de cerveja.
Eu te amo, Rafael.
Eu sabia, e de grande consciência, que eu não ia dar nenhum presente, miserável que fosse, para minha mãe. É dia das mães.Beleza, o dia dela, minha progenitora, aquela que me pariu e que é tanto xingada por minha causa, mas que nem mesmo escuta tais injúrias fedorentas.
Eis então que eu matutei a semana inteira: Qual seria o caminho para não fazer feio neste novo dia das mães? Sabendo que as três últimas datas dessas eu passei na cama numa puta ressaca, passando mal e num estado inconversável. Desde o início da semana, a ideia de comprar um presente, material, palpável, já estava anulada pela desculpa financeira. Tipo: minha mesada não consegue acompanhar estas despesas, no ano que vem eu compro algo, ela não faz realmente questão disto ou, a mais hipócrita, eu vou conseguir fazer algo melhor para ela...
Dispensando outras desculpas gaguejadas, são 6h da manhã e eu continuo sorrindo para a lua, sem mover nenhum dedo necrosado de cigarro fincado em minha mão tola. Claro que eu faço questão de fazer bonito. Meu sonho seria realizar o sonho da minha mãe. Mas não dá. Pensando e pensando, você acaba chegando à conclusão de que, por mais que a bolsa nova que você compre para a sua mãe seja de um vermelho vinho-tinto, a bolsa do ano que vem será de um vermelho chocante, e a do outro ano, beirará o infra-vermelho. Sim, esta é uma outra desculpa tosca, e tudo que eu argumentar hoje não vai passar de uma desculpa tosca. Em outras palavras,uma desculpa esfarrapadinha.
Poisé, continuando a viagem, eu queria muito ter a gana, o amor de dedilhar mil amores para minha mãe aqui, ou, pelo menos, arrepender-me de não tê-lo feito, Mas acontece que tanto faz. Não há nem um nem outro. Eu continuo aqui tal qual uma rocha desmaiada no fundo do mar. Refletindo pensamentos tão submarinos quanto o naufragado Titanic. Submarinos mesmo, abaixo do meu próprio senso comum, que seria a nossa superfície respirável. E eu não vou comprar um embrulho bonito para você, justo porquê hoje é o dia 13 de maio de 2012. Vou apenas escrever isto porque tenho muita vontade, porque é algo que anda muito latente desde que eu comecei a pensar em presentes maternos. Bem, seu maior presente é ser você, e eu quero que o meu maior presente seja ser eu, filho seu. Não é nada megalomaníaco nem ideal. É apenas sonho de filho.
Feliz dia das mães, linda. Eu vi tantos jovens, como eu, comprando belos presentes para suas mães, que eu me senti envergonhado. Mas acho que eu me envergonho mais falando que eu estou envergonhado, do que "pagando este mico com você". Mas este devaneio atrasado foi o melhor que eu pude assoprar na tua cara agora. E me desculpe o bafo de cerveja.
Eu te amo, Rafael.
segunda-feira, 7 de maio de 2012
Éramos
Éramos
Jovens, belos, amigos
Andávamos juntos na rua
Vadiando, chutando as latas
Gargalhando, tirando sarro
e fumando cigarro nas matas.
E o riso era desatado
Sem amarras nem malícias
Sem machucar as verdades
Temerosas em miúdas idades.
Mas quando chegou o douro da dama
Chacoalhando seu guizo
Um decote explosivo
Sem teimas na cama
Avançamos na cascavel
Que babava tal mel
Ela então mente e evapora.
E os amigos se arrebentam de frente
Quebrando e arrancando seus dentes.
Não são mais jovens, nem belos amigos.
Agora são ratos, escarrados, fedidos.
Jovens, belos, amigos
Andávamos juntos na rua
Vadiando, chutando as latas
Gargalhando, tirando sarro
e fumando cigarro nas matas.
E o riso era desatado
Sem amarras nem malícias
Sem machucar as verdades
Temerosas em miúdas idades.
Mas quando chegou o douro da dama
Chacoalhando seu guizo
Um decote explosivo
Sem teimas na cama
Avançamos na cascavel
Que babava tal mel
Ela então mente e evapora.
E os amigos se arrebentam de frente
Quebrando e arrancando seus dentes.
Não são mais jovens, nem belos amigos.
Agora são ratos, escarrados, fedidos.
Devaneio de 3 jovens alucinados, 3
Piegas, mas interessante.
O fogo aceso é um sorriso amarelo
A morte é um destino, deixa que a noite nos guie pro fim.
Não passa de ironia.
Nessa juventude louca
que todos querem pensar mais do que o mundo permite
Somos tantos mas tão poucos ao mesmo tempo.
Quero dizer aos meus amigos
O tanto que é lindo pensar apenas em querer pensar o máximo, o tudo.
Sabemos que o tudo está dentro de nós, mas é inalcançável.
O fogo aceso é um sorriso amarelo
A morte é um destino, deixa que a noite nos guie pro fim.
Não passa de ironia.
Nessa juventude louca
que todos querem pensar mais do que o mundo permite
Somos tantos mas tão poucos ao mesmo tempo.
Quero dizer aos meus amigos
O tanto que é lindo pensar apenas em querer pensar o máximo, o tudo.
Sabemos que o tudo está dentro de nós, mas é inalcançável.
Devaneio noturno de 3 jovens alucinados. 2
O mundo é tão amarelo
Parece cerveja
sério, veja.
O tudo somos todos nós
O tudo sou eu, bah.
Mas não tento poesia para impressionar
nem impôr mera estética
Só digo que temos amigos sem ética
Pois eles dizem que o ideal vive aqui
Mas esquecem que nada consegue ser tão legal pra ser esse ideal
de vida, de mundo, de tempo, de ninguém, de mim, de ti.
De tudo que dizemos aqui, pois queremos um sorriso muito branco.
Mas sujamos os dentes, como o amarelo da cerveja.
Instinto noturno de 3 jovens alucinados.
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Eu sinto que eu tenho que escrever
Que que tem falei
Todas as verdades que minha voz queria
Ei-tudo bem?
Qual é teu nome?
Não conheço, mas vem, me importa...
Pode não ser importante, mas é mais bonito que um dragão sem dentes que não solta nenhum fogo,
quinta-feira, 3 de maio de 2012
PARADOXO LIBERAL: A ANULAÇÃO PARCIAL DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL HUMANA
Há um paradoxo na ideia liberal
de condenar a intervenção estatal na economia.
Radicalizando nos termos (não
digo que alguns dos próprios liberais não façam uso deles), a seleção natural
econômica proposta no liberalismo se vê defasada a partir do momento em que ela
não é total. Há a ausência de um estado na economia, mas a ausência da do
estado em outras áreas relacionadas, é desprezada tacitamente. Isso cria uma
injustiça, é como se uma determinada lei, coagisse apenas uma parcela da
população.
Tomemos como pano de fundo a
expressão ‘moinho satânico’, de Karl Polanyi. Sendo ela um exagero, ou não, a
miséria, ou pauperismo, é endêmico em nossa sociedade. O caos social, a
soberania do capital sobre a vida humana, a falta de amparo estatal, é
insustentável. O ser humano, seguindo seu instinto, não permaneceria
conformado, padecendo por não ter acesso econômico aos meios de sobrevivência.
Da mesma forma que o mais “competente” ( forte, esperto, esforçado, ou qualquer
adjetivo que identifique o sujeito que
consegue dinheiro para sobreviver, ou esbanjar) chegou ao seu status social vencendo na árdua
“seleção natural econômica” por puro mérito, a massa oprimida tomaria seus
métodos, por mais selvagens que fosse, para sobreviver.
Neste ponto de calamidade pública
entra, enfim, o estado, para anular a desordem da luta de classes como uma força
transcendental. E ele o faz através da polícia e das leis. É neste momento que
o liberalismo, utópico, entra num paradoxo, pois a seleção natural é quebrada. O
pobre que poderia brigar pela sua posição social, através dos seus métodos, é
forçado a abrir mão do seu instinto de sobrevivência. Ele é obrigado a abaixar a cabeça diante do
sistema.
O estado não deve intervir nos
salários, no auxílio aos pobres, nos impostos, nos bancos centrais. Mas deve
manter a ordem, por mais que ela subverta a salubridade da vivência humana.
Proteger a propriedade é mais importante que deixar o homem proteger a própria
vida. Ele não pode roubar uma maçã, mas pode morrer de fome na fila de um
hospital. Eis o paradoxo. Claro que o pobre não deve matar o rico ou destruir a
fábrica dele para sobreviver. Mas os próprios meios politicamente corretos,
como greves, protestos, união e propostas de reformas, vão contra a lei
soberana, contra a nossa ‘constituição infalível’.
Bem, não estou discutindo a
pertinência do liberalismo, mas apenas dizendo que ele é utópico. E o
principal, atenção, é a proteção da competição justa, e não da liberdade total
que supostamente levaria a ela. Mas que não leva, nunca. A grande problemática
é que há dificuldade em encaixar as liberdades em seus devidos lugares.
Não há como impedir as ‘falhas de
mercado’: monopólios, competições injustas, poder de mercado. Ou seja, a
liberdade é anulada pela sua base: é utópica a ideia de oportunidades iguais de
competição. Em última instância, o estado anula a competição ao existir como
força coercitiva. Não estou defendendo uma anarquia, pois o homem assistiria à
sua própria selvageria, o que é perigoso, devido às suas imperfeições. Não que
ele seja ruim, ele é apenas plural. E essa pluralidade pode ser encaixada em
uma organização social racional. Mas essa discussão não é a nossa.
A discussão é a controvérsia da
“livre competição” quando o estado impede o ser humano faminto de lutar pela
sobrevivência. Por exemplo, ema mãe com seu filho morrendo nos braços não pode
invadir a UTI de um hospital do SUS. Há uma fila, e deve-se esperar pelo
salvamento da criança. É um apelo sentimental, mas traduz a realidade.
Como eu disse antes, a proposta
não é o miserável ter a liberdade de matar seu patrão e comer a comida dele, caso
consiga. A proposta é que a organização social, no nosso caso o estado, deveria
impedir que um ser humano se visse na condição de lutar, contra outro ser
humano, pela sua sobrevivência. A ‘maravilha’ humana não está no mercado
perfeito, e sim na capacidade do homem de não lutar entre si. A maravilha seria
a capacidade do homem não cometer a autodestruição, através da sua capacidade
de organização social.
Economicamente falando, também
não digo que a flutuação mercantil livre não é benéfica, o argumento de Hayek é
enfaticamente válido. Mas deve ser aplaudido com os olhos bem abertos. As
interpretações devem ser cuidadosas. Realmente a flutuação dos preços consegue
interligar informações maravilhosamente, o mercado encaixa as ofertas nas demandas
como se elas fossem as peças de um quebra-cabeça. Mas a partir do momento em
que o ser humano acredita ser possível um funcionamento perfeito desta
liberdade comercial, ele cai na barbárie. Neste caso, proponho a anarquia, ela
é mais sincera e menos hipócrita.
Este liberalismo utópico ignora
as raízes de nossa sociedade. Ele trata cada ser humano como uma ilha isolada,
independente e igual. Este problema pode resumir-se à lógica: é impossível
criar um sistema isento das externalidades. É como tentar prever o futuro, é
uma aposta no vazio, como se as probabilidades pudessem ser anuladas. Seria como uma concordância geral sobre um
comportamento humano e econômico a ser seguido. Todos nós vivemos o mundo de
hoje e todos nós sabemos que esta sincronia é impossível. Atemo-nos aos fatos
reais, simples assim.
Vivemos um progresso fenomenal
desde o início do capitalismo. Temos curas, inventos, facilidades, maravilhas
tecnológicas, vastidões intelectuais, o ser humano vem se mostrado magnífico.
Agora, o meu questionamento é a desconexão feita entre este desenvolvimento
humano e a dignidade humana. O andamento
perfeito do mercado (no caso, um andamento igualitário, uma competição justa)
uma vez utópico, deve ser construído pela organização humana.
Repito, este andamento ‘perfeito’
não corresponde ao andamento natural da economia e da sociedade, ele deve ser
conduzido por elas. Eis então o jogo de funções que é subvertido em muitas
discussões: atualmente, a organização humana assegura uma competição
deficiente, uma contradição latente e caótica. Atualmente, o objetivo da
organização social humana se esconde sob a suposta função de impermeabilizar a
economia e deixá-la tomar seu rumo natural e perfeito. Mas, na verdade, a organização social humana
(que existe comumente como o ‘Estado’) deveria desviar o andamento natural da
economia para um curso benéfico à humanidade.
O desafio é um animal imperfeito
como o ser humano, conseguir aproximar-se de uma organização cada vez mais
próxima, da perfeita para si. Por mais que a perfeição seja impossível de
atingir, é possível caminhar indefinidamente em direção a ela.
QUAL O PREÇO DA MÃE
Estava eu numa discussão cotidiana sobre liberalismo e intervenção estatal hoje na faculdade. O assunto discorreu na seguinte direção: Falamos sobre a preservação da propriedade e eu argumentei que a propriedade era protegida e que as pessoas não. Por exemplo: Um pobre pode morrer de fome na rua, mas não pode roubar um pão de um rico.
Bem, o liberal argumentou que o pobre podia estudar, trabalhar e comprar o pão... Ridículo. Por mais que isso fosse estúpido, ignorei. Falei então sobre a controvérsia de valores entre a propriedade privada ser mais protegida que o próprio ser humano que não a possui.
Na minha opinião esse é o cúmulo da doença do nosso mundo consumista. Achei ser um argumento fatal. Para completar, perguntei:
- Você consegue imaginar um valor monetário para sua pessoa?
Eis que ele me responde:
- Ah, sim, um bem alto.
Estarrecido, retruquei:
- Então, e a sua mãe, tem um valor de capital para você?
Ele disse:
-Tem, ué...
Fui preso.
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