domingo, 15 de janeiro de 2012

Um outro pequeno conto


Até que eu gosto deste Beto

Mal havia chegado à cidade e a Carminha ficou sabendo do tal do Beto, como qualquer novata em Ouro Preto. O Beto era famoso, todas sabiam dele e todas o desejavam. A Carminha era esperta, ou pelo menos achava que era. Depois de ouvir tantas sirigaitas falando do sujeito, a recém-chegada cravou no seu inconsciente que ia laçar ele, que ia arrebatá-lo de jeito. Seria uma vitória se ela conseguisse ser a primeira mulher a fazer alguma diferença na vida daquele homem tão vislumbrado. Ela decidiu conquistar o intrépido Don Juanito.
Por fora o Beto era o típico boa praça, sorriso de lado, um chapéu panamá branco e conhecedor de todos os garçons velhacos do centro. Só que por dentro esse Beto era um babaca, do tipo de sujeito que seduz uma garota apaixonada, lambuza o cabelo dela e filma tudo, semanalmente. Poucos conheciam este lado do Beto, só os seus verdadeiros amigos. Mas esses verdadeiros amigos nunca foram vistos por ninguém. Provavelmente porque todo mundo achava que era o melhor amigo do Beto, mesmo não sabendo nem o seu sobrenome. Era porque o bom moço sempre papeava com alguém em cada esquina, e de tanto perambular por aí, acabou colecionando inúmeras conversas com os andarilhos locais.
 As pessoas adoravam contar-lhe seus problemas, pedir conselhos e falar sobre a vida. Mesmo detestando os tagarelas, ele não demonstrava, afinal, ele era o boa praça. Assim, o Beto estava sempre interessado em tudo e em todos: nas más vendas dos comerciantes, nas desconfianças das namoradas, nas puladas de cerca dos maridos, nos aborrecimentos de um esportista aposentado, nas prisões do policial gordo e nas espertezas do golpista de dentes de ouro.O seu ponto forte eram os problemas amorosos, e ele adorava este tipo de caso. Dava conselhos decorados para os homens abobados, e, enquanto isso, já começava a caçar suas ditas mulheres. E se era a fêmea quem o procurava, ele próprio já era o consolo imediato. De um jeito ou de outro, o filho da puta continuava agradando a gregos e a troianos, e seu acervo cinematográfico continuava crescendo, se é que você me entende.
Naquela noite, a Carminha estava num bar com a Dora, sentada em uma mesa ao lado da mesa do Beto. A mesa era apenas dele, mas ele nunca era deixado sozinho. Tinha sempre alguém sentado ao seu lado conversando, cumprimentando ou despedindo-se. Os garçons também trocavam alguns palitos com ele, riam um pouco da vida e iam atender aos chamados impacientes das outras mesas.
O crápula tomava apenas cerveja, não muito, se ele ficasse chapado, perderia o controle. Ele tinha que dominar suas ações para colher os frutos que desejava. Ainda tinha o costume de pedir algumas doses de aguardente, que ele sempre jogava no chão, sem ninguém ver, claro.O Beto também tocava gaita, além de mulheres, e dizia que o instrumento possuía um poder mágico: o de despir as mulheres. Sempre funcionava, mas o tal poder não fez efeito na Carminha. A garota sabia jogar aquele jogo muito bem.
 Um músico se apresentava com seu violão num palquinho maltrapilho, típico dos botecos. O artista era figurinha repetida lá, tal qual o Beto, o que os tornou velhos conhecidos. Na hora em que o músico começaria a tocar blues e folk, o mequetrefe do Beto foi chamado para fazer uma palha. O boa praça sempre levava a gaita no bolso, como um tira que carrega o seu três-oitão no coldre todos os dias. Na primeira música ele se recusou a subir, de praxe, numa humildade falseada.  Sempre planejadíssimo. No fundo, aquele escroto queria subir lá, empurrar o bosta do violeiro e tornar-se o rei da cena. Mas não era assim que o seu espetáculo funcionava.
Terminada o primeiro blues, alguns conhecidos insistiram pro Beto subir. Ele foi, fingindo estar encabulado. Fez um solo improvisado de gaita, que foi brilhante para todos ali. Ele segurava o instrumento com uma garra singular e mostrava um grande espírito ao tocá-lo. Não precisava nem dizer, mas não foi improviso porra nenhuma. Qualquer analfabeto musical perceberia que ele repetia sempre a mesma seqüência de notas , sempre os mesmos bends e vibratos, todas aquelas noites em que subia ao palco. Por isso que ele tocava em apenas uma música. Enfim, ele conseguiu arrancar alguns aplausos, e era apenas isto que era de seu feitio.
Quanto foi se sentar, o Beto reparou que a Carminha não olhava para ele. Embora ela fizesse isso de propósito, ele não percebeu. O malandro nunca tinha visto aquela garota pelas redondezas, linda como só ela, da cor do pecado, com uns traços leves e sérios, mas com aquele fogo no olhar que desgringola qualquer cabra. Tiro e queda. Bastou o Beto dar a primeira vislumbrada na Carmen, que aquela sensualidade encarnada já se tornava o alvo da noite.
Um garçon foi o pombo correio que levou um guardanapo, em que o Beto rabiscara algumas palavras convidativas, para a moça da mesa 7. Em poucos instantes, a moça segurava aquele papel na mão. O malandro apenas bicava a reação dela com o canto dos olhos. Ele não sabia que a menininha sabia fisgar um Marlim. Aquele peixe grande e esperto, que os pescadores vão buscar no alto mar. Eles cortam as águas a uma velocidade elevadíssima, para poder acompanhar as nadadeiras do peixe. E se o pescador não colocar um cinto e travar bem os pés na mureta da popa, o Marlim leva ele para o fundo do mar.
A Carminha sorriu, arqueou as sobrancelhas e jogou o papel no chão. Aí que o cara engasgou, aquela cortada logo de início era inédita, deixou ele sem base. A Carminha acertou seu pulo, o Don Juan não desistiria depois desta, ele começou a cair na rede da pescadora. O Beto respirou fundo e tentou parecer relaxado na cadeira, era preciso reverter a situação logo. Ele pediu uma cerveja enquanto pensava na próxima estratégia. Ela não era boba, não encantava fácil, ele tinha que ser mais direto, mais sério. Essa do papelzinho, que já dera certo tantas vezes, o fez sentir-se ridículo.
Quando a amiga da Carminha levantou-se para ir ao banheiro, a oportunidade surgiu, radiante. O Beto levantou-se e foi tranquilamente à outra mesa, pedindo permissão para se sentar. A Carminha riu e fez que sim. Ele puxou um papo e riu da sua tentativa fracassada. Ela deu corda para a conversa dele, sempre mantendo uma certa frieza, para não acabar passando o carro na frente dos bois. Ela disse que viera fazer faculdade na cidade e ele disse que escrevia crônicas para um jornal de São Paulo. Mentiu, como sempre, ele não trabalhava nem estudava, apenas vadiava. E foi nessa mentira que ele entregou-se, a Carminha conhecia bem aquele jornal, e logo colocou a mentira do Beto em cima da mesa.
Ele pensou na hora: “fudeu”. Ela era de Belo Horizonte, mas havia morado em São Paulo por 2 anos. Ele não retrucou nem reafirmou, apenas ficou contemplando aqueles olhos negros que cresciam cada vez mais. Parecia que a música havia cessado, e que a resposta dele seria audível em todo o estabelecimento. Quando a Carminha abriu a boca para falar, o Beto instintivamente também tentou falar algo. Ela cerrou os lábios e ele gaguejou qualquer coisa sem nexo. Pela primeira vez ele ficara sem palavras, o seu pensamento astuto parara naquele vácuo.
Só havia um caminho, não existiam mais desvios nem desculpas, ele seria verdadeiro pela primeira vez. Contou então que não fazia nada, que apenas sonhava em escrever para um jornal, mas nunca tivera motivação para tal. Sobrevivia com uma mesada gorda que o seu pai, que morava na capital, lhe dava. Olhou nos olhos dela, sem graça, e confessou que queria apenas transmitir uma boa imagem. Ela sorriu, satisfeita. Não achara ruim, sentiu-se até bem, o alvo fora devidamente abatido.
A Dora, amiga da Carminha, que já sabia das pretensões da amiga, havia ido embora ao vê-los conversando. E isso permitiu que eles ficassem ali se conhecendo por muito tempo. O Beto continuou com a guarda abaixada, e a Carminha foi abrindo um pouco mais de espaço, sem descer do salto. Ela sabia que tinha conquistado o malandro do jeito que queria e não ia dar mole a essa altura do campeonato.
Os dois foram embora juntos. A pensão em que o Beto morava ficava no caminho da casa em que a Carminha morava com a Dora. Enquanto andavam cercados pelas montanhas de Ouro Preto, a lua, que parecia uma bola de sorvete de creme, iluminava as pedras coloniais da rua. A noite estava estrelada e fria, e o Beto andava com o braço sobre os ombros da moça, tentando diminuir o contato deles com o ar gelado. Continuaram proseando levemente, olhando o céu, como um casal de adolescentes tímidos.
Chegando à porta da pensão, ele ofereceu um agasalho para ela seguir o caminho protegida do frio. Ela aceitou e ambos caminharam em direção ao quarto do Beto, adentrando no hall da casa, iluminado tenuamente por uma lâmpada amarela, bem aconchegante. Eles percorreram o corredor de tábuas corridas e entraram no quarto, que acabara de ser iluminado. Enquanto ele remexia o armário, ela observava o aposento distraidamente. Ele virou-se para ela sem fechar o armário e entregou-lhe uma bela jaqueta de brim beje. Ela agradeceu e disse que a deixaria ali no dia seguinte, com a dona da pensão, caso ele não estivesse. O Beto disse para ela não se preocupar, qualquer tarde ele poderia buscar a jaqueta. Então, a moça concluiu a conversa dizendo que já estava tarde, com um ar meio tristonho. Ele assentiu, sorrindo, e a acompanhou até a porta.
 A garota suspirou, enquanto ele a observava docemente com um olhar de despedida.  Quando aproximaram-se, para dar um beijo de despedida no rosto, o Beto parou, sentindo a respiração da moça. O coração dela acelerou, ele encarava seus olhos silenciosamente. Então, quase que sem querer, ela virou seu rosto na direção do dele e olhou os lábios do rapaz, que arrastaram-se lentamente junto aos seus. Não houve reação contra nem a favor, ela beijou ele serenamente, como quem sai de um castigo.
O Beto sorriu, apaixonado, enquanto acariciava os cabelos castanhos da bela mulher. Há pouco tempo, ele estava duvidando que ela houvesse se interessado por ele, e agora, aquela boca consentira-lhe um beijo. Ela, percebendo a insegurança novata no Beto, fechou a porta do quarto e deu-lhe outro beijo. Tropeçaram lentamente em direção à cama dele, sentindo o calor dos corpos se abraçando.
Enquanto seus corpos caíam lentamente sobre o colchão macio, uma luz vermelha piscava fracamente, escondida dentro do armário soturno. E a luz continuou ali, observando o emaranhado de corpos humanos que se amavam, se é que você me entende.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O ódio humano, metaforizado em uma batalha aérea fantástica, palmas !




Este é o trailer da animação:

O Curta-Metragem inteiro, você vê neste link, vale o tempo gasto!

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=amPNbQRMRCo

Um conto

Talvez um dia, se torne a introdução de algum livro...

O bêbado perturbado

Abruptamente seu estado letárgico foi interrompido pelo solavanco do taxi parando. A luz acesa pelo motorista incendiou sua retina e fez com que ele piscasse rapidamente as pálpebras e fosse tragado de volta a realidade. Ouviu o motorista pronunciar o preço a ser pago pela corrida, com uma voz apagada, desmanchada no ar:

-Dezessete reais senhor.

Roberto sentiu sua cabeça pesar e tateou seus bolsos por fora, buscando a saliência de sua carteira. Arqueou o corpo com dificuldade para alcançá-la no bolso traseiro. Enquanto retirava a nota de 20 reais da carteira, fitou os olhos vazios e enrugados do homem velho. Sentiu naquele instante um vento gélido na alma. Eram como dois buracos negros, duas janelas para um poço escuro, de desilusão e desgosto. A dureza daquele olhar o fez fechar os olhos com força e abri-los em outra direção, fitando a nota encardida que adormecia em sua mão.

Entregou o dinheiro para o homem e quis dizer para ele ficar com o troco, mas sua não conseguiu abrir a sua boca. Apenas fez um gesto desimportante para o homem ficar com tudo e saiu do carro para a imensidão da noite. Tentou medir sua força para não bater a porta e um sentimento estranho o repelia para longe daquele taxi. Tinha vergonha de encarar aquele homem, justamente por ter sentido dó.

Tropeçou na calçada e lembrou-se da sua embriaguês:

- Merda – sussurrou baixinho. Flashes da festa daquela noite passaram rapidamente pela sua cabeça; os velhos amigos; as luzes fortes que brilhavam sem parar; as mulheres, lindas mulheres e o fundo de vários copos. Serviram bastante uísque naquela noite, a cascavel, como ele e seus amigos o chamavam. A cascavel lhe mordera bastante essa noite.

Puxou o molho de chaves do bolso esquerdo e conseguiu acertar o buraco da fechadura após quatro tentativas toscamente frustradas. Fechou calmamente a porta negra de grades metálicas e subiu a escada, em direção ao hall do elevador. Aquela madrugada quente o fez tirar o paletó antes mesmo de alcançar a saleta do térreo, iluminada por uma luz amarela solitária. Gostava daquelas lâmpadas incandescentes, davam conforto a ele, eram muito mais aconchegantes do que as brancas de luzes mortas. Ao entrar no elevador, tirou a gravata e desabotoou a camisa, percebendo várias manchas na sua camisa branca. Ignorou a origem delas.

Seu pensamento era lento e suas ações eram puro instinto. A porta do elevador se abriu e ele destrancou a porta da frente, penetrando dentro da escuridão do seu pequeno apartamento, na zona sul de Belo Horizonte. Após o estrondo da pesada porta se fechando, o silêncio reinou à sua volta. Não acendeu as luzes, gostava de caminhar no escuro até seu quarto, tateando pelo conhecido desconhecido, cambaleou um pouco, mas manteve-se de pé. Escorando pela parede do curto corredor, abriu a porta do seu quarto e finalmente recorreu ao interruptor. Novamente sentiu-se incomodado pela iluminação repentina e uma leve dor de cabeça alfinetou sua têmpora esquerda. Parou por um instante na entrada do quarto e observou lentamente a mesma bagunça que deixara antes de sair de casa.

O aposento contava com uma cama de casal, embora fosse solteiro; uma escrivaninha e uma estante, ambas de madeira escura. Sua condição financeira o permitira decorar seu quarto com alguns caprichos, embora nunca conseguira finalizar.Havia sempre alguma coisa por fazer. A estante estava recheada de livros de todos os tipos, embora não tivesse lido nem a metade, além de vários CD’s antigos e alguns objetos decorativos que gostava de acumular. Sobre sua mesa repousava seu notebook , uma infinidade de folhas, canetas, alguns fios e algumas roupas arremessadas há algum tempo. Tentava o tempo todo criar uma personalidade para o quarto, que remetesse à sua, era o único lugar do mundo em que não se sentia estrangeiro, aquele chão aquecia seus pés e o silêncio lavava sua alma atormentada.

Entrou calmamente em seu quarto e lembrou-se de tudo que passara ali, os sonhos e pesadelos, reais e fictícios, que marcarão sua vida até quando ela existir. Esses pensamentos misturados em lembranças, reais e inventadas, sempre brotavam em sua cabeça, eles ocupavam sua mente sempre que algo o fizesse lembrar deles, e dificilmente se livrava deles. Uma vida presa às lembranças é um inferno pensava ele, mas não se sentia em um inferno, embora pudesse estar em algum.

A visão do quarto bagunçado lhe remetera aos domingos da sua juventude, nos quais a bagunça acumulada de todo o final de semana entulhava seu quarto, lembrou da mãe falando para arrumá-lo, mas nunca o fazia. A bagunça era sua organização predileta. Lembrou-se das vezes que os amigos dormiam em seu antigo apartamento e quando entrava com as namoradas apaixonadamente no quarto, não se preocupando nem um pouco em arrumá-lo para recebê-las, lembrou também das conversas profundas que tinha durante as madrugadas com seus amigos, pensando no futuro, segredando sonhos e pensamentos existenciais.

Sentiu seu coração bater com força e respirou fundo, uma leve ansiedade tomou conta de seu peito. Queria livrar-se daquela roupa logo, que amarrava seu corpo e pesava sobre ele, como uma armadura antiga e enferrujada. Sentou-se na cama e tirou os sapatos pretos, imundos, que estavam com a sola grudenta e várias manchas no couro. Tirou também as longas meias e colocou seus pés no chão frio, arrepiando. Arremessou tudo em qualquer direção e com qualquer força, sem ver onde caíram, pois sabia que ia ver tudo no dia seguinte. Levantou-se rapidamente e teve uma leve tonteira, como de costume, dessa vez acentuada pelo álcool, e automaticamente abaixou a cabeça automaticamente.

Novamente cenas da noite recém-vivida lhe vieram à tona. Várias vozes indistinguíveis misturavam-se com a música, garçons engravatados vagavam com as mãos sempre ocupadas com coisas a oferecer, como vultos invisíveis, olhara nos olhos de todos, mas não se lembrava do olhar de nenhum deles. Com certeza todos lembravam do seu olhar, ele deve ter sido um dos únicos que fitaram os olhos dos garçons na noite. Uma voz feminina ecoava na sua cabeça sem parar, essa voz ria, falava coisas boas e por vezes se calava, num bonito silêncio. Aquela mulher marcara a presença na noite. Ele não conseguia se lembrar de quem era ela, se já a conhecia antes ou se tinha tentado beijá-la, lembrava apenas daquela voz.

Sorriu para o corredor e foi andando em direção ao banheiro, deslizando os pés para não topar em nenhuma quina pontiaguda. Abriu a porta e acendeu a luz antes de entrar por inteiro. Não gostava de ficar lá dentro com a luz apagada, não era uma sensação boa naquele banheiro frio sem janelas. De novo seus olhos doeram e automaticamente suas mãos subiram para protegê-los da clareza repentina. Esse jogo de luzes acendendo e apagando de noite só reforçava o prelúdio da enxaqueca. A tampa do vaso estava sempre levantada, e ele tentou se equilibrar para urinar, mas acabou tendo que apoiar com as duas mãos na parede da frente, que parecia empurrá-lo para trás. Pegou a escova e o creme dental, mas desistiu de escovar os dentes, no estado em que se encontrava era impossível fazer qualquer coisa direito.

Antes de sair do banheiro, rapidamente fitou o espelho e apagou a luz. Quando foi virar-se para sair, a imagem do espelho foi captada pelos seus sentidos e o reflexo, atrasado, o fez acender de novo as luzes. Olhou para o espelho, bem nos seus próprios olhos. Era estranho, não se lembrava da última vez que se vira no espelho, parecia que nunca o havia feito, parecia que não tinha rosto até então. Aproximou-se lentamente do espelho sem tirar a vista dos olhos que fitavam a si próprio e assustou-se. Eles estavam cansados, e havia rugas também, seu cabelo estava ralo, havia alguns pêlos de barba que escaparam da gilete, havia várias rachaduras nos lábios secos e a olheira era similar a de um morto-vivo. Aterrorizou-se com aquele desconhecido, que imitava todos os seus gestos. Parecia um fantasma maligno que o iludia e que, a qualquer momento, quebraria aquela sincronia ridícula o avançaria sobre ele ferozmente.

Desnorteado, levantou seus braços e tocou o espelho gélido, duro, impossível de se ultrapassar. Aquilo estava em seu mundo terreno, era a realidade pesada, sólida, intransponível. Tentou arranhá-lo, mas suas unhas roídas apenas fizeram doer a carne na ponta dos seus dedos. Soprou ar quente para embaçar o vidro, que logo voltou ao normal e mostrou-lhe de novo aquelas feições, irreconhecíveis. Percebia seus velhos traços, mas não encontrava sua juventude. Ele havia envelhecido, rapidamente. Nunca havia raciocinado isso, nunca se dera conta que o tempo passara, que os seus 20 anos se foram. Forçosamente encarou o espelho mais uma vez, e a memória do rosto que vira no taxi, refletido no espelho retrovisor, tornou-se vívida. Aquele era o seu próprio rosto e ele não o reconhecera, tivera dó de si mesmo, sem saber. Andou para trás, tropeçou e saiu do banheiro.

Sufocou um grito, seu corpo parou no tempo subitamente. Ele lembrou de todos seus planos, dos seus sonhos e das promessas individuais de realizá-los, à qualquer custo. Lembrou-se do futuro promissor que ele esculpira quando jovem, pensou em todos os amores que queria ter vivido e dos quais acabara fugindo. Esnobara todos, atrasara o relógio disfarçadamente, era sempre cedo demais. Pensou também em todas as viagens que faria, no mundo misterioso que ele desbravaria e nas montanhas que ele planejava subir, assistir à vista, pegar uma pedra redonda e descer, contente.

Mas ali, diante do espelho, percebeu que sempre tropeçara nos sopés das montanhas, sempre achara elas grandes demais, e assim escolhera uma menor, menor, menor, menor, até que escolhera deitar-se num buraco. Lá era mais escuro, vazio e confortável, fácil de entrar. O difícil era sair. Ele queria apenas subir num pódio e nunca apercebeu-se disso, ele nunca amou as montanhas de verdade, nunca imaginou-se dormindo em uma montanha, nunca imaginou-se fazendo amor em uma montanha. Ele apenas queria subir lá em cima, mas se tratava de subir em pensamento, um subir metafísico. Ele nem mesmo queria estar lá, era frio. Estava claro, ele era a própria montanha, cravada no chão, querendo se escalar. Ele sonhava estar no topo de si mesmo, mas isso era impossível, oras, era uma corrida infinita sem esforço algum. Apenas uma projeção oca.

Aturdido, seu coração palpitava e seus olhos estavam apertados com força. Os pensamentos estavam a mil, começara a tirar conclusões infinitas, parecia que finalmente sua vida elucidara-se. Sua consciência dizia ‘basta’. Olhou uma moldura envidraçada de uma foto de quando era jovem e enfiou a testa nela, estilhaçando o vidro e enfiando pequenos cacos em sua testa suada. O sangue escorreu lentamente. Depois de limpar o rosto, ele socou a parede, carimbando-a com a marca da sua mão, rubra. Sentou-se e começou a chorar nervosamente. Onde estava o problema? O que ele desejara de errado? Porque fora tão cego e tão covarde? Sua cabeça começou a doer, progressivamente. Então, conseguiu respirar fundo e pensar: “para com essa merda seu imbecil, não vê que isto está te fodendo? Acorda, você tá chapado”

Abriu os olhos, e viu a bagunça que havia feito, olhou para baixo envergonhado. O que acontecera naqueles instantes, que bombas que ele acabara de armar em seu cérebro, porque esse imaginário estava agrilhoado em seu inconsciente, de onde aquilo brotara? Era impossível compreender como não percebera o tempo passando, como adormecera durante tantos anos. Acordara só agora. Lembrou-se de um filme que assistira uma vez, ‘O homem que não estava lá’, dos irmãos Cohen.

Realmente ele nunca esteve em lugar nenhum. Mas dessa vez estava ali, sentia o significado do verbo ‘estar’. Ele estava presente, com a carne e com a alma, viu o mundo tal como lhe parecia agora, encarou sua verdade, sua essência, sua busca inútil, sua podre ilusão. Sentia seu corpo, sua respiração humana, seu sangue percorrendo cada centímetro das suas veias. O seu pensamento rodopiava pelo espaço à sua volta, numa presença avassaladora, ele movia-se com toda a energia, com toda a sua persuasiva clareza. Desta vez ele se mostrava de uma forma quase que palpável pelos sentidos.

Então as engrenagens da sua mente começaram a perdera a força. Seu pensamento foi se cansando, ficando rarefeito, até que esbranquiçou por competo. Sim, sua mente era uma folha em branco, não conseguia pensar em mais nada, apenas respirava, sentado. Ficou ali, com a mente vazia durante a madrugada inteira. Seu estado era quase vegetativo, completamente em paz, absorto em um nada. Levantou-se às 8 horas da manhã e foi deitar-se, serenamente.

Dois meses depois noticiaram no jornal, que um brasileiro de Belo-Horizonte vendera seu apartamento e, com o dinheiro, viajara para a Ásia, para a região montanhosa do Himalaia. Não deram muitos detalhes, nem mesmo o nome dele. Não se sabe por que, nem como ele o fez, mas ele se juntara a uma equipe de escalada, no Nepal, que enfrentaria o monte Everest. Ele morrera na descida, despencara de uma altura superior a 500 metros. Não se sabe se ele escorregou ou se ele se jogou. Foi impossível resgatar o corpo.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Piegas, mas interessante:


é importante ler e perigoso não ler, pois quando um 'não leitor' lê algo, ele pode concordar com isso, pelo simples motivo de 'não saber ainda' que ele não concorda com isso...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Devaneio sobre os aventureiros: conquistadores e viajantes.

     Hoje eu resolvi falar dos aventureiros. Quando eu penso em um aventureiro, eu consigo imaginar os conquistadores e os viajantes. Os dois querem adquirir riquezas, mas eu considerarei, como estereótipo, que o conquistador precisa buscar, empossar, dominar, enquanto o viajante não busca nada, nem mesmo procura algo, ele apenas admira, e essa é a sua maior riqueza.
     Usar as palavras 'viajante' e 'conquistador' não quer dizer que um conquistador não seja um viajante, ou qualquer outra definição empecilhenta, são apenas estereótipos. Poderia ser conquistador, desbravador, invasor, caçador. Um substantivo precisa ser, antes, adjetivado pelo seu entendedor, para ganhar o seu significado. Estou apenas dando nome aos bois, e os nomes não determinam os bois e nem os bois determinam os nomes, é apenas como vou chamá-los, seus apelidos. Tal como o Joãozinho, não precisaria ser, necessariamente, pequenininho.
      É extremamente difícil separar as duas coisas, pois existem viajantes, que pela simples presença, buscam, empossam ou desbravam parte do mundo à sua volta. A grande diferença está no sentimento que norteia os passos de cada um. O referido conquistador é guiado pelas suas glórias, ele projeta suas conquistas para projetar a si próprio. O viajante é diferente, o sonho dele é projetar para as pessoas o mundo que ele admira e ama, para que este mundo seja cada vez mais amado e admirado. E ele apenas sonha com isso, não é pragmático nem mesmo um manipulador da opinião alheia.O viajante não se incomodaria caso ridicularizassem as suas viagens e não se orgulharia caso as enaltecessem, seguiria apenas admirando.
      Uma aventura, no caso viagens e conquistas, não é necessariamente velejar, voar ou andarilhar pelos quatro cantos do mundo. Para certas pessoas, sair de casa é uma aventura especialmente difícil. Não me refiro às dificuldades físicas, como as enfrentadas por quem tem algum problema sério de saúde. Mas sim às dificuldades do espírito do ser humano. Aquele espírito inerte, mofado, encontrará grandes obstáculos para Viajar. Não que isso o impossibilite de ir trabalhar ou pagar uma viagem caríssima para as ilhas Java, mas isso molda o modo como o homem vai encarar a realidade à sua volta, as suas aventuras.
       Isso não impede que ele saia correndo de sua casa, caso ela esteja ardendo em chamas, mas impede que ele desvie o olhar do computador, para olhar o céu azul através da janela. Ao andar na rua, ele não percebe o desenho das folhas descansadas no chão, ele repara apenas no mendigo empoeirado do qual deve-se desviar apressadamente.Observar a beleza daquelas folhas é poético, ver as diferentes tonalidades que variam de acordo com a sua maturidade. Verdes, amarelas e marrons, embaralhadas de forma que, mesmo aleatoriamente, formam um mosaico que nunca será repetido por ninguém. Essa é a aventura de um viajante, que parabeniza silenciosamente a obra de arte da mãe natureza em meio à cidade cinzenta. Já, desviar de um homem estirado na calçada, é uma conquista. O conquistador sobrepuja assim, mais uma armadilha que a selva de pedra preparara, sorrateiramente, para ele, naquela tarde de outono.

A Loucura flertando a Vida


Inspirado em Erasmo, um elogio à loucura...

Entre risos agudos,
Ela ressoa.
Entre copos vitrais,
A vida se côa.

Cai no ventilador
E nem sente dor.
A vida gargalha.
O choro encalha.

Entre acordes e vinhos,
Ela se inflama.
É a vida que chama.

Ela fica toda toda.
Entre pernas e saltos,
A vida se magoa.

Regada em sonhos altos,
A vida se molha na garoa,
C'as madeixas desalinhadas,
Pelas gotas malvadas.

Ela então baforeja,
Com um quê de cerveja,
Um poema listrado,
Um verso ondulado
Um pouco enrolado.

A vida se encolhe
E olha rasteira, p'ra ela
Que então dança e canta,
De um riso sedutor,
Dizendo ser amor.

A vida então, encabulada,
Diverte-se com ela
Que rouba as rosas que houver
E recita:
Bem me quer mal me quer.

Mas a vida, misteriosa,
Escorrega-se para casa.

Ela chora apaixonada.

Mas a vida foi só se trocar,
Ficar mais arrumada.
Pois eis que logo volta,
Toda empetecada.

E o sol já raiou
Outra festa começou
Um novo flerte alegórico
Mais um amor ilógico

Elas então tornam
A dançar,
A se afastar,
A se abraçar,
A se amar.