Lúcio Estanho havia se cansado de passar as manhãs amargas atrás do vidro da janela. O vidro estava rachado e distorcia o mundo que seguia as suas automações do lado de fora da casa sombria. Todos os carros que passavam eram trespassados pela veia que sempre existira naquele vidro. Temeroso, Lúcio observava a rua selvagem e os seus postes amarelados pelo sol. Um ambiente independente, externo, descontrolado, onde a nudez é exposta ao natural desenrolar do mundo. Onde os perigos e as belezas se trombam ao acaso. Onde os homens vagam soltos e o vento uiva desimpedido.
Através dos olhos que coçavam com a luz solar, a mirada de Lúcio era furtiva e aflita. Ele postava-se como um espião à espreita dos tolos. Dessa maneira, durante as longas manhãs, o raquítico rapaz ficava cuspindo morbidamente no vidro. No ritmo da respiração ranhosa, as suas costelas espichavam a pele, sulcando-a, e em seguida ela alisava. Este revelar-se e encobrir-se da magreza de Lúcio ocorriam sob uma triste camisa preta engomada.
Volta e meia Lúcio praguejava contra alguns moços de bigode que passeavam ao lado de cachorros babões, mas nenhum deles percebia os resmungos instrospectos. Diante de tal enfado, não era raro Lúcio soltar berros revoltosos que lhe arranhavam ainda mais a garganta. Esses horríveis gritos sempre faziam o vidro da janela inteiro trincar-se, quase à ponto de explodir. A superfície da janela virava água espumosa, ficando opaca pelas infindáveis rachaduras que então lhe cobriam. Somente após cessarem-se os ecos é que os vidrinhos recuperavam-se, restanto novamente apenas a única e eterna rachadura central. Isso revoltava ainda mais Lúcio Estanho que, desolado, afastava-se correndo.
Da mesma maneira que o vidro sempre cicatrizava-se das rachaduras, findo o grito, as três flores voltavam às suas cores originais, uma vez que tais tempestades sonoras sempre enegreciam-lhes as pétalas. A Senhora Urânia - mãe de Lúcio - era fanática pelas suas três flores, as quais ela regava todos os dias com arguta diligência: um Girassol, uma Margarida e uma Rosa.Três belas flores que enegreciam-se diariamente antes do almoço. Durante a recuperação das suas cores, o trio sempre as confundiam entre si, devido ao atordoamento sonoro. O Girassol se recobrava do medo com as pétalas vermelhas ou brancas, enquanto a Rosa ou a Margaria se viam amarelas. Inevitavelmente e sem razão esclarecida até então, no final de todas as noites as três flores secavam. De manhã, ao raiar do sol, a floricultura trazia um novo trio e recolhia as podres para serem hospitalizadas, o que a Sra. Urânia estabelecera num contrato vitalício.
Como de costume, após a vigília matutina, Lúcio Estanho sentava-se carrancudo na ponta da gigantesca e estreita mesa de jantar. Mesa cujo grande comprimento estendia-se por toda a sala, mas cuja minguada largura era suficiente apenas para um prato repousar. Lúcio aguardava assim a sua mãe trazer a cotidiana sopa fria de ervilhas, muito verde e viscosa. A prática do canto esganiçado, o trio de flores e a fétida sopa de ervilhas formavam as três inabaláveis paixões da Sra. Urânia. A sopa fria era servida pontualmente todos os dias, também para as três flores novatas. Para Lúcio, a maldita refeição só era servida após os exatos 11 minutos que a Sra. Urânia demorava para pentear o seu cabelo - o de Lúcio - , que desgrenhava-se à qualquer irritação.
Durante esses 11 minutos, Lúcio batia incessantemente os talheres na mesa. Por mais que ele nunca houvesse comido nada de diferente em sua vida e não possuisse nenhum motivo para esperar alguma mudança no cardápio, Lúcio sempre se entristecia ao ver a sopa fria, verde e viscosa. E ela ainda era servida estupidamente num prato raso, o que tornava o desalento do moço ainda mais melancólico.
Após as suas expectativas vãs serem despedaçadas pela visão verde, Lúcio exclamava com os dentes amarelos e cerrados:
- Que ódio desta sopa horrível e asquerosa, Mamãe! Como você suporta o seu cheiro, o seu gosto, essa textura viscosa? Não vê que é ela que adoenta suas florzinhas? Um dia morreremos nós, cairemos duros e verdes no chão, de tanto asco! Não vou comê-la de novo, farei a minha própria comida de agora em diante!
Enquanto ele falava, os seus olhos arregalavam-se e o seu maxilar tensionava-se para trás, fazendo ressaltar alguns tendões esticados no pescoço. Sua voz saía fraca e com as sílabas tossidas. A Sra. Urânia escutava os reclames do filho com os olhos lacrimejantes, que piscavam e giravam compulsivamente, sem aquietarem-se em nenhuma miragem tranquila.
Desorientada, ela lamuriava-se em voz esganiçada:
-Oh, meu pobre filhinho, não fale assim comigo, meu coração dói tanto! A Mamãe faria tudo por você, mas as suas mãos são incapazes de cozinhar qualquer outra coisa além das suas queridas ervilhinhas. Não fale assim delas, olhe como elas são boazinhas com você... Por favor perdoe-me e deixe as coisas como estão, não suportaria vê-lo cozinhando sozinho, meu pequenino! Ai de mim, mataria-me! Tente entender sua pobre mãe...
Após engolir em seco as últimas palavras esquecidas, ela tensionava um sorriso estúpido, que esticava o seu rosto cansado.
Insatisfeito, para não variar, Lúcio acabava por ter dó da mãe e cedia às palavras rogadas por ela. Ele não queria comer a sopa de ervilhas, mas muito menos queria cozinhar. Entre os dois desconfortos, escolhia aquele que era confortável à sua mãe esbaforida. Então almoçavam os dois em silêncio, cada um em uma ponta da comprida mesa, sob o olhar das três flores tristonhas.
O dia de Lúcio se estendia tediosamente até a hora de dormir. Ele teclava notas dissonantes no velho e bolorento piano, estourava plástico bolha e, nos seus momentos de medo, escondia-se embaixo das camas. Lúcio tinha muito medo dos barulhos que vinham da rua habitada e, principalmente, dos ventos que silvavam pelas frestas das raras janelas da casa.
Os Ventos do Sul traziam ar fresco e pássaros cantarolantes, levando de volta consigo as folhas mortas e a fumaça dos automóveis. Embora comuns, muitas pessoas tratavam-nos como simples ir e vir dos ares, ignorando as velhas lendas sobre as distantes terras meridionais de gases misteriosos. Lúcio era o único cidadão que urgia de medo ao escutá-los: Desde que nascera ele soubera que o seu pai havia sumido em uma viagem ao Sul, deixando sozinha uma esposa grávida e cacarejante. Tinham o pai então como morto. Era um navegante que enfrentava os medos nos mares azuis e misteriosos do Sul e que subitamente sumira com sua coragem e seus olhos frescos. Por isso, ao sentir os Ventos do Sul batucarem na sua janela rachada, Lúcio ficava a gemer seus 34 anos embaixo da cama, suando pétalas negras e cospindo orações engasgadas.
Os ruídos vindos da rua e dos ventos alternavam-se com os cantos insuportáveis da Sra. Urânia. Ela perdera a voz da sua juventude de banhos quentes ao envelhecer amargamente nos banhos frios. Sua voz ficou estridente, esganiçada, como um metal enferrujado arranhando um vidro fosco. Sua desafinação era tamanha que, enquanto soasse, as janelas trincavam e as três flores enegreciam. O pobre Lúcio também era corroído pelos cantos maternos, que o faziam ficar batendo a cabeça nas paredes. Mas batia com pouca força, pois tinha medo de machucar-se.
Quando dormia, sob o retrato sorridente e distraído do pai, Lúcio Estanho padecia de pesadelos. Os temas destes maus sonhos limitavam-se aos ventos do sul e à rua atrás da janela. Nos primeiros ele era molestado por mares bravios, e na segunda ele derretia sob o sol escaldante, aos olhos ameaçadores de transeuntes. Lúcio acordava várias vezes ao longo das noites. A cama coberta de pétalas negras e as costelas ofegantes a esticar os velhos pijamas infantis.
O Estouro
Veio o estouro quando a agonia acumulada em Lúcio Estanho chegou ao seu limite. Pela primeira vez uma bela garota passou pela janela de Lúcio, radiante, bem diante dos olhos do pobre diabo. Ele tentou fazer-se notar, mas não pôde, estava preso em outro mundo, incomunicável. Transbordou pétalas negras infindáveis.
Eis que a primeira vontade de Lúcio de trespassar o vidro faiscou. Surgiu uma pequena chama em seu pensamento. Ele então começou a sentir uma grande repulsa pela vida na casa. Odiava o olhar estúpido da mãe ao servir-lhe as odiosas sopas frias e sentia o julgar bigodudo do retrato do pai reprovando a sua inércia covarde.
Os dias começaram a ser mastigados mais lentamente por Lúcio Estanho, engoli-los igualmente doloroso. Os pesadelos tornavam-se mais raros e muitas vezes o sono não vinha. Cada vez mais impaciente, Lúcio destratava a mãe e andava de um lado para o outro sob o chão bolorento, pensando como sairia de casa. Após mendigar coragem nos lençóis, certa noite Lúcio deixou preparada uma mochila com algumas roupas e com todo o dinheiro que tinha.
A única renda da família provinha de uma pensão paga pelo governo mensalmente, devido à morte do pai. A Sra. Urânia podia então fornecer uma pequena mesada ao filho, pois não gastavam muito. Lúcio, por sua vez, não gastava nada, pois não haviam vendedores nos corredores da sua casa. Tal fato lhe rendeu algum dinheiro após 34 anos de ajuntamento.
Fugiu como um rato na noite, tentando não fazer barulho. Ao abrir a porta, os ventos noturnos resvalaram em sua pele pálida. Seu corpo inteiro gelou, pétalas negras pingavam na soleira da porta. Lúcio sentiu suas pernas bambearem frente à escuridão da rua, que em algumas horas seria fustigada pelo medonho sol. As árvores chacoalhavam ao longo da calçada e suas folhas secas eram carregadas para longe.
De súbito, Lúcio foi arrancado da sua tontura por um grito esganiçado. Com uma expressão esticada e aterrorizada, a Sra. Urânia flagrava o filho diante da porta aberta. Ao encarar os olhos ensandecidos da decrépita, Lúcio deu um passo à frente, em direção à rua. Aos berros, a mãe pôs-se a correr loucamente em direção ao fugitivo. A reação de Lúcio foi bater a porta e sumir na noite.
Caminhou depressa e ainda olhou para trás, vendo a casa fechada, imóvel, silêncio. O susto fê-lo esquecer-se momentaneamente dos medos anteriores: ventos sulistas, ruas, sóis. Caminhou com seus passos fracos e inconscientes por tempo indeterminado, até o dia começar a clarear. Com 34 anos de energias acumuladas em seu esqueleto, Lúcio não sentiu sono.
Seus olhos fugidios observaram as primeiras empregadas domésticas saírem a passos gordos para comprar pão. Olhou temeroso os primeiros motoristas sonolentos e as crianças vibrantes que iam às escola. Distraído com as colocações internas acerca das novas visões que ele só vira antes por imagens ou pela janela, Lúcio planejava as suas futuras conquistas. Estaria sem medo, interagindo com todos os transeuntes, teria colóquios sorridentes e atraentes com todos.
Mas ao olhar para fora de si, Lúcio mal conseguia olhar as pessoas, com medo de ser percebido. Cada vez que os olhares ameaçassem cruzar-se, Lúcio abaixava os olhos, dentes batendo de apreensão. Por mais remota que fosse a possibilidade de lhe encararem a visão, graças à sua desagradável aparência, Lúcio temia.
Espalhafatoso era Lúcio em seu andar, dava grandes giros para desviar-se dos demais pedestres, temendo o esbarro. Também ensaiava mesuras exageradas, arqueava seu corpo ao menor farfalhar das roupas alheias, num pedido de perdão servil. Finos ganidos saíam do fundo da sua alma à cada surpresa que, invariavelmente, trazia um sobressalto. Um latido, uma buzina, uma porta aberta de repente, um apressado, uma palavra dirigida a alguém perto de Lúcio – e ele achando que era consigo. Todas as manifestações vitais da sociedade que germinava por ali assustavam-no. Lúcio esforçava-se para manter a calma. Não conseguia. Seu peito gelava-se constantemente e sua pele formigava ao menor rumor. Vez ou outra brotavam pétalas negras na sua testa ou nas suas tossidas roucas. Grossas bagas de suor frio deixavam rastros na face branca de Lúcio, enquanto seus olhos irrequietos insistiam um movimento atento e fugaz.
O Sol ainda não ganhara as ruas, a única iluminação provinha do céu, que esbranquiçava-se lentamente, esfumaçado. Lúcio sentia muita fome e já fraquejava, seu fôlego ia se esgotando diante das ruas cada vez mais movimentadas. Bambeante, ele atravessou a porta de uma padaria atraente que surgiu. Sentou-se vacilante no balcão com a face entre as mãos, aguardando a sua condição física retornar. Uma intensa vergonha tomou conta do seu peito magro, a sua apresentação lhe preocupava mais do que o seu iminente desmaio. Entrara pela primeira vez em um estabelecimento comercial e nem mesmo postura majestosa tivera. Fora, pelo contrário, medíocre em sua primeira exibição ao mundo. Nada de olhares admirados e acolhedores vindos dos demais clientes. Nada de sorrisos tranquilos e apresentativos por parte de Lúcio. Também não houveram colóquios com recém-conhecidos ou informes sobre as novidades a serem descobertas pelo garoto novato. Lúcio nem sequer erguera a fronte para tentar saciar suas expectativas.
Após alguns minutos ele sentiu seu físico melhorar. Ergueu-se e observou como funcionava o atendimento para o café-da-manhã: as pessoas serviam-se em um buffet e levavam o prato para ser pesado. A bebida era no balcão, face a face e com vozes. Lúcio seguiu esta ordem, contente por não comer ervilhas pela primeira vez na vida. Suas mãos trêmulas contribuíram para que derrubasse uma colher de açúcar e derramasse o café. O líquido queimou-lhe os dedos, e ele derramou uma lágrima em forma de pétala negra, acompanhada por um soluço choroso.
Equilibrando a bandeja com dificuldade, o rapaz aguardava a sua vez na fila do caixa. Curioso, olhou ao redor e para os companheiros de fila. Impassíveis, esses companheiros olhavam apenas em frente. No caixa, uma moça de olhos verdes e rosto encantador atendia os clientes, que eram chamados pela sua voz doce:
-Próximo...Bom dia, como vai ? São 5 cinco moedas senhor, obrigada, tenha um ótimo dia! Próximo... - Lúcio escutava pasmado os adocicamentos daquela voz. Distraiu-se.
Quando chegou a sua vez, ele assutou-se ao ouvir o "Próximo" tão doce vindo de tão perto, do pé do seu ouvido. Adiantou-se num pulo, postando-se com a bandeja no balcão, num súbito lapso de vividez. Olhando pela primeira vez nos olhos de uma companheira de espécie, Lúcio sentia seu interior aquecer-se e vibrar. Ainda mais em olhos como aqueles, verdes , belos, donos da mais embriagadora beleza. Lúcio enfim estreiou um sorriso em seus lábios virgens, o temor rebaixara-se. Disse:
- Aqui está... - E aguardou atento a reação dos olhos verdes. Nada ocorreu. Ela parecia olhar ao longe. Lúcio então percebeu que ela jamais encarara seus olhos. Os olhos verdes miravam algo que trespassava a pele pálida de Lúcio, quase transparente. Receoso por ter sido ignorado, ele arredou timidamente a bandeja alguns centímetros para frente, como um cão que pede comida. Lúcio já encolhia novamente o corpo e já sentia os tremores anunciarem o seu retorno.
Disse enfim num gaguejo falho:
-M-m-moça? - Olhos distantes:
-Próximo?! - Disse ela, com a voz doce e os olhos verdes a mirarem paisagens para além da silhueta de Lúcio Estanho.
Sem reação e com o coração paralisado, o nosso frágil homem foi empurrado por trás. O movimento não foi nem brusco e nem educado, apenas seguiu um fluxo natural, deslocando Lúcio para o lado. Um homem de bigode e suíças tomara a frenteira e já pesava o seu prato, sendo agraciado pelo olhar esmeralda da moça.
Lúcio teve vontade de chorar. Seu sangue desceu. Apoiando a bandeija no balcão ao lado, sentou-se boquiaberto. Fora totalmente ignorado, como se houvesse um grande pacto entre todos ali: “Lúcio Estanho não existe”. Uma raiva foi surgindo nas suas entranhas, os resmungos mordiscavam seus lábios.
Com os olhos faiscantes, Lúcio começou a mastigar os seus pãezinhos brutalmente. Bebia o café fumegante em largos goles, que volta e meia escorriam pelo seu queixo franzino, misturando-se com algumas pétalas negras. Ríspido, ordenou à garçonete do outro lado do balcão que lhe desse um guardanapo. Enquanto a raiva crescia nos olhos injetados de Lúcio, a mulher gorda permanecia muda, inerte e distante. Lúcio apertou a língua áspera entre os dentes gastos pelo ranger. E, contraindo todos os músculos, disse, numa calma forçada:
-Senhora? - Em resposta obteve o silêncio e a sensação do ridículo.
Enquanto Lúcio ajeitava a sua perplexidade, o mesmo homem que roubara o seu lugar na fila também pediu um guardanapo à funcionária. Ela sorriu com palavras graciosas e entregou para o homem alguns papéis brancos.
Antes que o homem pudesse agradecer, Lúcio vociferou, ignorando todos os seus temores:
-Vaca! Está maluca? Quem você acha que é, vadia? Olha o que faz com um cliente! Me ignora completamente, atende este outro crápula que se acha importante! Você está fodida!
Ao vomitar essas palavras, Lúcio Estanho esganiçou a voz e levantou um dedo magro e revoltoso. Seus cabelos arrepiaram-se e as pétalas negras escorreram... Mas a insolência durou pouco.
Lúcio calou-se e arregalou os olhos amendrontados quando o homem de bigode virou-se bruscamente na sua direção, como se estivesse em plena resposta furiosa. Lúcio fechou os olhos e ergueu as fracas mãos para proteger a face. Mãos que nunca foram e nem serão capazes de protejer olho algum do arroxeamento.
Não houve improprério nem soco. Sentindo-se no vácuo do tempo, Lúcio abriu os olhos com dificuldade, peito gelado, tremedeira. Viu que o homem risonho apenas pegava o pote de açúcar ao seu lado. O homem estendia o braço musculoso em frente ao nariz de Lúcio, sombreando os pãezinhos como se não incomodasse ninguém.
Após invadir tranquilamente o espaço ocupado pelo outro e servir-se do pó doce, o bigodudo continuou feliz na sua refeição. A servente agora lixava as unhas distraidamente e cantarolava a paz. Por mais que Lúcio tremesse de medo do homem forte, o seu desorientamento quanto ao andamento dos fatos o fez ignorar alguns receios. Ele perguntava-se se estava louco ou se era um fantasma perdido no limbo. Haveria algum acordo entre as pessoas dali para fingirem que não o enxergavam, só para sacaneá-lo?
Lúcio percebia a sua existência, mas não era correspondido. Sentia-se vazio, doído. Olhou para as suas mãos feias, abrindo-as e fechando-as rapidamente. Mordiscou os lábios e piscou repetidamente os olhos impacientes. Após balançar a cabeça, observou o que ocorria ao redor. O mundo seguia em seu ritmo normal, comiam, pagavam, notavam-se, conversavam, iam-se. Nada na padaria sugeria o sussurrar subterrâneo de um complô contra o insignificante Lúcio Estanho. Aliás, ele era demasiado ignorável para ser o venerado e principal alvo de tão bem bolada armadilha. Lúcio era demasiado nulo, desconhecido, um zero à esquerda.
Lúcio resolveu arriscar uma nova tentativa. Mais com curiosidade do que com o constante medo. Perguntou as horas para o senhor que lia um jornal ao lado com uma grande e circular barriga. O homem virou a página amassada e continuou sua leitura, impassível. Lúcio agora decidira ir até o fim. Começou a falar nervosamente no ouvido do velho, condenando a conduta insolente dele. A reação do velho foi passar outra página, mirando a seção colorida dos esportes. Com as mãos suadas e crispadas, Lúcio agarrou o casaco do senhor e começou a sacudi-lo com violência, urrando sílabas descontroladas. Sua voz saiu arranhada e sufocada, como se sumisse por falta de ar. As feições de Lúcio tensionaram-se, sua pele ganhou um efêmero rubor. Enquanto o corpo do velho agitava-se molemente, o jornal farfalhava. Ofegando, Lúcio largou o casaco marrom e curvou-se esgotado. Nada surtia efeito. Com as roupas amassadas, o velho prosseguiu sorrindo e lendo o seu jornal.
Lúcio Estanho agora corria em direção à porta de entrada - e saída -, fazendo grande alvoroço, embora ninguém reparasse. Tropeçou em várias moças e por fim jogou seu corpo frágil contra a porta, que escancarou-se ao sol. A luz solar fez os olhos de Lúcio sentirem câimbra. Tapou-os com o braço, ganindo, e seguiu cambaleante, deixando um rastro de pétalas negras. Caminhou por muito tempo sentindo-se ardido, perdia o fôlego, lamuriava-se como um cão sem dono.
Esta foi a manhã de Lúcio Estanho, um invisível alérgico a sóis, que caminhou, temeu e tremeu antes mesmo do seu primeiro almoço fora de casa.
Penetrou em uma praça. Sob a sombra de uma árvore, o estômago do nosso miserável fugitivo roncava solitário. Pelo menos o sol não mais fustigava a alvíssima pele de Lúcio, que já arroseava. Alguns mosquitos rondavam a sua testa suada. Grossas madeixas de cabelos negros juntavam-se com a umidade, pregando na pele em desenhos escorridos. Lúcio recordava-se do grito materno ao perceber a perda do filho. Sentia calor por fora e frio por dentro.
Após o descanso, Lúcio pôs-se de pé com dificuldade. Estava fatigado, caminhara como nunca. Do quiosque da praça vinha um cheiro apetitoso de comida requentada. Desviando-se das poças de sol no chão, o cabisbaixo Lúcio traçou uma rota ensombreada. Haviam alguns poucos adultos de mãos dadas com os filhos a comer cheirosos quitutes. Ao ver as famílias unidas Lúcio deixou os seus olhos pesarem e ficou imaginando-se ali, agarrado aos seus próprios pais, seguro em mãos fortes. Ele então balaceou a cabeça para afastar tais especulações amargas.
Constatou que teria que enfrentar o terror das filas caso fossse comer as comidas cheirosas. Caiu em total desalento. Seu coração sufocava-se naquela impotência, onde haveria alguma solução menos dolorosa para a sua fome?
Na sua inquietez, Lúcio conseguiu ver uma criança abrindo um barulhento pacote de salgadinhos industriais, que retirara de uma máquina. Lúcio chegou perto do trambolho. Aquela comida, que saía como mágica, não cheirava. Mesmo assim a criança deliciava-se. Isso bastou para que ele iniciasse a sua empreitada para conseguir um salgadinho inodoro.
Diante da máquina, Lúcio contemplava a superfície envidraçada de moldura negra. Ele tentava entender o estranho mecanismo daquele monolito perdido, proveniente de uma civilização até então desconhecida.
Da mofada biblioteca do seu pai, Lúcio só lia os livros de figuras luzentes e coloridas. As poesias empoeiradas eram tacitamente ignoradas. Ele observava aquela multidão de letras e palavras sem salivar. As imagens que eram montadas nos novelos imaginativos de Lúcio não faziam sentido para ele: Homens fazendo amor com dríades - O amor se faz? Aliás, o que era o amor para Lúcio? - mulheres aladas costurando rios de lágrimas que caíam dançando as canções das velhas violas, tocadas por mágicos deprimidos que viviam no fundo do mar, mágicos que nas horas vagas dobravam papéis de seda fazendo pequenos corações, que subiam, dourados, junto com as bolhas deixadas pelos cardumes em festa. Cardumes que vinham de Pasárgada com as boas novas acerca do rei, velho amigo do mágico, e que a ele traziam os alcalóides, e ao rei levavam as notas de uma valsa, como presente de gratidão. Valsas embaladas por sereias e outros seres mitológicos sorridentes, que nada tinham de monstruosos, e que viviam lançando confetes de açúcar pelas colinas da Eurásia. Seres que contavam as horas através do correr das nuvens algodoadas, nuvens que viravam carneirinhos fugidios, salteando de estrela em estrela rumo ao sol...
Lúcio nada via nessas desconexões desvairadas e tinha-nas por loucuras para entreter crianças tolas ou outros loucos. Para ele as novidades não tinham o sabor inspirador das verdadeiras novidades, elas mais o embaraçavam do que o entretiam.
Assim, Lúcio ficou a metrificar a réplica de geladeira, matutando como faria para obter o seu lanche. Alguns botões retangulares com desenhos e escritos coloridos, orifícios e luzes cintilantes, além de um visor que nada dizia. Entendendo mais ou menos onde que enfiaria o dinheiro, Lúcio observou impacientemente todas as suas notas serem repetidamente engolidas e regorjitadas. Após tentar a grande maioria delas, ele já acumulava fome e impaciência. Um emaranhado que pesava tanto sobre seus ombros que fazia os rebuliços virem acompanhados de pétalas mais negras do que nunca. Lúcio já cospia no vidro da máquina. Largou as notas velhas no chão, que se esparramaram como folhas secas, e começou a dar pequenos socos surdos no vidro, mas a máquina o ignorava. Gesticulava de modo aflito para todos as crianças e adultos em volta, a se divertirem com os quitutes de mãos dadas. Ninguém respondia, ninguém percebia as súplicas.
Com os olhos jorrando lágrimas e pétalas negras, Lúcio Estanho enfim sucumbiu à loucura daquela situação. Numa explosão de desespero e angústia, nosso herói maltratado foi-se em disparada. Tropeçava, fraquejava, ofegava, mas desta vez suas pernas não cediam.
A Rebobinação
Lúcio correu impetuosamente de volta para casa, com a mente em convulsão. Escassez de lógica e excesso de humilhação. Precisava da sua costumeira casa, que sempre estava nos conformes da razão. Precisava também da sua mãe para lhe pentear o cabelo e alimentar a sua tripa faminta. Precisava demais de tudo.
Em sua desgraça, Lúcio aproximava-se de casa. Ou melhor, do lugar onde outrora fora a sua casa. Ao invés de cair morto ou de entrar em pânico, ele sentiu apenas a sua mente esvaziando-se, fruto da mais intensa perplexidade já sentida por homem algum. Vivia uma fantasia, algo de estupendo, um passe de mágica ocorrera, sombras paranormais cerceavam a vida de Lúcio. O mundo real lhe enganava, pois não havia outra explicação para o sumisso da antiga casa de Lúcio.
Restava um lote vago com um gramado mal cuidado, muito escuro. Árvores retorcidas e feias ocultavam mais ainda o seu interior, já ofuscado por uma cerca de madeira. Lúcio seguiu o instinto, abrindo um portão enferrujado e rangente. Não raciocinava mais, aceitou a condição onírica de suas presentes vivências, apenas contemplava o que lhe ocorria com atenção.
Pisou sobre a grama feia e avançou pelo misterioso lote, contornando as árvores negras e os seus galhos pontudos. Em poucos instantes os barulhos urbanos já eram inaudíveis bosque adentro. Eis que uma clareira atraiu o caminhar de Lúcio. Em meio àquele lugar misterioso e escuro, um feixe solar destacava um lugar que parecia-lhe familiar, embora desconhecido. Sentiu um 'déjà-vu' intenso. As árvores e seus braços abriam como cortinas uma cena silenciosa e sepulcral. Duas pedras faziam o temido papel de duas lápides, já judiadas pelo tempo, velhas.
Sombras envolviam o coração de Lúcio, estranhas sensações denunciavam o quão macabro fora o caminho percorrido pelo rapaz. Um suspense indagava o que mais viria à partir daí, nesta inexplicável sequência de fatos. Um homem normal não suportaria tamanha icógnita, tamanho maltrato ao nosso medo e aconchego cotidiano, e Lúcio Estanho era demasiado normal em suas fraquezas humanas, demasiado medíocre em sua insignificância. Temia o mundo antes mesmo destas aberrações tirarem-lhe a sanidade. antes mesmo de ter nascido. Sempre acovardava-se e chorava em busca de ajuda e atenção.
O que será então que permitia as suas perninhas, que mais pareciam palitos quebradiços, manterem, no extremo dessa situação, o seu estúpido corpo de pé?
Afugentamo-nos então para as outras explicações que sumiam-se dentro de Lúcio. É certo que ele não pensava nada mais, mas é de absoluta certeza, para o nosso reles conhecimento de observador, que Lúcio certamente estava sentindo algo. Havia ele descoberto algo esclarecedor? O que estava escrito naquelas lápides, que tanto o adormecia em sonambulismos mudos? Mas de nada estas especulações adiantarão se não prosseguirmos com a descrição do que Lúcio Estanho então vivia e observava em seu transe.
Em uma das lápides, sob datas antigas de nascimento e morte, estava escrito: Dolores Urânia. E, abaixo, um epitáfio com os seguintes dizeres: "Aqui jaz a mais atenciosa Jardineira e Mãe já conhecida, cujos cuidados nunca foram demais. Fechava as janelas, mas nunca as trancava. Esquecia do sol, mas sempre lembrava-se de regar."
Diante desta lápide estendia-se uma sepultura de terra acomodada, com uma grama crescida, verde e vistosa, distoante do jardim entristecido. Brotadas sobre a grama estavam as três flores, mais vivas do que nunca, o Girassol dourado e enorme, a Rosa, vermelha como um rubi e com as pétalas semi-abertas, como se dessem um beijo e, por fim, a Margarida, a mais humilde por natureza, com incontáveis e finas pétalas de uma brancura ofuscante.
O trio estava encantador, dando grande beleza àquela melancolia. Ao lado, fazendo dupla, uma outra sepultura tinha o seu lugar. Havia uma outra lápide semelhante e uma cova vazia. Não estava claro se a cova já fora preenchida e depois violada ou se nunca dera lugar a nenhum corpo. Atrás deste misterioso buraco, a lápide informava o nome: Lúcio Estanho de Urânia Ventura. A data de nascença era obviamente mais recente do que a da lápide da Sra. Urânia, mas a data do óbito era a mesma - o que torna os fatos ainda mais obscurecidos.
Descendo um pouco mais os olhos, lia-se a seguinte frase, deixada à memória póstuma do ausente ocupante daquela cova: "Aqui jaz a Flor que não descobriu que 'nem só de Sol e nem só de Chuva' vive uma flor, aqui jaz a Flor que nunca tentou abrir a janela que nunca esteve trancada."
Lúcio permaneceu em pé em pose reflexiva durande os mais longos minutos da sua vidinha. Não podendo representar em palavras tal demora no correr dos ponteiros, me limito apenas a dizer que tal delonga ocorreu, e tal sensação de atemporalidade será privilégio apenas de Lúcio Estanho de Urânia Ventura, o único momento desta espécie que lhe foi reservado até então, durante as suas tortuosas andanças.
O Nascimento
Distanciamo-nos agora do nebuloso interior do rapaz e dos seus pensamentos mais intímos. Atemo-nos apenas à imparcial visão de suas próximas vivências.
Diante do seu próprio túmulo oco, Lúcio tombou de joelhos, sem mais tremer, sem mais chorar pétalas negras. Com as duas mãos nas bordas da fenda, ele projetou a cabeça sobre o buraco terroso. Havia apenas um fundo escuro, onde a vista sumia. Um buraco negro que se esticava infindavelmente para baixo, bem no lugar onde deveria estar o cadáver de Lúcio apodrecido. Ele permanceu nessa mesma posição, prostrado, até o susto.
Um ataque violento de tosse surgiu em nosso anti-herói. Barulhos estrondosos vinham de dentro de seu peito. Os sons pesados pareciam arrancar pedaços de seus brônquios. Seu corpo arqueava-se em loucos espasmos, seu pescoço contraía-se em ânsias de vômito que surgiam sem parar. O engasgo foi crescendo e das tosses sairam borrifos sanguíneos.
Eis então que algo estranho foi regorjitado e preencheu a boca do agonizante, amordaçando-no. Lentamente, os movimentos peristálticos empurraram uma monstruosa rosa negra para fora da boca de Lúcio Estanho. Surgiram primeiro as grandes pétalas pretas, pingando sangue e baba. A superfície da planta, de brilho metálico, mortificava qualquer olhar inocente.
Com a ponta dos dedos segurando a corola da planta, Lúcio puxou a flor que paria. Grandes espinhos reluziam, causando a dor e o sangue daquele estranho nascimento. Um fedor forte tomou conta do ambiente, deixando todos nós com uma leve dor de cabeça. Enojado, Lúcio contemplava a sua filha com estranheza. Após largá-la, ele observou calmamente a rosa negra despencando na sua cova.
Enquanto isso, a sua face foi limpando-se da expressão de asco e dor. Após esse alívio envolto em tenebrosas significações, Lúcio ateu-se em seus quatro apoios, tal qual Napoleão perdera uma antiga guerra. Recalcitante, ele contemplava o túnel vertical que subtraiu-lhe a enigmática Rosa negra. Era noite, túnel abaixo, e desconhecidas criaturas escondiam-se do sol e bebiam fumegantes petróleos para energizarem-se, todas cegas e roucas, na constante vigília pela divindade-mor, a lampejante Rosa Negra.
Mas Lúcio não temia criatura alguma, por mais dentuça que fosse. Também não preocupava-se mais com quais belezas femininas poderia topar ao volver a cabeça para o mundo ensolarado. Entediado com aquela medonhice abismal, Lúcio Estanho pôs-se de pé. Não sentiu as dores do seu corpo cansado, muito menos ganiu sobre seu incerto destino. Com os dois finos dedos da mão direita, brincava com seu lábio inferior, investigando a sua maciez molhada inconscientemente, tal qual um bebê.
Nesta divagação observava a margem engramada do sepúlcro que afundava-se logo à frente. Viu algumas formigas carregando folhas muito superiores a elas em tamanho. Viu as gotas de orvalho fresco portarem-se como bolhas de sabão persistentes em viver, lutando pela ligadura das moléculas de sua frágil membrana ensaboada.
Em tal abstração infantil, Lúcio absorvia pequenas sutilezas com seus olhos já não mais injetados como antes. Distraiu-se enfim dos perigos sombrios que maquinavam no abismo. Lúcio apenas seguiu o seu caminho de volta. Com um comportamento singelo que nunca experimentara antes. Não se deu conta desta repentina despreocupação, embora a sentisse dos pés à cabeça. Atrás de si ficava uma Rosa fétida, à sua frente abria-se a cidade.
A Redenção
Ao emergir das sombras das árvores, Lúcio sentia o suor juvenil umidecendo-lhe as roupas engomadas. A face magra e pálida continuava feia, mas mesmo assim ergueu-a em direção ao Sol, cuja luz chapava a pele branca. Nessa posição, Lúcio abriu os botões das mangas e subiu-as até a altura do antebraço, revelando os pêlos negros e ralos sobre a carne branca e franzina.
Sentindo-se mais à vontade para mover-se, as mãos subiram e agitaram os cabelos pretos, para arejar a cabeça e despregar os fios suados. O estabelecido penteado dispersou-se pela primeira vez, extirpando essa crônica imposição e desgrenhando-se livremente, assumindo o arranjo que mais lhe convinha. Alguns fios escorriam preguiçosos, uns uniam-se aos outros com carência, alguns erguiam-se corajosos, os curiosos investigavam brilhos oculares ou grutas auditivas e, ainda, uns sumiam, com medo, no escondedouro de grupos capilares mais fortes.
Uma aura serena irradiava do corpo desengonçado de Lúcio, um fenômeno inédito, trantando-se desta estranha criatura. Tranquilo, em seus passos invisíveis aos outros, Lúcio distraía-se com o mundo exterior. Não preocupava-se com o olhar dos homens de bigodes com seus cães encoleirados, e muito menos ligava para o julgamento das impetuosas fêmeas de corpos violonizados. Pelo contrário, Lúcio acomodava-se bem à sua condição oculta.
Divertia-se, sozinho, com as mil possibilidades que um homem invisível desfruta. Comportamentos indiscretos e ao mesmo tempo isentos de atenção lhes eram permitidos. Decotes atraentes podiam ser contemplados, fazia caminhadas equilibristas sobre o meio-fio, piruetas, interações bobas com o ambiente e outras cantigas, caretas e brincadeiras. Atrevimentos típicos dos espelhos dos banheiros.
Feliz andava Lúcio, e não menos feliz ele ficou quando um caminhão encerrou as suas lúdicas experimentações. Caminhando na já descrita espiritualidade, Lúcio não percebeu e nem quis perceber o sinal vermelho para os pedestres. O caminhão também não percebeu Lúcio Estanho à frente. Não freiou em sua carreira cega. O atropelado também não teve tempo de sentir susto ou dor. Assobiava até.
Morreu enquanto abria os botões frontais da sua camisa, desejoso em sentir o calor solar em seu peito nu. Chegou a sentir um pouco.
O impacto fez o vidro do caminhão rachar-se no meio, abrindo uma cicatriz que jamais se fecharia. Nuvens rapidamente tamparam o sol. O estampido fez-se ouvir em toda a rua, como uma trovoada. Todos homens e mulheres cinzas viram, enfim, o pequeno corpo de Lúcio, bem no momento em que a sua vida se foi.
O caminhoneiro freiou após o susto. O som foi muito mais alto do que imaginaria-se para tão insignificante corpo humano. Na lataria também cinza do veículo escorria um borrifo de sangue, vermelho-vivo, radiante. O corpo jazia estatelado no chão. Um aglomerado cinzento e cretino formou-se em torno do morto. Olhos amendoados ainda abertos, cujo brilho ninguém teve coragem de cerrar. Fofocas e murmúrios assombravam a típica situação urbana em seu cinzento.
Mas, antes das primeiras sirenes começarem a soar, a multidão assistiu atônita ao místico desenrolar da tragédia.
Raios solares atravessaram a pesada névoa. Silêncio. As peles quentes dos curiosos renovaram as suas sensações esquecidas. O corpo inerte e o filete de sangue ganharam cores fortes. Atenção, apreensão. A multidão começou a perceber coisas estranhas.
Enfim, como se segurasse o ar há tempos, os céus deixaram cair uma forte ventania. Eram os valentes Ventos do Sul. Remotas correntes aportavam na cidade cinza, trazendo os odores brandos e livres do Sul. Pássaros, há muito ausentes, refulgiam nos céus azuis. As nuvens foram repelidas para longe. As roupas esvoançavam, transmutando variadas sombras moldadas pelo sol brilhante. A multídão perdia o seu cinza e sentia, impressionada, os calafrios e os calores que misturavam-se em sua pele.
Ninguém reparava o impressionante fato que sucedia no centro da roda. O motivo daquela congregação humana, um morto, ficou ligeiramente esquecido diante das preciosas variações que o ambiente sofria. As roupas de Lúcio também farfalhavam ao vento e, resvalada por elas, a sua alvíssima pele iniciava uma assombrosa metamorfose. As primeiras testemunhas do inaudito acontecimento perderam a voz. Olhos vidrados, o sangue dos mais fracos desceu. Aos primeiros alertas agitados, as cabeças, uma por uma, voltavam-se para o fenômeno que encaminhava-se.
A Liberdade
Como se estivesse rachando-se, a pele de Lúcio infestou-se de frestas. Estas, por sua vez, ludribriaram os espectadores, ao ganharem alto-relevo, assimilando-se então a exóticas escamas moles. O vento agitava com força estes pequenos pedaços de pele soltos. Tremulavam como pequenas bandeirinhas.
Boquiabertos, os espectadores desacreditavam em seus olhos cinzas. Cores surgiram: Amarelo, Vermelho e Branco. O vento uivou, insistiu. As mágicas peças tornaram-se acreditáveis até aos olhos mais preconceituosos. Uma atmosfera mágica vultuou-se, sonhos tornaram-se realidade. Mundos loucos e duvidosos faziam sentido. O espetáculo ganhou as suas devidas cores e fez verterem as lágrimas dos céticos. Para os cegos cidadãos, aquele morto como se houvesse despencado do céu. Este mesmo morto, nosso conhecido Lúcio Estanho, foi então imortalizado nas memórias dos cidadãos cinzas. Um anônimo, mas também um semi-deus, um mito.
Foi o primeiro cadáver humano a desfazer-se em centenas de pétalas. Pétalas Vermelhas das Rosas, Amarelas dos Girassóis e Brancas das Margaridas. Elas despregavam-se tal qual adesivinhos multi-cores, do que antes era o corpo de Lúcio Estanho. Os Ventos do Sul começaram vagarosamente, arrancando, com muito esforço, algumas poucas pétalas. Uma por uma, o despregar delas acentuou-se. Um belo redemoinho tricolor subia aos céus, ventos ascendentes carregavam aquele sonho para longe. Algumas pétalas escapuliam e caiam sobre os embasbacados bservadores, mas logo eram novamente puxadas pela corrente de ar. E o turbilhão subia.
Este fantástico fato jamais pôde ser comprovado. Ninguém soube o nome do homem que ao morrer dissolveu-se em pétalas vermelhas, amarelas e brancas. Muitos duvidaram dos seus próprios olhos e seguiram com os seus passos cinzentos. Alguns outros endoideceram. Outros passaram a expelir pétalas negras pelas ventas. Houve também, por alegria, os bons exempos, que coloriram-se e partiram, serenos, para resolverem assuntos mais interessantes do que os de sempre.
Nós jamais saberemos se foi o próprio Lúcio que escolheu a morte, abrindo mão do seu antes tão precioso e protegido corpo, ou se foi o novo cheiro da liberdade que lhe estonteceu a constante preocupação e, consequentemente, tirou-lhe a atenção das ruas.
Há ainda a delirante hipótese de que ardilosos feitiços lançados pelos Ventos do Sul tivessem armado toda a cena. Mas nada disso é certo, tudo é possível.
Só tenhamos, enfim, uma única certeza. A de que o nosso herói foi buscar a sua liberdade em um novo lugar. O rumo de Lúcio Estanho nós já bem sabemos: O Sul.
Fim