Talvez um dia, se torne a introdução de algum livro...
O bêbado perturbado
Abruptamente seu estado letárgico foi interrompido pelo solavanco do taxi parando. A luz acesa pelo motorista incendiou sua retina e fez com que ele piscasse rapidamente as pálpebras e fosse tragado de volta a realidade. Ouviu o motorista pronunciar o preço a ser pago pela corrida, com uma voz apagada, desmanchada no ar:
-Dezessete reais senhor.
Roberto sentiu sua cabeça pesar e tateou seus bolsos por fora, buscando a saliência de sua carteira. Arqueou o corpo com dificuldade para alcançá-la no bolso traseiro. Enquanto retirava a nota de 20 reais da carteira, fitou os olhos vazios e enrugados do homem velho. Sentiu naquele instante um vento gélido na alma. Eram como dois buracos negros, duas janelas para um poço escuro, de desilusão e desgosto. A dureza daquele olhar o fez fechar os olhos com força e abri-los em outra direção, fitando a nota encardida que adormecia em sua mão.
Entregou o dinheiro para o homem e quis dizer para ele ficar com o troco, mas sua não conseguiu abrir a sua boca. Apenas fez um gesto desimportante para o homem ficar com tudo e saiu do carro para a imensidão da noite. Tentou medir sua força para não bater a porta e um sentimento estranho o repelia para longe daquele taxi. Tinha vergonha de encarar aquele homem, justamente por ter sentido dó.
Tropeçou na calçada e lembrou-se da sua embriaguês:
- Merda – sussurrou baixinho. Flashes da festa daquela noite passaram rapidamente pela sua cabeça; os velhos amigos; as luzes fortes que brilhavam sem parar; as mulheres, lindas mulheres e o fundo de vários copos. Serviram bastante uísque naquela noite, a cascavel, como ele e seus amigos o chamavam. A cascavel lhe mordera bastante essa noite.
Puxou o molho de chaves do bolso esquerdo e conseguiu acertar o buraco da fechadura após quatro tentativas toscamente frustradas. Fechou calmamente a porta negra de grades metálicas e subiu a escada, em direção ao hall do elevador. Aquela madrugada quente o fez tirar o paletó antes mesmo de alcançar a saleta do térreo, iluminada por uma luz amarela solitária. Gostava daquelas lâmpadas incandescentes, davam conforto a ele, eram muito mais aconchegantes do que as brancas de luzes mortas. Ao entrar no elevador, tirou a gravata e desabotoou a camisa, percebendo várias manchas na sua camisa branca. Ignorou a origem delas.
Seu pensamento era lento e suas ações eram puro instinto. A porta do elevador se abriu e ele destrancou a porta da frente, penetrando dentro da escuridão do seu pequeno apartamento, na zona sul de Belo Horizonte. Após o estrondo da pesada porta se fechando, o silêncio reinou à sua volta. Não acendeu as luzes, gostava de caminhar no escuro até seu quarto, tateando pelo conhecido desconhecido, cambaleou um pouco, mas manteve-se de pé. Escorando pela parede do curto corredor, abriu a porta do seu quarto e finalmente recorreu ao interruptor. Novamente sentiu-se incomodado pela iluminação repentina e uma leve dor de cabeça alfinetou sua têmpora esquerda. Parou por um instante na entrada do quarto e observou lentamente a mesma bagunça que deixara antes de sair de casa.
O aposento contava com uma cama de casal, embora fosse solteiro; uma escrivaninha e uma estante, ambas de madeira escura. Sua condição financeira o permitira decorar seu quarto com alguns caprichos, embora nunca conseguira finalizar.Havia sempre alguma coisa por fazer. A estante estava recheada de livros de todos os tipos, embora não tivesse lido nem a metade, além de vários CD’s antigos e alguns objetos decorativos que gostava de acumular. Sobre sua mesa repousava seu notebook , uma infinidade de folhas, canetas, alguns fios e algumas roupas arremessadas há algum tempo. Tentava o tempo todo criar uma personalidade para o quarto, que remetesse à sua, era o único lugar do mundo em que não se sentia estrangeiro, aquele chão aquecia seus pés e o silêncio lavava sua alma atormentada.
Entrou calmamente em seu quarto e lembrou-se de tudo que passara ali, os sonhos e pesadelos, reais e fictícios, que marcarão sua vida até quando ela existir. Esses pensamentos misturados em lembranças, reais e inventadas, sempre brotavam em sua cabeça, eles ocupavam sua mente sempre que algo o fizesse lembrar deles, e dificilmente se livrava deles. Uma vida presa às lembranças é um inferno pensava ele, mas não se sentia em um inferno, embora pudesse estar em algum.
A visão do quarto bagunçado lhe remetera aos domingos da sua juventude, nos quais a bagunça acumulada de todo o final de semana entulhava seu quarto, lembrou da mãe falando para arrumá-lo, mas nunca o fazia. A bagunça era sua organização predileta. Lembrou-se das vezes que os amigos dormiam em seu antigo apartamento e quando entrava com as namoradas apaixonadamente no quarto, não se preocupando nem um pouco em arrumá-lo para recebê-las, lembrou também das conversas profundas que tinha durante as madrugadas com seus amigos, pensando no futuro, segredando sonhos e pensamentos existenciais.
Sentiu seu coração bater com força e respirou fundo, uma leve ansiedade tomou conta de seu peito. Queria livrar-se daquela roupa logo, que amarrava seu corpo e pesava sobre ele, como uma armadura antiga e enferrujada. Sentou-se na cama e tirou os sapatos pretos, imundos, que estavam com a sola grudenta e várias manchas no couro. Tirou também as longas meias e colocou seus pés no chão frio, arrepiando. Arremessou tudo em qualquer direção e com qualquer força, sem ver onde caíram, pois sabia que ia ver tudo no dia seguinte. Levantou-se rapidamente e teve uma leve tonteira, como de costume, dessa vez acentuada pelo álcool, e automaticamente abaixou a cabeça automaticamente.
Novamente cenas da noite recém-vivida lhe vieram à tona. Várias vozes indistinguíveis misturavam-se com a música, garçons engravatados vagavam com as mãos sempre ocupadas com coisas a oferecer, como vultos invisíveis, olhara nos olhos de todos, mas não se lembrava do olhar de nenhum deles. Com certeza todos lembravam do seu olhar, ele deve ter sido um dos únicos que fitaram os olhos dos garçons na noite. Uma voz feminina ecoava na sua cabeça sem parar, essa voz ria, falava coisas boas e por vezes se calava, num bonito silêncio. Aquela mulher marcara a presença na noite. Ele não conseguia se lembrar de quem era ela, se já a conhecia antes ou se tinha tentado beijá-la, lembrava apenas daquela voz.
Sorriu para o corredor e foi andando em direção ao banheiro, deslizando os pés para não topar em nenhuma quina pontiaguda. Abriu a porta e acendeu a luz antes de entrar por inteiro. Não gostava de ficar lá dentro com a luz apagada, não era uma sensação boa naquele banheiro frio sem janelas. De novo seus olhos doeram e automaticamente suas mãos subiram para protegê-los da clareza repentina. Esse jogo de luzes acendendo e apagando de noite só reforçava o prelúdio da enxaqueca. A tampa do vaso estava sempre levantada, e ele tentou se equilibrar para urinar, mas acabou tendo que apoiar com as duas mãos na parede da frente, que parecia empurrá-lo para trás. Pegou a escova e o creme dental, mas desistiu de escovar os dentes, no estado em que se encontrava era impossível fazer qualquer coisa direito.
Antes de sair do banheiro, rapidamente fitou o espelho e apagou a luz. Quando foi virar-se para sair, a imagem do espelho foi captada pelos seus sentidos e o reflexo, atrasado, o fez acender de novo as luzes. Olhou para o espelho, bem nos seus próprios olhos. Era estranho, não se lembrava da última vez que se vira no espelho, parecia que nunca o havia feito, parecia que não tinha rosto até então. Aproximou-se lentamente do espelho sem tirar a vista dos olhos que fitavam a si próprio e assustou-se. Eles estavam cansados, e havia rugas também, seu cabelo estava ralo, havia alguns pêlos de barba que escaparam da gilete, havia várias rachaduras nos lábios secos e a olheira era similar a de um morto-vivo. Aterrorizou-se com aquele desconhecido, que imitava todos os seus gestos. Parecia um fantasma maligno que o iludia e que, a qualquer momento, quebraria aquela sincronia ridícula o avançaria sobre ele ferozmente.
Desnorteado, levantou seus braços e tocou o espelho gélido, duro, impossível de se ultrapassar. Aquilo estava em seu mundo terreno, era a realidade pesada, sólida, intransponível. Tentou arranhá-lo, mas suas unhas roídas apenas fizeram doer a carne na ponta dos seus dedos. Soprou ar quente para embaçar o vidro, que logo voltou ao normal e mostrou-lhe de novo aquelas feições, irreconhecíveis. Percebia seus velhos traços, mas não encontrava sua juventude. Ele havia envelhecido, rapidamente. Nunca havia raciocinado isso, nunca se dera conta que o tempo passara, que os seus 20 anos se foram. Forçosamente encarou o espelho mais uma vez, e a memória do rosto que vira no taxi, refletido no espelho retrovisor, tornou-se vívida. Aquele era o seu próprio rosto e ele não o reconhecera, tivera dó de si mesmo, sem saber. Andou para trás, tropeçou e saiu do banheiro.
Sufocou um grito, seu corpo parou no tempo subitamente. Ele lembrou de todos seus planos, dos seus sonhos e das promessas individuais de realizá-los, à qualquer custo. Lembrou-se do futuro promissor que ele esculpira quando jovem, pensou em todos os amores que queria ter vivido e dos quais acabara fugindo. Esnobara todos, atrasara o relógio disfarçadamente, era sempre cedo demais. Pensou também em todas as viagens que faria, no mundo misterioso que ele desbravaria e nas montanhas que ele planejava subir, assistir à vista, pegar uma pedra redonda e descer, contente.
Mas ali, diante do espelho, percebeu que sempre tropeçara nos sopés das montanhas, sempre achara elas grandes demais, e assim escolhera uma menor, menor, menor, menor, até que escolhera deitar-se num buraco. Lá era mais escuro, vazio e confortável, fácil de entrar. O difícil era sair. Ele queria apenas subir num pódio e nunca apercebeu-se disso, ele nunca amou as montanhas de verdade, nunca imaginou-se dormindo em uma montanha, nunca imaginou-se fazendo amor em uma montanha. Ele apenas queria subir lá em cima, mas se tratava de subir em pensamento, um subir metafísico. Ele nem mesmo queria estar lá, era frio. Estava claro, ele era a própria montanha, cravada no chão, querendo se escalar. Ele sonhava estar no topo de si mesmo, mas isso era impossível, oras, era uma corrida infinita sem esforço algum. Apenas uma projeção oca.
Aturdido, seu coração palpitava e seus olhos estavam apertados com força. Os pensamentos estavam a mil, começara a tirar conclusões infinitas, parecia que finalmente sua vida elucidara-se. Sua consciência dizia ‘basta’. Olhou uma moldura envidraçada de uma foto de quando era jovem e enfiou a testa nela, estilhaçando o vidro e enfiando pequenos cacos em sua testa suada. O sangue escorreu lentamente. Depois de limpar o rosto, ele socou a parede, carimbando-a com a marca da sua mão, rubra. Sentou-se e começou a chorar nervosamente. Onde estava o problema? O que ele desejara de errado? Porque fora tão cego e tão covarde? Sua cabeça começou a doer, progressivamente. Então, conseguiu respirar fundo e pensar: “para com essa merda seu imbecil, não vê que isto está te fodendo? Acorda, você tá chapado”
Abriu os olhos, e viu a bagunça que havia feito, olhou para baixo envergonhado. O que acontecera naqueles instantes, que bombas que ele acabara de armar em seu cérebro, porque esse imaginário estava agrilhoado em seu inconsciente, de onde aquilo brotara? Era impossível compreender como não percebera o tempo passando, como adormecera durante tantos anos. Acordara só agora. Lembrou-se de um filme que assistira uma vez, ‘O homem que não estava lá’, dos irmãos Cohen.
Realmente ele nunca esteve em lugar nenhum. Mas dessa vez estava ali, sentia o significado do verbo ‘estar’. Ele estava presente, com a carne e com a alma, viu o mundo tal como lhe parecia agora, encarou sua verdade, sua essência, sua busca inútil, sua podre ilusão. Sentia seu corpo, sua respiração humana, seu sangue percorrendo cada centímetro das suas veias. O seu pensamento rodopiava pelo espaço à sua volta, numa presença avassaladora, ele movia-se com toda a energia, com toda a sua persuasiva clareza. Desta vez ele se mostrava de uma forma quase que palpável pelos sentidos.
Então as engrenagens da sua mente começaram a perdera a força. Seu pensamento foi se cansando, ficando rarefeito, até que esbranquiçou por competo. Sim, sua mente era uma folha em branco, não conseguia pensar em mais nada, apenas respirava, sentado. Ficou ali, com a mente vazia durante a madrugada inteira. Seu estado era quase vegetativo, completamente em paz, absorto em um nada. Levantou-se às 8 horas da manhã e foi deitar-se, serenamente.
Dois meses depois noticiaram no jornal, que um brasileiro de Belo-Horizonte vendera seu apartamento e, com o dinheiro, viajara para a Ásia, para a região montanhosa do Himalaia. Não deram muitos detalhes, nem mesmo o nome dele. Não se sabe por que, nem como ele o fez, mas ele se juntara a uma equipe de escalada, no Nepal, que enfrentaria o monte Everest. Ele morrera na descida, despencara de uma altura superior a 500 metros. Não se sabe se ele escorregou ou se ele se jogou. Foi impossível resgatar o corpo.